Ainda sobre o artigo anterior, sobre a abertura dos jogos olímpicos de Paris. Informaram-me que na verdade, algum diretor da abertura teria dito – não fui checar a informação, diga-se de passagem – que o espetáculo final onde supostamente Drag Queens parodiavam a ‘Santa Ceia’ cristã, não era bem sobre o Cristianismo. Pasmem, era uma encenação montada a partir de uma peça “pagã”: o quadro ‘Le festin des dieux’ da primeira metade do séc. XVII de autoria do holandês Jan van Bijlert. Eis o quadro:

Não pretendo analisar o mesmo a fundo nem realizar uma imersão que promova uma experiência estética do dito quadro, nem muito menos promover um comentário técnico sobre a obra, mas apenas pontuar que Apolo é retratado no centro. E eu gostaria que o leitor percebesse isso. Qual o significado disso para nós? Afinal, muito provavelmente, se trata de uma obra que retrata cenas mitológicas greco-romanas por motivos de mero “classicismo” pós-renascentista sem nenhuma vinculação religiosa que aponte para adesão ou crença na existência das entidades ali representadas por parte do autor da obra. Não sei, sou leigo sobre o autor e a obra, mas suponho algo do tipo. E desconhecer o autor e a obra não são demérito; afinal, essa obra especificamente não está entre as mais populares e rapidamente identificáveis e reproduzíveis, presentes em inúmeras referências culturais modernas, ao contrário, digamos, do quadro da última ceia.
Bem, aí nos vem a primeira estranheza: será que, realmente, esse quadro teria sido, desde sempre, a primeira referência a ser parodiada (dado o desconhecimento do público leigo em geral), ou apenas um “tampão” ou “plano de fuga” para caso a repercussão da paródia com a última ceia não caísse bem? Bem, acho que nunca saberemos. Talvez as vinculações ideológicas autodeclaradas do diretor artístico da abertura nos indique algo… Não sei, talvez só um talvez. Em todo caso, diria que a simples dúvida razoável sobre a obra originalmente inspiradora, dado todo o contexto das repercussões negativas oriundas de diversos setores e posições ideológicas e religiosas, nesse caso específico, já devia nos fazer franzir a testa com uma certa suspeita. Afinal, vamos dizer que eram “deuses pagãos e ninguém liga que zoemos ou debochemos os deuses gregos, afinal a Grécia era um paraíso gay e tal” seria uma ótima maneira de se livrar ou amenizar os ataques oriundos dos cristãos ofendidos. Ou não? Não tenho dúvidas de que seria uma conveniente desculpa esfarrapada.
Bem, suponhamos que realmente a obra de Jan van Bijlert fosse o pano de fundo e que as Drag Queens ali estavam representando os deuses do Olimpo. Nesse caso, seria tolice e cripto-cristianismo se algum “pagão” se ofendessem ou achassem isso blasfemoso, certo?
De minha parte, creio que há motivos sim para considerarmos tal representação no contexto em que aconteceu como ofensiva. Há muitas maneiras de se expor isso e, infelizmente, muitos nuances filosóficos e teológicos que podemos explorar e debater para justificar nossas posições. Tentarei ser o mais sucinto possível e nisso corro grande risco argumentativo, mas o farei por estar também interessado na fomentação do debate e não só numa admoestação ou apologia.
Antes de iniciarmos, gostaria de deixar claro que há muita desinformação em se tratando da antiga sociedade grega e a questão da homossexualidade e isto termina respingando na questão das tais Drag Queens. Felizmente, aos poucos, alguns exageros e mentiras tem sido desfeitas e algo tem saído da esfera puramente acadêmica e chegado ao público mais leigo, inclusive em português, como se pode ver aqui (recomendo para quem não está familiarizado com o debate). Havia “homofobia” sim na Grécia antiga e não deveria ser necessário sair coletando citações de gente famosa como Platão, Aristóteles, Xenofonte, Ésquines, etc. para se provar isso. Estas citações são importantes, pois não se trata de “achismos” nossos, mas de helênicos antigos, “pagãos”, eles mesmo demonstrando que certos comportamentos eram mais restritos a certas classes sociais e mesmo assim, mal vistos (especialmente pelas classes mais baixas). Também é verdade que, apesar disso, as relações entre pessoas do mesmo sexo possuíam alguma aceitação – especialmente entre as classes mais altas – e seriam, se por exemplo, compararmos com a Europa Medieval no séc. XIV, menos problemáticas, principalmente se os envolvidos casassem e tivessem filhos (o que obviamente indicaria muito mais bissexualidade). Creio que não precisamos entrar nessa questão, apenas pontuar como isso pode atrapalhar o debate para que não nos acusem levianamente de homofobia, transfobia ou qualquer outra coisa. Afinal, a questão seria mais se Drag Queens seriam representações aceitáveis dos Deuses Olímpicos numa apresentação pública para um plateia global.
