Reconstruir X Desconstruir: Sobre o passado e o que fazemos dele no presente

Quando eu estava cursando história na universidade, vários professores usavam o termo “descontruir” para se referir à função do historiador. Eles queriam dizer que o papel do historiador ao tomar uma fonte como objeto de análise para recontar a história de um passado, é compreender em todos os seus aspectos e detalhes aquela fonte. O que é esta fonte? Um documento escrito ou objeto? Como é? Quais suas características? Quem a produziu? Quando a produziu? Com que intuito? Quais as crenças e ideologias que influenciaram este autor? Qual o momento sócio-cultural, econômico, político, e os atos que foram estopim desta obra? Para analisar uma fonte histórica é preciso compreender todo o contexto histórico no qual ela está imersa, e para isso o historiador estuda os trabalhos anteriores de outros autores. Então o trabalho dele passa a ser não só o de analisar a sua fonte, mas o discurso, a narrativa histórica construída pelos outros autores. É neste ponto que o historiador precisa entender que os outros autores também são produtores influenciados por seu tempo, contexto social, cultural, político, econômico, e por suas próprias convicções. Então, o historiador não toma os documentos históricos ou livros como verdades acerca do passado, ao contrário, ele os toma como construções de um ponto de vista sobre o passado. É por isso que o ofício do historiador é também o de desconstruir narrativas.

É por entender tudo como um discurso, um ponto de vista que diz mais respeito ao indivíduo que o produziu e a seu tempo, do que a respeito do passado que intentava narrar, que o historiador entende seu próprio trabalho e o dos outros autores e dos produtores de qualquer documento (escrito, artístico ou objeto qualquer) como um monumento. Isto não quer dizer, é claro, que qualquer objeto deva ser posto em um pedestal e cultuado. Só quer dizer que o historiador entende que o mais ínfimo objeto, desde um sapato encontrado em túmulo de 3.000 anos de idade até uma charge produzida por um desenhista no ano passado, são documentos que contam uma história, e por isso devem ser preservados. Nós desconstruímos o discurso, mas preservamos o documento. Não temos, nem ninguém tem, o direito de apagar o passado ou os discursos históricos.

À medida que minha graduação foi seguindo e, com ela o tempo e a minha habilidade de problematizar discursos, narrativas e padrões culturais foi se aprimorando, eu percebi que o termo “desconstruir” possui também uma outra conotação. No afã de compreender a tudo como um discurso, como uma criação, uma produção mutável ao longo do tempo e do espaço, a maioria dos cientistas humanos de nossos dias passou a ver tudo como algo inexistente de fato: nada é concreto e imutável, tudo atende a um propósito. Os cientistas humanos dos nossos dias desejam reformar o mundo e a sociedade. Em sua maioria imersos no ideal de universalismo e evolucionismo marxista, eles acreditam que a desconstrução é um meio para se alcançar uma sociedade ideal. Por isso dedicam-se não só à desconstrução metodológica em seu ofício, mas à desconstrução, supressão e reposição de toda e qualquer crença, tradição, costume e padrão de mentalidade que se oponha a sua ideologia.

Este movimento cultural no qual os cientistas de humanas estão imersos alcança, como é de esperar, vários setores da sociedade que têm mais acesso a uma educação próxima da erudita, no entanto, sem aparato teórico, e sem conhecer as origens desta desconstrução, e nem mesmo que este movimento e as pessoas que fazem parte dele são também produtos de seu próprio tempo, elas não percebem que estão imersas e sendo conduzidas, como submersas numa onda, à revelia do critério da lucidez.

