Texto originalmente publicado no blog “Parahyba Pagã” em 24/05/2008. Mantivemos a redação original, caso hajam novos comentários estes aparecerão entre chaves [] no texto.
Por Alexei Kondratiev
(Versão em Português por Marcílio Diniz)
© protegido por direitos autorais 1997 Alexei Kondratiev
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Por predominar hoje a exposição à mitologia por meio das criações literárias dos gregos e romanos, nós somos condicionados a pensar nela de um modo literário e exigir dela um grau de lógica interna e consistência que normalmente tradições mitológicas vivas não têm (ou o que alcançam de modo diverso). Tentar usar as “mitologias” irlandesa e galesa como a base para uma teologia Céltica consistente é no final das contas infrutífero, porque nunca foram projetados para serem sistemas religiosos funcionais, pois são criações literárias elaboradas muito tempo depois da religião na qual tinham se originado cessar de ser praticada. Como os mitos Arturianos, elas se tornaram mais consistentes internamente com o passar do tempo (i.e. enquanto tornaram-se mais autoconscientes em termos literários e menos afinadas com preocupações religiosas), assim como as diferentes tradições de histórias também crescem mais distantes uma da outra.
Eu penso que uma melhor aproximação [em se tratando de Mitologia e Politeologia] é olhar como os deuses se ajustariam na prática religiosa atual. Quem os adorou e por quê? Este é um modo de se olhar para isto.
I. Divindades Tribais
Deuses do seu grupo familiar imediato (ueniā) [o autor utiliza os termos em gaulês clássico]. Estes seriam principalmente espíritos ancestrais e seu culto seria limitada a casa.
Deuses de seu grupo profissional (kerdā). Estes seriam deuses que servem como arquétipos para sua ocupação, como também deusas que dão energia àquela ocupação (eu sei que soa machista, mas este é o modo como era!). A adoração seria parte em casa e parte em um santuário de sua associação profissional se ela é rica bastante para dispor de um.
Deuses de sua área tribal maior (toutā). Incluiria seu próprio deus tribal tutelar, freqüentemente junto a figuras divinas inter-tribais de origem indo-européia que são vistas como mantendo a ordem tribal. É associado com a adoração da deusa da Soberania da Terra na qual se vive, normalmente identificada com o rio principal que flui sobre esta.
II. Divindades de terra
A própria Terra está cheia de divindades de fertilidade que são caóticas e independentes do conceito de Ordem tribal. Elas são, não obstante, necessárias à sobrevivência da tribo e tem que serem propiciados (ou “amansados”) como uma parte do ciclo agrícola.
As divindades “inter-tribais” são muito numerosas para se discutir completamente neste artigo mas nós podemos listar as principais. Alguém pode as ver entrando e saindo de “moda” durante a Idade do Ferro, com algumas ganhando em proeminência enquanto outras diminuem (precisamente como o que vemos acontecimento no Hinduísmo depois do período Védico). Eu usarei os nomes da Interpretatio Romana, não porque eu penso que os romanos tiveram uma idéia certa, mas porque eles são consistentes!
O “Mercúrio” Céltico. Seu crescimento em prestígio é espetacular durante a tardia Idade do Ferro, até que se torna um das principais figuras (se não a principal) no panteão em todos lugares. Ele normalmente é chamado ‘Lugus‘ (“Raio Brilhante”*– o nome do herói do gibi é de fato um ajuste bem íntimo!) ou um nome semelhante em derivação e significado (como ‘Loucetios‘). Ele é um guerreiro, mas também mestre de todas as artes e habilidades necessárias a sociedade, e como tal se torna um protetor da sociedade como um todo–um papel que exercita completamente no começo da Colheita, quando ele toma o controle dos frutos campesinos dos Espíritos de Terra que também são sua família. Sua arma é a lança que é o raio-relâmpago e também, metaforicamente, o brilho de inspiração e intuição. Seus animais principais são o corvo, o cavalo, o lince, e a carriça (parte de seu mito é que ele é um “pequeno” deus que burlou todos os seus rivais). É o padroeiro divino de soberanos humanos e como tal seu cônjuge principal é a Deusa Soberana que apresenta a soberania como uma bebida intoxicante; mas como Mestre das Artes ele trabalha também com a “Minerva” Céltica cujo período festivo equilibra o seu dentro da estrutura do Ano Céltico.
