Confrarias Guerreiras e Casamento entre Germânicos – Trecho de Lady With a Mead Cup pt. 1

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[Na obra Lady with a Mead Cup, o historiador estadunidense Michael J. Enright investiga a instituição indo-europeia das Confrarias Guerreiras dentro das culturas Celtas e Germânicas. E no terceiro capítulo explana sobre a relação entre confrarias guerreiras e casamento, passando pela análise linguística e abordando comentários do final da Idade do Ferro e início da Idade Média acerca destas instituições, demonstrando a ligação entre a bebida, as armas, os compromissos e os papéis de homens e mulheres neste contexto. A seguir trago a tradução de um trecho deste capítulo, que vai da página 71 até a 77.] 

A palavra druht (*druhitz, OE Dryht, ON drótt) é reconhecida como a mais disseminada e importante palavra para comitatus [confraria guerreira na forma como os romanos a traduziram]. Como a raíz também está  no gótico driugan, “executar serviço militat”, não pode ser uma formação recente, e sim refletir uma utilização germânica primitiva. O primeiro exemplo extendido de druht aparece na Lex Salica cerca de 500 d.C. onde, contudo, e notadamente, não tem o significado de confraria guerreira, mas de “procissão de casamento” e aparace em um capítulo que descreve as várias formas de sequestrar uma mulher: “Se qualquer um segue uma moça prometida em uma procissão de casamento [dructe ducente] que está a caminho de casar-se e a assalta na estrada e estupra, que é chamado de gangichaldo no malberg, que seja responsabilizado em 8000 denarii, que corresponde a 200 solidi”. Kuhn notou em uma importante monografia crítica que o significado atribuído a esta celebração marital tem paralelo na troctingus dos Lobardus. OHG truhting e truhti-gomo, OS druhting, OE deyht-guma, dryht-eal-dor, e dryht ealdorman, todos significando Bautführer, “homem da noiva”, ou em uso moderno, “pagem”. Ele argumenta que um dos mais antigos significados de druht deva ser “procissão festiva”, ou “procissão de casamento” e que em estágio primevo dev ter significado “encontro festivo”, “festival”, “banquete festivo”. Isto é demonstrado por uma série de palavras em OE e OHG todas palavras traduzidas no Latim dapifer e discophorus, aquele que carrega a bebida”. A conclusão é a de que todas estas palavras tenham evoluído de uma única (primitiva) germânica *druht, “drink” [“beber“]. É possível notar imediatamente o quanto esta aglutinação de ideias – casamento, procissão, beber, banquete festivo – está de acordo com a discussão acima da esposa que dá de beber ao esposo e proclama a liderança dele sobre a confraria guerreira.

Entre o significado de “bando armado” e “procissão de casamento”, é preciso procurar uma tertium comparationis que deve aferir que uma procissão de casamento incluísse homens armados ainda que muitos dos participantes não fossem portadores de armas, tais como mulheres e crianças. Outra reside na observação, conforme Green pontuou, de que não deva haver conflito real entre os significados de grupo festivo e comitiva guerreira já que a Comitatus citada por Tacitus também tem o dever duplo: em tempos de guerra serve ao líder em campo de batalha e em tempos de paz serve-o no salão, aonde o maior esforço é o de embebedar-se e permanecer bêbado por tanto tempo quanto possível: “se Tacitus, ao descrever a comitatus, tão explicitamente trata desta em seu duplo aspecto, então não deve haver razão pela qual o termo druht- não deva ter desenvolvido dois significados específicos (militar e festivo), de um mesmo ponto de partida. A isso deve-se adicionar que na linha 1231 de Beowulf, Wealhtheow casualmente refere-se aos membros como drucne dryhtgu-man, um fato que tem indevidamente levado embaraço a alguns conentaristas modernos que vêem a descrição como pejorativa ou infeliz e a traduzem como “wine-glad”.