Para a desgraça de toda a sociedade, elas intentam não mais desconstruir, mas destruir todo e qualquer alicerce sócio-cultural, e até mesmo os biológicos expressos na cultura. Em alguns casos, elas chegam mesmo a destruir documentos e monumentos. Vimos um exemplo disto semana passada com o vandalismo do Monumento às Bandeiras em São Paulo capital, justificado de acordo com alguns influentes de Esquerda como uma forma de protesto contra a opressão indígena imposta pelos colonizadores no passado. Historiadores conscientes e leais a seu ofício não só lamentaram, como também sentiram-se frustrados e ofendidos em seus esforços por preservar e narrar o passado, alguns até mesmo manifestaram-se a respeito. Mas me lembro de no 3º ano do curso assistir a uma palestra de um jornalista e sua junta de cientistas humanos que criaram um movimento político para alterar o nome de um bairro na cidade aonde a universidade se situa. Eles alegavam que por ter o bairro sido criado por um regime político anterior e contrário a suas ideologias, e ter sido nomeado com a data na qual o regime foi implantado, deveria ser alterado. O que me mostrou, na época, que até mesmo cientistas humanos podem perder o critério teórico e de lucidez, e intentar destruir monumentos documentos que atestem a existência de um passado em discordância com o seu ideal de futuro.

Vê-se também exemplos da desconexão com os costumes e com a biologia na desconstrução dos gêneros tradicionais e criação de novos modelos também na semana passada com a injunção do Parlamento Alemão de que exista um gênero indefinido sob o qual os pais podem agora registrar seus filhos. As crianças agora não serão mais registradas de acordo com seu sexo biológico, mas com o possível gênero a que poderão optar na idade adulta, no aspecto de gênero, seu documento é uma lauda em branco, seu sexo é de imediato reconstruído e, sobre estes bebês posta a responsabilidade de criarem um gênero para si mesmos. Durante a votação deste mesmo projeto, o parlamentar Steffen Köninger posicionou-se contra e afirmou não crer na existência de 2 ou 3, mas de 60 gêneros. Bem, ao menos este projeto não extinguiu a possibilidade de os pais registrarem seus filhos de acordo com o gênero que o seu sexo presume, apenas abriu precedente para que uma tradição de origem obviamente biológica seja, paulatinamente abandonada em função de um único gênero indefinido, fundamentando na existência da exceção à regra.

Ou seja, o objetivo é o mesmo, desconstruir para homogeneizar e universalizar um ideal. O senhor Köninger estava, em verdade, correto em opor-se ao projeto. Se eu seguisse essa linha desconstrucionista, como Politeísta Celta, eu poderia estar depredando ou exigindo a desconstrução de todas as igrejas e altares cristãos erigidos sobre os megalitos, templos e locais sagrados outrora erguidos por meus ancestrais, durante a cristianização da Europa. Mas não me parece sensato, porque eu não me acho no direito de desconstruir a história de um outro grupo para preservar apenas a minha. Se eu o fizesse estaria sendo tão abusiva e criminosa quanto os cristãos do passado que oprimiram e apagaram as tradições e história dos meus ancestrais, e empreenderam o mesmo na colonização do Brasil e destruição das etnias indígenas. No caso, os mesmos agredidos na depredação do monumento já citado.

Os cristãos atuais têm alguma culpa disso? Acho que não. Afinal de contas, este movimento desconstrucionista resume-se a negar os erros do passado erguendo erros semelhantes sobre os anteriores.

Antes de entrar no curso de graduação eu já era politeísta, mas não era uma reconstrucionista, e nem tinha a dimensão que tenho hoje deste termo. Mas antes de encerrar minha graduação eu já havia digerido bem toda esta tendência cultural desconstrucionista destes setores acima citados, e já tinha concluído que meu caminho é o oposto: acredito em reforma, não em destruição. Eu sou reconstrucionista, não apenas na acepção religiosa da palavra, eu sou reconstrucionista para tudo o mais que possa existir. Isso não quer dizer que eu apoie determinados regimes políticos do passado, ou que apoie a exclusão das exceções à regra de gênero, nem nenhuma outra. Só quer dizer que eu busco uma vida mais simples, mais próxima da natureza na terra, da natureza em mim, na minha espécie, nas etnias das quais descendo.

Como reconstrucionista, eu sou essencialmente uma preservadora do meio-ambiente, do passado, das crenças, dos documentos e monumentos, da memória, dos ancestrais. Isto tudo compõe o que eu sou, e o lugar que ocupo no mundo. Por consequência também sou essencialmente uma conservadora da diversidade, da heterogeneidade – contrária ao universalismo e a homogeneização, porque eu rejeito aquilo que me nega e nega o direito de existir das tradições ancestrais, particularidades culturais e genéticas, sociais, econômicas, geográficas e de todas as demais.

 

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