Minha resposta é que, para tal plateia, numa tal circunstância, tal representação é desnecessária e potencialmente ofensiva. Em termos claros: não seriam representações aceitáveis. E como já falei no artigo anterior, considero que tal apresentação consiste numa espécie de demonstração de fraqueza cultural. Quando digo “potencialmente ofensiva” não estou dizendo que todos os pagãos devam se ofender, sem exceção, mas estou efetivamente afirmando que é perfeitamente cabível que se ofendam justificadamente. E não fazem isso por serem “cripto-cristãos” ou por serem “menos pagãos”.
- Não há antecedentes satisfatórios disso na Antiguidade helênica, muito menos numa cerimônia de abertura olímpica. De modo que as mulheres podiam figurar sim como Deusas ou sacerdotisas nas peças de teatro e não parece haver razões para que isso não seja feito hoje. Afinal, por qual motivo Drags deveriam roubar o protagonismo feminino na representação de deusas em nossa época?
- No geral, sem considerarmos exceções muito específicas, as representações dos Deuses – especialmente no mundo greco-romano – sempre visam enfatizar seu poder, força, beleza, despertar admiração e reverência. A representação debochada, transgressora e propositalmente ofensiva é por si mesma, anti-olímpica, titânica e disforme, oposta ao cosmo-estético-moral enfatizado e defendido por Zeus e os olimpianos. Ou seja, não é algo nem ortoprático nem ortodoxo.
- Mesmo na dimensão “transgressora” de uma certa compreensão dionisíaca radical, alguém poderia pensar, isto requereria um “contrabalanço” ou purificação, de modo a enfatizar catarticamente o kalos kosmos ao final, do contrário transformar-se-ia tudo numa hybris, cujos inúmeros relatos míticos apontam ser fonte de infortúnio e desgraça para os humanos. Não me espantaria nada que os perpetradores desse espetáculo grotesco, cedo ou tarde, de um jeito ou de outro, tenham destinos funestos.
- Em termos teológicos, é difícil, até onde consigo ver, utilizar conceitos pitagóricos, platônicos ou estoicos para defender uma representação moralmente transgressora das divindades numa apresentação pública do tipo a ser vista globalmente por povos de diversas culturas e línguas. Na verdade, se alguém consegue imaginar um Jâmblico, ou um Plotino, ou um Marco Aurélio batendo palmas entusiasmado para uma tal apresentação eu ficaria curioso pra saber como a pessoa justificaria tais palmas. E vejam que nem sequer falei de Platão, Xenofonte ou Aristóteles.
- Mesmo num esquema moderno, fora do hellenismos original, nietzscheano, de um dualismo dionisíaco x apolíneo (que podemos considerar como problemático ou desnecessariamente maniqueísta) não se embasa bem tal transgressão, ao menos que a encaremos como uma destruição inferiorizada a ser superada por uma construção superior (que como referimos antes, espelha um certo esquema tradicional báquico). O que não ocorreu no espetáculo cujas emanações foram de um miasma niilista mais do que qualquer coisa übermenschiana. E mesmo que cega e fanaticamente prefiramos uma transgressão pseudo-dionisíaca como aceitável, não deveríamos – ao aderir a tal esquema conceitual – rechaçar a possibilidade de uma crítica apolínea. Poderíamos até não gostar, mas as críticas apolíneas seriam previsíveis e normais. Que tenha transformado Dionísio numa espécie de Papai Smurf semi nu e sem carisma, que ao invés de atiçar a sensualidade, causa repulsas; mas tal impiedade não apaga a possibilidade de um olhar apolíneo como igualmente válido. Além de que poderíamos pensar que se de fato a cena toda foi baseada no quadro Le festin des dieux, cuja centralidade é Apolo, e se focou em substituir o deus por uma figura queer obesa, os autores tinham por intento, muito mais provavelmente vilipendiar a imagem do filho de Leto, do que louvar Dionísio. Ou seja, não se louvou Dionísio nisso em nada, na verdade, se ofendeu tanto Dionísio quanto Apolo.
