Tradução: M. L. West – “O Dragão”

Trecho traduzido por M. Diniz “Nemetios” do capítulo Storm and Stream do livro WEST, M. L. Indo-European Poetry and Myth. Oxford/New York: Oxford University Press, 2007. p. 255-259. Comentários do tradutor aparecem entre colchetes.

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Larouco contra o Dragão da Seca

O Deus do Trovão não vem atrás de mim ou de vocês. Sua fúria é dirigida contra demônios, diabos e gigantes. Suas identidades variam de país para país. Mas há um adversário de um tipo diferente que se mostra na mitologia védica, grega e nórdica [e céltica também!] e que parece representar um conceito Indo-Europeu: um réptil monstruoso associado com a água, jazendo nela ou bloqueando seu fluxo. Talvez seja a versão cósmica do motivo mítico comum de uma serpente que guarda uma fonte ou outra coisa desejável, prevenindo o acesso a ela.

A derrota desta criatura pelo Deus do Trovão é em essência um mito naturalista: trovoadas liberam torrentes de água que previamente estavam contidas. Mas enquanto o deus pode sempre prosseguir matando gigantes e demônios, uma vez que sempre há mais deles, um único dragão pode ser morto por vez. Há, portanto, um dilema. A morte deste dragão é um feito heroico o deus fez no passado, a ser celebrado em seus hinos de louvor? Ou o monstro não está de todo morto, de modo que o conflito é renovado de novo e de novo? No geral, a primeira abordagem prevalece. A narrativa é posta no passado, enfraquecendo suas conexões com nosso clima. Mas veremos que há certa ambivalência.

Indra é celebrado por muitas vitórias sobre diferentes demônios, por exemplo, Vala, Viśvarūpa, Śambara, Namuri, Suṣna, Uraṇa, Pipru, Arbuda. No entanto, seu principal oponente é Vṛtra. O nome de Vṛtra, como vimos, significa “resistência, bloqueio”, e foi abstraído o epíteto de Indra vṛtrahán-. Mas foi abstraído para nomear uma criatura mítica já conceituada.

Vṛtra é uma serpente gigante, áhi-. O mesmo verbo que aparece em vṛtrahán- é usado na fórmula áhann áhim “(Indra) esmagou a serpente” (RV 1. 32. 1, 2, 103. 2, etc.). Isto possui um contraparte quase exata no avesta janaṯ ažīm (Y. 9. 8, Yt. 14, 40, da derrota de um dragão de três cabeças por Θraētona), e Calvert Watkins já mostrou como cognatos e variantes desta frase podem ser traçados extensivamente no Hitita, Indo-iraniano e no Grego.

Uma tradução da parte do RV 1. 32 servirá para ilustrar as características essenciais do mito de Vṛtra:

(1) Dos feitos heroicos de Indra agora eu cantarei
Aqueles que o porta-vajra fez primeiro,
Ele esmagou a Serpente, perfurou um caminho para as águas;
Ele dividiu as entranhas das montanhas.
(2) Ele esmagou a Serpente que jazia na montanha;
Tvaṣṭṛ forjou para ele o tonante vajra.
Fluindo como vacas baixas,
As águas fluíram para o mar.
(4) Quando, Indra, esmagaste a primeira das serpentes
e encolheu a magia dos mágicos,
assim, fazendo o sol, o céu e aurora nascer –
desde então não tens encontrado verdadeiro antagonista.
(5) Esmagou Vṛtra o maior bloqueio, o de ombros largos,
Indra com seu vajra, sua grande arma.
Como galhos partidos por um machado,
A Serpente jaz amassada na terra…
(7) Sem pés, sem mãos, lutou contra Indra,
(mas) ele esmagou seu vajra em suas espátulas.
Um boi castrado se medindo com um touro,
Vṛtra jaz feito em pedaços por todo lado.
(8) E como assim faz como graveto partido,
As águas crescentes de Manu por sobre ele vão:
as mesmas que Vṛtra circulava em sua grandeza,
às seus pés a Serpente foi prostrada…
(10) Na mudança, na alternância
do meio dos cursos d’água seu corpo jaz.
Por sobre o correr das águas se esconde Vṛtra;
Em longa treva submerso, o antagonista de Indra.
(11) as esposas dos Demônios, rebanho da Serpente permanecem
encerradas, as águas, como as vacas de Paṇi.
A fenda das águas que tinha sido bloqueada
Ao esmagar Vṛtra ele abriu.
(12) … Ganhaste as vacas, herói, ganhaste o Soma,
Libertaste os sete rios para fluir.
(13) Nem relâmpago nem trovão o aproveitou,
Nem chuva ou granizo verteu além,
Enquanto Indra e a Serpente lutaram,
Pelo futuro também o Magnânimo será vitorioso.

Que este é um mito naturalista é claro suficiente, apesar de que a consciência de que o vajra de Indra representa o Raio diminuiu: a tempestade é interpretada no verso 13 como o assalto Vṛtra sobre Indra ao invés do contrário (cf. 1. 80. 12). O conflito é majoritariamente tratado como um evento passado, mas os tempos flutuam entre o passado e o presente, e é reconhecido que a vitória de Indra é de um significado contínuo (4, 13). O corpo de Vṛtra jaz agora nas águas, imerso nas trevas (10).

