Faz um tempo que tenho advogado o uso do Proto-Céltico (doravante ‘PrC’) como língua litúrgica para o Iberoceltismo em diversos locais e ocasiões e aproveito para tentar condensar cá os motivos, visando deixá-los claros e facilitar o entendimento dos pontos.
Por que não o Celtibérico, Galaico ou Lusitânico?
Basicamente, por serem línguas extremamente fragmentárias (o celtibérico, consideravelmente menos) que não permitem uma reconstrução minimamente decente de vocabulário ou gramática. No caso específico do Lusitânico e Galaico, não sabemos se quer se, de fato, se tratam de idiomas diferentes e do quão “céltico” o Lusitânico é, havendo bons argumentos contra e a favor. No caso do celtibérico, apesar do maior acervo, este possui uma delimitação geográfica que o torna “forçado” para os que se veem no lado “Luso” ou “Galaico” das coisas.
Trabalhar com “conlangs” (reconstruções hipotéticas) com alto nível de especulação, torna o uso da língua demasiado “artificial”, quebrando psicologicamente sua dimensão mais profunda e servindo como mero “fetiche”. Além de ser demasiado trabalhoso e dispendioso. E isto nos leva a outro ponto.
O enfoque reconstrucionista é na “mundivisão” e não no uso “cultural” moderno.
Especialmente em se tratando de uma cultura religiosa “extinta”. Diferentemente dos RCs irlandeses, não há continuidade linguística até a época hodierna que permita vislumbres internos recentes na língua. A gramática e o modo como os significados se articulam são cruciais na revelação de sentidos só acessíveis para nós (ao contrário dos falantes nativos de outras épocas) deste modo, residindo aí a importância vital da língua.
Esta compreensão é importante para evitar “fetichismos” de recriação histórica lúdica exagerada e também para não esquecermos o caráter “instrumental”. A língua é uma chave metafísica para acessar sentidos até então velados. A chave em si mesma, sem as fechaduras e trancas que ela abre, não é de tanta valia assim. Também podemos conceber que tais sentidos permitem uma comunicação mais eficaz, pelo menos como tradicionalmente concebida, entre deuses e humanos.
Diante das dificuldades com as línguas “posteriores”: recuamos!
Se, por um lado, o celtibérico e o gaulês são geograficamente delimitados e linguisticamente fragmentários (sem falar no Galaico, Lusitânico, Lepôntico, etc.), o Goidélico e o Britânico nos são alheios (mas não são para os RCs irlandeses e os galeses, é bom frisar), a saída é recuar ao PrC. Este recuo é justificado também, por “arcaísmo” religioso que ecoa com certos arcaísmos nas práticas religiosas dos Celtas em geral.
Por outro lado, recuar até o Proto-Indo-Europeu (doravante ‘PIE’) também seria viável se isto não descaracterizasse o “Celtismo”. Mas ao fazê-lo, já não mais nos ateríamos numa manifestação cultural específica e historicamente localizável, ao fazê-lo, nos diluiríamos.
Por outro lado, o PrC pode servir como uma espécie de língua franca entre RCs de diversos focos culturais/cultuais e mesmo destes para como Druidistas.
Quais os problemas do PrC?
Bem, no entanto, o PrC tem limitações. Metodologicamente, uma protolíngua tem sua eficácia e validade derivada das fontes posteriores da qual é deduzida e da correção das regras de derivação. Tais regras são concebidas por, digamos, engenharia reversa: não se tem acesso a protolíngua, se tem acesso somente às línguas posteriores. No caso do céltico, temos ampla documentação do sengoidelc, ou seja do irlandês antigo, do galês médio, uma literatura menor do bretão médio e do cornualhês e manquês modernos. A partir destas, se aferiu a base do léxico e das regras de derivação (chamadas pelos linguistas de “leis”). Ou seja, em boa parte, o PrC é na verdade um “proto-céltico-INSULAR”.
O problema é que na medida em que nosso conhecimento do gaulês e do celtibérico (assim como do Lusitânico, Tartésico, Lepôntico, etc.) for ampliado, e sendo estas línguas anteriores mais próximas do PrC, é bem possível que certas estruturas gramaticais e lexicais sejam revistas, uma vez que são mais devedoras das línguas mais recentes (e mais conhecidas).
Por exemplo, se me permitem, já apontei, faz anos, a incompatibilidade do genitivo singular do celtibérico nos temas em o- com o que se defende no PrC. O genitivo singular deste tema em celtibérico é em -o, enquanto que no gaulês é em -ī. Por exemplo, se quero dizer “esta carruagem é de Nemetios” em celtibérico seria “so(s) karros Nemetio” em gaulês “sondos carros Nemetiī”. Muita gente recua tal genitivo em -ī (eu próprio, adotei em respeito a convenção) ao PrC em si mesmo, mas isto não explicaria em nada o celtibérico, que seria perfeitamente explicável, se se concebesse uma derivação do PIE diferente que não recuasse ao Ítalo-Céltico simplesmente.
Além, claro, de diferenças orgânicas genuínas. Ainda no caso do celtibérico, o adjetivo PrC *mati- “favorável, auspicioso, fasto, propício” fora construído a partir do irlandês e do galês que apontariam para um tema em -i. No caso do celtibérico, o termo está atestado como sendo de tema em -u (STEMPEL, P. “La gramática del primer bronce de Botorrita: nuevos resultados”. In Palaeohispanica 9. p. 688). A frase “dentro de três dias fastos” em PrC ficaria *entra trīs matīs dīywa se considerarmos que a palavra “dia” é neutra (como no gaulês), ou *entra trīs matīs dīywūs se o termo for masculino. Em celtibérico, temos “entra trīs matūs (dīuūs)”. R. Matasović, o autor do “Etymological Dictionary of Proto-Celtic”, considera que o termo seja em -i, apesar do celtibérico e do gaulês apontarem para um tema em -u, por achar que o que aconteceu com o irlandês é a regra, pois neste idioma o termo em -u é uma palavra tabuística para designar o animal “urso”. Eu já desconfio que o que ocorreu no irlandês seja a exceção, não a regra.
Outro ponto que não é exatamente um problema do PrC, mas sim de que quem o “estabelece” academicamente, é ignorar certos substratos das línguas românticas hispânicas. Se engloba algo das línguas francesas, por causa dos trabalhos pioneiros e referenciais sobre a língua gaulesa. Mas pouco se considera do substrato por trás de certos termos em galego ou português, por exemplo. E os gramáticos de cá, para completar, preferem elaborar ideologias buscando validar separações e ranços antilusos que estudarem decentemente nosso léxico.
Bem, nesta altura creio que já esteja ilustrado alguns possíveis problemas. Mas, apesar disto, o PrC já condensa em si um certo número de convenções mais sólidas que as conlangs possíveis das línguas posteriores. E por isto, me parece a melhor opção que temos por hora, mesmo que venha a sofrer algumas revisões no futuro.
Salve
Desde jovem estudo os povos e suas mentalidades, sempre tive especial atenção pelos Celtas. Considero uma origem longínqua de minha família, uma certeza maior se fez com a faculdade de História e compreensão da narrativa indo-europeia. Tenho muito interesse nas questão mais praticas da língua, como dicionários e alfabetos.
Se puder me ajudar, orientar, conversar… joao@marquezini.com
Grato pelo artigo e parabéns a todos pelo site
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