- Talvez alguém diga que não deveríamos nos importar com isso, por se tratar dos Deuses “gregos” e que os cultores deles que se resolvam, até porque, pois, talvez muitos aceitem de bom grado isso tudo e cá estamos focados no Iberoceltismo. Cá parto de uma percepção Indo-Europeia, creio que os principais deuses do panteão grego não são só “gregos” e que tal coisa diz respeito também a todo aquele que também crê e cultua em tais deuses, mesmo que com outros nomes e associações culturais diferenciadas.
- Além disso, é importante frisar que alguns desavisados, por ignorância ou má-fé, podem utilizar expressões anacronicamente revoltantes como “Os deuses são LBGTQ+” ou coisa do tipo. Esse tipo de apropriação anacrônica tão invasiva é muito mais típica de uma asebeia do que de uma mentalidade reverente. Não só repete tolices e malabarismos teóricos fajutos visando justificar deturpações como “Platão era cristão antes de Cristo” ou “os germânicos antigos eram Socialistas” ou “comunistas antes de Marx”, como aprofunda e normaliza sutilmente uma perspectiva não só antitradicional, como ofensiva. Os Deuses são o que São. Não deveriam, especialmente por quem diz cultuá-los, serem empacotados numa caixinha woke para servirem mais vendavelmente na prateleira mercadológica da modernidade liberal.
Creio que isso seja o suficiente. Há outros argumentos possíveis e ângulos que não explorei, não tenho dúvidas. Mais uma vez friso que me centro numa perspectiva que coloca ênfase no papel e na visibilidade que a abertura das olimpíadas têm, que é algo muito diferente de uma peça obscura para uma plateia diminuta num gueto cultural qualquer. Roguemos ao filho da gloriosa Leto, o arqueiro Apolo, que – para citar o hino homérico n. 3 – “(…) faz tremer os deuses, quando vai ao paço de Zeus. Todos se levantam dos seus assentos, quando ele, vindo perto, estende seu arco brilhante” (trad. de Maria L. G. Massi) para que ilumine nossas mentes e afaste de nós a ímpia conivência com a disforme e maldosa ofensa ao divino. E que Zeus, o magnânimo, que “troveja nas alturas e habita excelsas moradas” – para citar Hesíodo – por cuja graça “os homens mortais são obscuros ou famosos, sábios ou ignorantes. Facilmente ele dá força ao fraco e facilmente ao forte enfraquece; facilmente rebaixa o ilustre e engrandece o ignorado; facilmente ergue o curvado e facilmente verga o arrogante” (trad. Sueli M. de Regino). Promova a Justiça com sentenças corretas. Ao leitor que chegou até aqui, agradeço a leitura!

“Informaram-me que na verdade, algum diretor da abertura teria dito que o espetáculo final onde supostamente Drag Queens parodiavam a ‘Santa Ceia’ cristã, não era bem sobre o Cristianismo. Pasmem, era uma encenação montada a partir de uma peça “pagã”: o quadro ‘Le festin des dieux’ da primeira metade do séc. XVII de autoria do holandês Jan van Bijlert.”
Balela desse pessoal. Não acredite nessa mentira. Eles imitaram sim a Santa Ceia. Sou apaixonado por Olimpíadas. Sempre me sinto mais próximo dos deuses nessa época. Em toda abertura de Olimpíadas, vemos um país contando um pouco de sua história e de sua cultura. Nesta última, não vimos isso. O que vimos foi a anunciação de algo perverso. Aquela festa feia e depravada foi uma zombaria de péssimo gosto.
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“Os deuses são LBGTQ+”. Resumiu a tônica de boa parte da comunidade neo-pagã (ou que assim se afirma). Não enxergam o que os deuses são, não interpretam seus sinais, mas fazem o processo inverso: tentam remoldar os deuses e distorcer suas características para que se encaixem nas definições relacionadas a gênero, classe e economia defendidos por tais grupos, como forma de legitimar um comportamento atual. Essa é uma tática comum daqueles ligados ao espectro de esquerda mundial, em uma grande mistura de ignorância com maldade.
“Talvez alguém diga que não deveríamos nos importar com isso, por se tratar dos Deuses “gregos” e que os cultores deles que se resolvam”. Definitivamente, não. Desonrar os deuses gregos é desonrar os deuses indo europeus. Como citado no texto anterior, há de se interpretar os sinais que estão surgindo, e que tenhamos sabedoria para não sair do caminho correto.
Ótimo texto, Marcílio.
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