O “Marte” Céltico. Ele é o deus que fixa os limites do mundo civilizado e os protege por meio da força dos braços. Sua arma é a espada e seu animal é o cachorro. Embora como um guerreiro ele seja aquele que dá a morte, os mistérios da morte são vistos como intimamente relacionado aos mistérios do renascimento e da cura, assim seus principais santuários são curativos. A história na qual ele perde uma mão ou braço e o substituiu por um prateado é indubitavelmente antiga, entretanto é difícil contar como estava difundida na Idade do Ferro.
O “Júpiter” Céltico. Ele é o deus do céu que rege o tempo e traz chuva. O trovão é causado rolando sua roda pelo céu, e seu nome habitual é Taranis (“Trovoador”). Ele é particularmente presente em regiões montanhosas. Com o passar do tempo seu culto diminuiu até que se tornou mero ajudante de “Mercúrio” que como ele foi associado com tempestades e lugares altos. Na realidade, Sulpício Severo nos fala que os Galos-romanos achavam fácil desviar de seu culto porque ele era “estúpido” (‘hebetus‘), enquanto achavam mais difícil de deixar seu afeto a “Mercúrio”.
O “Silvanus” Céltico ou Deus Com Chifres (Karnonos/Cernunnos). Ele é o deus que cruza limites, e o deus da mudança. Ele é a interface entre a Tribo e a Terra e entre nosso mundo e o Outromundo. Por meio dele podem ser passados bens de um reino para outro (conseqüentemente sua associação com dinheiro), e podem ser obtidas valiosas coisas da Natureza crua. Ele também manifesta mudança como adaptabilidade, assim como expresso por seus chifres que caem e crescem de novo de acordo com a estação. Por causa de algumas de suas funções sobreporem com as do “Mercúrio” Céltico que para eles [os gauleses] eram mostrados freqüentemente juntos, embora nenhum substitui o outro, desde que seus caracteres básicos são bastante diferentes.
A “Minerva” Céltica. Por causa das Deusas no pensamento Céltico serem vistas principalmente como fontes de energia (equivalente ao conceito hindu de ‘shakti‘), as distinções entre elas tendem a obscurecer e serem menos claras que no caso dos deuses, como muitos escritores do assunto observaram. Mas as que representam todas as formas de energia e não só as provê às funções de crescimento na Terra mas para todas as formas de atividade humana e criatividade normalmente são bem caracterizadas. O nome delas normalmente contém o elemento ‘brig‘ (“alto, exaltado, ascendente, enérgico”) embora possam levar outras formas como “fonte”. Seus animais são a vaca e o ostraceiro (e por extensão todas as coisas na natureza que são pretas, brancas e vermelhas). Sua flor é o dente-de-leão. Sua experiência com matrimônio e maternidade é normalmente infeliz (como com a maioria das “deusas de cultura” Indo-européias), assim é retratada freqüentemente como uma “virgem” [solteira].
Por os cavalos terem feito um papel grande nos sucessos militares dos Celtas na Europa, o cavalo era um símbolo de soberania e poder político (ao contrário do gado que era um símbolo da Terra e de riqueza material). Assim a deusa que deu legitimidade ao poder da tribo foi retratada como montada em um cavalo, ou como uma égua. Esta (Epona, “Grande Égua”) era um aspecto particular da Deusa de Soberania, distinto de, digamos, Rosmerta que é quem dá aos governantes a bebida intoxicante. A “Minerva” Céltica, por outro lado, era uma representação mais geral de deusa-energia que poderia ser invocada em uma maior gama distante de situações: ela deu a energia da regência para governar, mas também todo outro tipo de energia que fosse preciso.