Evidência de uma outra derivação foi oferecida por Ernst Dick. Em seu recente estudo da palavra da família OE dryht, este acadêmico elencou a ideia de “procissão de casamento” e a seguiu por uma variedade de rotas. Em sua visão, não há necessariamente uma conexão entre confrarias guerreiras mas uma possibilidade maior de ligação com indryhtu, “Wachstumsheil”, magia de crescimento, e ele interpreta dryht primariamente como “Kultschar” ou grupo de culto. Seu principal conceito é o da fertilidade. Ruth Schmidt-Weigand parece ter aceitado ao menos parte desta análise, pois em seu estudo de referências a druht nas fontes francas ela conclui que há condições para propiciar a agricultura. Um comentário recente é o de Gabriele von Olberg  que compartilha essa visão e faz referência a Dick. No entanto, tanto para Schimidt-Weigand e von Olberg o denominador comum primário é o da confraria guerreira. Wenskus apoia esta ideia mas é ainda mais cético quanto à conclusão de Dick e também duvida que o significado de “festividade” deriva de “procissão de casamento”.

A mistura e variedade de opiniões  filológicas neste tópico é assustadora. Visto da perspectiva ritual, contudo, pode ser possível desenvolver outras razões persuasivas para a associação entre comitatus e costumes de casamento germânicos e também para ligar a noiva à procissão – ela é a única normalmente deixada fora de discussão – com cultos das práticas de confrarias guerreiras. Algumas das formas para tanto já foram discutidas anteriormente quando foi visto que a esposa do chefe  deve ser aceita como membro da comitatus por muitas razões e tem papel crucial nas sucessões. É possível construir a partir destas conclusões e adicionar maior precisão ao significado de druht no contexto da questão da autoridade e da subordinação.

Em OE dryht significa uma tropa de “partidários”, uma confraria guerreira, mas é fascinante notar que muitos compêndios contendo este elemento, que naturalmente estaria à vontade na comitatus, são, na verdade, utilizados para participantes de cerimônias de casamento. Palavras como dryht-ealdor, dryjt-ealdorman, dryht-guma, dryjt-man, dryjt-wemend, e dryht-wemere podem todas ser usadas em OE para se referir a termos como paranimphus, “best man” [papel típico do pagem das cerimônias de casamento nos países de língua inglesa], que lidera a procissão de casamento, e architriclinus, “mestre da festa” – neste caso a de casamento. Conforme Roeder pontuou em um importante estudo de 1909, também possui igual importância o termo tacn-bora para as comitatus. Este termo ilustra o do Latim signifer, uexillifer e refere-se ao homem que segue na frente da confraria e porta o estandarte ou brasão desta. É uma posição de altíssima honraria. Bede provê um excelente exemplo de uso em seu  Historia Ecclesiastica do início do século oitavo: “tão grandiosa era sua majestade em seu reino [o rei Edwin] que não somente os estandartes era carregados à frente dele em batalha, mas até mesmo em tempos de paz, conforme ele cavalgava por suas cidades, estados e reinos com sua tropa, ele sempre era precedido por um portador de estandarte. Além disso, por qualquer lugar que ele passasse, carregava-se ante ele o tipo de estandarte que os romanos chamam de tufa e os ingleses de thuf”. Esta mesma palavra também pode significar pranimphus. Em ambos os tipos de grupo, um homem específico deve ter carregado o estandarte. Portanto podemos concluir que não apenas tacn-bora designava um membro da comitatus, mas podemos também concluir que significasse “best man” na procissão de casamento. Em caso de um casamento nobre ou real, então, o indivíduo em todo o caso seria provavelmente o mesmo. É de se pensar em todas aquelas rainhas viúvas sob o controle da confraria guerreira e visadas por pretendentes ao trono.