Há no Avesta um demônio da seca Apaoša que luta contra Tištrya (Sirius) e primeiramente o sobrepuja, em detrimento das águas e plantas. Mas quando ele é derrotado e expelido, os rios de água são então liberados sobre os campos e seguem desimpedidos. Apaoša luta sob a forma de um cavalo negro sem pelos, Tištrya como um belo cavalo branco com crina dourada (Yt. 8. 21-31, cf. 18. 2, 6). Não há nenhum Deus do Trovão aqui; o papel do vitorioso sobre o demônio é assinalado a uma deidade estelar como poder sazonal. Mas a função de Apaoša é similar a Vṛtra, e seu nome é analisado a partir de *ap(a)-vṛt-, “bloqueia-água”, como o segundo elemento comum a Vṛtra.

O grande oponente ao Deus do Trovão grego é Tifeu. O relato clássico do conflito pode ser encontrado na ‘Teogonia’ de Hesíodo (820-80). Tifeu (ou Tifão, como Hesíodo o chama noutras passagens) é um monstro com cem cabeças de serpentes reluzentes como o fogo e que dão diferentes barulhos alarmantes de animais. Ele teria se tornado mestre dos deuses e homens se Zeus não tivesse visto o perigo e o atacado com seu trovão. O mundo foi mergulhado no tumulto:

No Pontos violáceo penetrava o calor dos combatentes,
Dos trovões, dos relâmpagos, do fogo expelido pelo monstruoso ser,
dos ventos furiosos e dos raios fulminantes.
Ferviam toda a terra, o céu e o mar.
Enormes ondas se lançavam violentamente sobre os promontórios,
e o arrojo dos imortais produzia tremores incessantes ao seu redor.
[pegamos a tradução de Sueli Maria de Regino dos versos citados pelo autor]

O raio de Zeus calcinou todas as cabeças do monstro de todos os lados. Arrasado pelos golpes de Zeus, Tifeu colapsa aleijado numa montanha remota, com chamas se projetando de seu corpo e queimando a terra. Finalmente ele é lançado no Tártaro. É digo de nota o quanto suas aflições batem com as de Vṛtra, cuja cabeça é partida, o corpo queimado, jaz partido numa montanha e escondido nas trevas.

Hesíodo deixa claro que Tifeu é uma figura meteorológica explicado que ele é fonte dos ventos selvagens e redemoinhos [tufões e tornados!] (869-80). Numa passagem similar na ‘Ilíada’ (2. 780-3) o golpeado de Zeus em Tifeu parece ser algo que acontece de tempos em tempos.

Há outro famoso encontro no qual um deus Olimpiano mata um dragão. Apolo mata Pitão em Delfos. À primeira vista não parece ter muito em comum com os mitos que estamos comparando. A Pitão é somente um serpente pestilenta que traz morte para o povo e os animais na região. Apolo não é um deus da Tempestade, e ele mata o monstro com flechas, não relâmpagos. Mas é curioso que no ‘Hino a Apolo’ a criatura é associada com uma fonte em Delfos (300), e que imediatamente após matá-la Apolo volta a outra fonte onde ele havia pensando em estabelecer seu santuário, Telfusa, e o cobre com pedras (375-83). A associação destes motivos, bloqueio do fluxo das águas e o abate do dragão, pode ser uma relíquia fragmentada de um mito similar ao de Indra e Vṛtra.

Entre a prole de Tifão Hesíodo conta a Hidra de Lérnea que Hércules abateu com a ajuda de Iolao. Seu nome a distingue como uma criatura aquática. De acordo com outras tradições literárias e evidências artísticas, ela era um serpente com um corpo gigante, muitas cabeças e hálito venenoso. Não há acordo nas fontes sobre qual arma Hércules usou contra ela, seja uma espada, uma foice, uma clava, um arco ou pedras. Mas da segunda metade do sexto século é uma característica da estória que as cabeças esmagadas ou tolhidas tinham de ser cauterizadas com fogo para prevenir sua Hércules cortou-as e enterrou embaixo de um pesada rocha (Apollod. 2. 5. 2. 5).

Na Antiguidade as cabeças da Hidra eram interpretadas como prolíficas fontes de água que continuavam a borbulhar e inundar zonas campesinas; se uma fosse bloqueada, outras apareciam, até que Hércules queimou a região e interrompeu o fluxo (Serv. Aen. 6. 287, sch. Stat. Theb. 1. 384). Isto é o oposto do feito de Indra que libertou os sete riachos ao matar Vṛtra. Mas há motivos comuns em demasia – a grande serpente ocupando um local aquoso, o esmagamento e a cauterização das cabeças, o encobrimento com rocha – a sugerir que, aqui novamente, alguns elementos de um mito Indo-Europeu foram preservados.