O modelo Hindu pode ser muito útil para ajudar-nos a entender a visão Céltica de deusas que eram bastante semelhantes. Para os hindus, deusas são fontes de energia e eles se referem freqüentemente a uma coletividade como simplesmente Shakti (que pode ser personificado como Durga, a deusa virgem suprema que é a fonte de toda a energia no universo). Mas quando a energia é aplicada a um propósito específico, as deusas são diferenciadas: como Sarasvati (cultura e criatividade), Lakshmi (fertilidade e riqueza, conforto material) ou Kali (destruição e renascimento). da mesma maneira, pode ser dito que virtualmente todas as deusas Célticas são deusas de Soberania, Deusas-da-Terra, etc., mas eles assumem nomes diferentes e atributos quando requeridas em circunstâncias específicas [esta é, sem dúvida, uma tese que provocadora – rende muito debate].
Sucellos (o “Bom Golpeador”). Normalmente retratado como um homem maduro com uma marreta, a cabeça da qual é, de fato, um barril ou caldeirão (i.e. dando morte com um lado, vida com o outro). Este é evidentemente o mesmo deus-tipo como o que foi conhecido o ‘Dagda‘ “Bom (=Eficiente) Deus” na Irlanda. Ele é escolhido freqüentemente representar o deus tutelar tri-funcional de um território tribal (‘Toutatis‘). Sua cônjuge é a Deusa do Rio territorial. Na Gália sulista ele foi interpretado às vezes como “Silvanus” (ele e Cernunnos possuíam caldeirões).
Maponos (significando “Supergaroto” [“Superboy”], essencialmente!). Este deus é associado com a mocidade, vigor e crescimento, e particularmente o poder do Ano lustroso enquanto os dias se tornam mais longos, que às vezes o levou a se tornar um “Apollo” dentro da Interpretatio Romana, embora o “Apollo” Céltico habitual é um deus diferente. Originalmente era intimamente associado com a caça e a Terra. Ele foi invocado como uma fonte de energia e crescimento rápido, como ilustrado pela inscrição de Chamalieres. Seu animal é o cisne e pássaros que vivem na água em geral. Na tradição literária posterior seu nome aparece como Mabon em galês e como Aengus epíteto ‘in Mac Óc’ em irlandês.
Eu deveria somar cá que o outro animal relacionado especialmente a Maponos (como caçador) é o javali, e é pela sua participação na antiga estrutura mítica da “Caça do Javali Cósmico” na qual as metades de Luz e Escuro do Ano são definidas (ele morre ao limiar da metade Escura, claro). Sua cônjuge é a Dama da Flor: seu matrimônio com ela marca o ápice da sua carreira de “crescimento”.
Os Gêmeos Divinos. A única sobrevivência literária destas divindades indo-européias importantes consiste em Nisien e Efnisien no Segundo Ramo do Mabinogi. Mas eles eram evidentemente uma parte importante de religião antiga Céltica, como a proliferação de templos e dedicações a “Castor e Pollux ” atesta. Como na maioria de outros sistemas indo-europeus, um gêmeo era verdadeiramente divino e o outro falho. Eles eram associados com cavalos, boa fortuna e a proteção de viajantes.
O “Apollo” Céltico. Um deus curativo de luz e calor e o poder da visão, particularmente invocado para problemas de olho. Ele também parece ter sido associado com o sonho e profecia. Seus santuários curativos –os quais compartilhava com um deusa-cônjuge–eram centros importantes de peregrinação no mundo antigo Céltico. Embora não haja nenhuma evidência direta disto nas fontes, eu suspeito fortemente que o par deus/deusa eram um irmão e irmã (em lugar de serem casados como em a maioria dos outros casos), e foram relacionados ao culto de um par irmão/irmã profético e curativo que se espalhou pela Europa (da Ásia Central, aparentemente) na tenra Idade do Ferro (e melhor conhecido como Apollo/Artemis).