Embora esta conexão seja uma dica bem-vinda de que estamos na direção correta, também serve para enfatizar o ponto de que algo está faltando na equação e que o denominador comum de portador de armas (que Wenskus denota ser muito amplo) possa ser algo superficial. Deve haver mais alguma coisa que explique o fato inpressionante de que os Germânicos aplicavam a mesma palavra para confraria guerreira e procissão de casamento. A ligação até agora muito bem aceita pode ser questionada.  Em uma sociedade na qual muitos homens armados frequentemente viajavam juntos e na qual todo e qualquer homem livre carregava armas, um único e simples uso linguístico poderia ter se desenvolvido (ao menos é o que parece para este autor) se a comunidade também percebesse um único conceito a ser aplicado tanto para mulheres casadas quanto para membros de uma comitatus. O conceito chave, eu sugiro, um que pode encaixar-se em ambos os critérios, é o de entrada em uma organização, uma família; no caso da noiva é uma família de fato, no caso do guerreiro é uma família fictícia. Em ambos os casos deveria haver uma festa e banquete e, ainda que eu não tenha investigado a literatura a este respeito, uma procissão é altamente provável. Lembremos de Bede e sua descrição de seus correligionários na estrada. Aquilo que estamos apontando, então, é a uma filiação contratual em comum, em um caso entre marido e mulher, e em outro de chefe e guerreiro. Talvez a palavra em comum que possa expressar os dois tipos de união seja “adoção” pois tal conceito parece estar presente em cada instituição. Ao mesmo tempo, contundo, não se trata de uma adoção no sentido técnico. Como Hans Kuhn demonstrou exemplos de adoção verdadeira, são difíceis de encontrar nas fontes germânicas e parecem estar consistentemente ligadas ao conceito cristão de relação espiritual (que cria estreitas obrigações mútuas) no rito de batismo e confirmação. Como em Beowulf, no entanto, quando Hrothgar declara seu desejo de tratar o herói como a um filho e exorta-o a aderir a sua niwe sibbe, “nova família”, o conceito mais geral de imersão em uma família existe e realmente jaz no cerne do ethos da confraria guerreira. É neste sentido que o termo será usado aqui. Vamos agora examinar a ideia de adoção na comitatus.

Em todas as sociedades indo-europeias o casamento era visto como uma empreitada ousada, perigosa tanto para a família da noiva quanto para a do noivo. A família da noiva abria mão de um membro em virtude de presentes, aliança e esperava reciprocidade. Todas commodities valiosas que precisavam de proteção e garantias. A família do noivo, por outro lado, estava aceitando uma estranha em seu lar e conselho que tinha laços de sangue com outras pessoas, portanto, não podia ter total confiança. A noiva era uma ameaça potencial para seu bem-estar e segurança. No entanto, uma vez que ela era necessária para a continuação da família, tinha de ser aceita a despeito dos riscos. A questão era como integrar este indivíduo liminal em sua nova família. A solução era imergir a partida dela de sua antiga casa para a nova com ritos religiosos poderosos que cauterizam a perda da família  natal e certa e seguramente inserí-la na do esposo. Tais atividades, sempre tidas como sagradas, são comumente milenares, de forma que, por exemplo, o ritual de casamento-por-captura (no qual a noiva parece recusar o pretendente a quem anteriormente ela teria aceito e escondido na casa de sua família, apenas para ser removida pelos amigos do pretendente com mostras de hostilidade) é uma prática de eras não apenas na Europa, mas em centenas de outras culturas. Este é um  típico rito de separação. Todo o deliberado e complicado processo, como todo aquele de um rito de passagem, é análogo ao de morte e renascimento. A noiva morre para um grupo e renasce, adotada, para outro. Os ritos envolvidos claramente estabelecem este padrão. Ritos de adoção típicos costumam envolver o corte de cabelo, ajoelhamento, investimento de armas, o calçamento de novos sapatos, de novas vestimentas rituais, um banho de purificação ritualístico, aspergir água ou bebida, um banquete em comum [entre o adotado e a nova família], e por aí vai. De uma forma ou de outra, às vezes clara, às vezes vaga, todos estas práticas são encontrados no casamento. Dificilmente seria de outra maneira já que o conceito aí imerso é o mesmo.  O domum deductio, por exemplo, a levada para casa da noiva na procissão de casamento, termina quando a noiva está simbolicamente renascida sendo carregada no colo pela porta de entrada em seu novo lar [como um bebê]. Lá outros ritos de integração a aguardam, mas precisamos examinar estes para além de aferir que seu propósito claro é atá-la à sua niva família, um processso que pode não estar completo até que ela renasça como uma criança e apresente garantias legais em pagamento pelos presentes que pagaram por ela. Em resumo, casamento, para os Germânicos, era um drama sagrado  de morte e renascimento que acabava, para a noiva,  em adoção pela nova família. Deve também ser dito que armas frequentemente tinham um papel neste processo pois eram sem dúvida parte das hostilidades ritualísticas entre a família da noiva e os amigos  do noivo, mas eram também importantes por outras razões que veremos agora.