Thor, um genuíno Deus do Trovão, matou (ou talvez apenas feriu) a serpente Miðgarð ‘que jaz ao redor de todas as terras’ (Gylf. 47). Ele saiu em um barco com o gigante Hymir para o alto mar e pescou o monstro, usando a cabeça de um boi como isca. Ele conseguiu tirar a cabeça do monstro para fora da água e deu-lhe um golpe esmagador com seu martelo, fazendo-a submergir de volta no mar (Hymiskviða 20-4). O poema deixa em aberto se o golpe foi ou não fatal. Snorri, contando a estória mais completamente (Gylf. 48), escreve ‘e os homens dizem que ele arrastou a cabeça para a praia. Mas eu acho que a verdade é que a serpente Miðgarð ainda vive e circula em torno do mar’. Neste mito nórdico a grande serpente é localizada fora do nosso mundo e não tem de ver com fontes de água. Mas como Vṛtra ela é golpeada na cabeça pela arma do Deus do Trovão e afunda nas águas, onde agora jaz escondida. A frase que Snorri usa sobre ela, que “jaz em torno de todas as terras” (liggr um lǫnd ǫll), é reminiscência da fórmula repetidamente usada de Vṛtra, áhann áhim pariśáyām árṇaḥ (RV 3. 32. 11; 4. 19. 2; 6. 30. 4).

As mitologias registradas mais recentemente no leste da Europa trazem uns poucos motivos residuais que sejam relevantes neste contexto. Na Lituânia a primeira trovoada de primavera de Perkunas é tida como “desbloqueadora da terra” do estado congelado do inverno. O eslávico Perun combateu um dragão, um conflito posteriormente transferido para São Elias. De acordo com uma lenda ucraniana o ferreiro divino Kuy, que ajudou o Deus do Trovão contra o Dragão, carpiu uma ranhura com seu corpo, e esta foi a origem do rio Dnieper com suas ‘curvas serpenteantes’. Mitos albaneses falam de um dragão chamado Kulshedra (do grego chersydros, uma serpente anfíbia) ou Ljubi, que cresce enormemente na gruta de uma montanha e que por vezes causa a seca de rios, apesar de que sua aproximação também traz tempestades; ela possui nove línguas e cospe fogo. Mas o que é mais temido é sua urina letal. Ela é enfrentada por Drangue, que usa meteoritos ou espadas-relâmpago e protege a humanidade da tempestade ao sobrepuja-la e cobri-la com pilhas de troncos e pedras.

[A título de informação, Emily Lyle sugere no Ten Gods, 2012, p. 106-111, que o motivo do Dragão possui base cosmogônica primordial entre os Indo-Europeus e que dentro da estrutura que ela propõe, há dois “dragões”: um associado com a seca e outro com as inundações, sendo ambos “filhos” ou mesmo, “manifestações” negativas da Terra primordial em represália a “castração” do Esposo primordial, cuja genitália é transformada na “super-arma” do Deus Rei. É uma interpretação ousada e que possui muitos desdobramentos, merecendo uma análise pormenorizada posteriormente. Na sua compreensão espaço-temporal, o período de 3 quinzenas anteriores ao Solstício de Verão pertencem a “Mãe Primordial” e o das 3 quinzenas posteriores a “Rainha”, ficando o Solstício de Verão em si sem ser claramente associado. De notar que entre os Celtas continentais ao menos o Solstício de Verão possui uma associação com o Deus do Trovão e muito provavelmente com o mitema da derrota do Dragão. Entre os irlandeses, como é bem sabido, a derrota de Balor pelo neto Lugh, é um evento que antecede a festividade do Lugnasad e que comumente fora associado ao Solstício de Verão. As tradições folclóricas dos Solstício de Verão no Ocidente, todas apontam para fogueiras e certa “cauterização” de males, a tradição da emulação mítica do lançamento da roda de Taranus fora mantida na Gália por um bom tempo e possui resquícios no folclore português e galego. De lembrar que na Ibéria, o mais provável candidato folclórico ao Dragão Indo-europeu é a Coca – no Brasil, popularizada no imaginário popular como “fêmea” e uma espécie de “Jacaré” nos contos de Monteiro Lobato. No Nordeste, se tem a tradição oral de ver a seca tirana como um Dragão ou como alimentada pelo hálito de um – popularmente a ser caçado por São Jorge, tradição de possível herança portuguesa e galega e que por sua vez, é a substituta, deformada e “cristianizada” da antiga tradição Indo-Europeia. Como ponto de partida para compreender mais sobre o Deus do Trovão da Gália e a sobrevivências de seus cultos recomendamos Jean-Jacques Hatt ‘Mythes et Dieux de la Gaule‘ e Oliveria Pedreño ‘Los Dioses de la Hispania Céltica‘. Para saber mais sobre as tradições folclóricas portuguesas acerca do “São João”, recomendamos Theóphilo Braga ‘O Povo Português em seus Costumes, Crenças e Tradições‘ e sobre nossa rica herança de lá, recomendo os capítulos Ad petendam pluviam e ‘Advinhas de São João’ – este último mais como um registro sobre as ligações com fecundidade – do ‘Superstição no Brasil’ de Luís da Câmara Cascudo]

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