Se a ideia de adoção era necessária para a família germânica que aceitava uma “filha”, é verdadeiro dizer que era igualmente indispensável para as primeiras comitatus extra tribais em natureza e que portanto aceitavam outros kinsmen [homens de outras tribos] como membros. Já no século I Tacitus relata o costume no qual jovens nobres, cansados da paz procuram nationes engajadas na guerra e atam-se a novos chefes para buscar renome (Germania 14). Mas como, dada a convicção universal [entre tribos germânicas] de que apenas um parente podia ser totalmente confiável e apenas a um kinsman poderia se chamar de amigo, poderiam estas confrarias guerreiras tê-los recebido, ou estes jovens terem esperado por aceitação? Parece improvável que qualquer líder o fizesse a menos que pudesse chamar ao forasteiro de “filho” – um parente subordinado – e outros membros tenham-no aceito como “irmão”. Este deve ter sido o caso  já que a comitatus tinha a forma e conceito organizacional da instituição familiar. Como enfatizado anteriormente, a linguística pode apenas endorsar esta teoria. Então, por exemplo, as pesoas que coletivamente formavam o grupo de kins pode ser chamada propinqui ou parentes mas podem também ser referidas como amici, amigos. Como em Beowulf, os membros da confraria podem ser chamados magas, kinsmen, maguthegnas, jovem membro kin, e o grupo como um todo pode ser chamado de um sibnegedryht, bando de kinsmen. Como era esta família fictícia – esta adoção – feita? Pelos mesmos meios aos quais Hrothgar fez de Beowulf seu sunu em Heorot, ao presenteá-lo com armas no ritual de Waffensohmchaft. Tacitus refere-se a isto em Germania 13 embora a passagem nem sempre seja reconhecida como tal:

… na presença do conselho, um dos chefes, ou o pai do jovem, ou algum parente, equipa-o com um escudo e uma lança. Estas armas são aquilo que a “toga” é para nós, a primeira honraria com a qual o jovem é investido. A partir de então ele é tido como membro da família, e doravante como membro da nação… tais jovens unem-se a homens maduros de força e valor já reconhecidos.

Uma vez feito “filho”, o novo membro também se torna irmão de seus companheiros e, como dito no capítulo um, seu status e condição é selado com uma bebida ritual com sua “família”. Ele é duplamente atado pelos símbolos sagrados desta nova vida, por laços sagrados de armas e bebida. Tais laços devem ser religiosa e ritualistamente sancionados já que o novo membro da comitatus é um perigo potencial para esta nova “família” como a noiva é para a dela.

[Nota: o autor não especifica na obra quais as línguas sendo abreviadas no corpo do texto. Não tenho certeza quanto a todas elas, mas acredito que OE seja Old English; OHG, Old High Gothic; OS, Old Saxon; e ON, Old Norse ou Norwegian. Esclarecimentos são bem-vindos.]

2 opiniões sobre “Confrarias Guerreiras e Casamento entre Germânicos – Trecho de Lady With a Mead Cup pt. 1

  1. Boa noite! Acredito que OHG seja Old High German.

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    1. Valeu a ajuda, Inoel!

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