
[Em resposta ao artigo Sobre Possibilidades e Compreensões acerca dos Deuses e do Mundo, de M. Diniz]
“Então a Deusa [Demeter] perdeu o brilho de seu rosto rosado, seu coração inchado foi açoitado por tristezas. . . Ela apressou-se até a casa de Astraios (Astraeus), o deus da profecia [ou mais especificamente astrologia]. . . Deitou a mão esquerda sobre os joelhos do gentil antigo e, com a mão direita, tocou-lhe a barba em súplica. Ela recontou todos os pretendentes de sua filha, e ansiava por um oráculo confortável; por adivinhações que aplacassem a ansiedade com esperança. O velho Astraios não se recusou. Ele aprendeu os detalhes do dia em que sua única filha nasceu, e a hora exata e o curso verdadeiro da estação que lhe deu o nascimento; então ele dobrou os dedos giratórios de suas mãos e mediu o círculo móvel do número sempre recorrente contando de mão em mão em dupla troca [calculando o número de dias nos anos de sua vida em seus dedos]. Ele chamou um criado, e Asterion ergueu uma esfera giratória redonda, a forma do céu, a imagem do universo e colocou-a na tampa do baú. Ele girou sobre o pivô e dirigiu seu olhar ao redor do círculo do Zodíaco esquadrinhando neste lugar os planetas e as estrelas fixas. Quando terminou de caucular tudo guardou a esfera sempre giratória na caixa espaçosa. E em resposta à deusa ele formulou um oráculo triplo de som profético: “Amada Mãe Deméter, quando os raios da Lua se forem atrás do cone sombrio, proteja Persephone de um espião ladrão, […] você verá antes do casamento um falso amigo vir em segredo um meio monstro de mente astuciosa…” (Nonnus, Dionysiaca 5. 562 – 6. 168. Século 4 a 5 d.C.)
No trecho acima, a deusa Deméter, preocupada com o destino da filha Perséfone, busca conselhos e previsões astrológicas do titã Astraios. Filho de Gaia e regente das estrelas e Astrologia, Astraios é consorte da deusa da aurora, Eos, e com ela gerou as 4 Estações e seus ventos.
Neste artigo abordo como gregos e romanos não só creditavam à Astrologia uma forma de prever os interesses e ações dos deuses na natureza e vida privada das pessoas, mas também na geo-política, e porque, como politeístas indo-europeus não podemos desprezar a divinação e nem deixar de nos perguntar por qual força divina nossos pensamentos e ações parecem se influenciar, e por quais interesses podemos estar sendo levados a agir.
Com o declínio e a proibição das religiões nativas do mediterrâneo, a Astrologia, que havia chegado à Grécia em cerca de 600 a.C. e já era parte integrante e unânime na fé romana por volta de 200 a.C. passou a ser vista pelo Cristianismo, como todo o conjunto das outras fés, com desconfiança. Ainda que alguns filósofos cristãos como Santo Agostinho, tenham estudado Astrologia, e algumas universidades medievais, como a de Bologna, tenham tido-na como disciplina, esta ciência perdeu status e adeptos, passando a ser praticada apenas por poucas pessoas com acesso a estudo superior.
Uma das transformações pelas quais a Astrologia passou durante a transição do “paganismo” para o Cristianismo, foi a simplificação do entendimento dos astros como simples corpos celestes. Ou seja, ainda que os planetas tenham conservado o nome dos deuses de outrora, os praticantes não mais viam os astros como manifestação dos deuses, apenas como matéria, profana.
Hoje acredita-se que a Astrologia tenha se originado na civilização em torno do Rio Indo, na Índia, por volta de 6.000 anos atrás. De lá irradiado-se para o Oriente Próximo, influenciando os povos Indo-iranianos. E do Oriente Próximo para o Mediterrâneo, influenciando os povos indo-europeus da região, entre eles, gregos e romanos. Os astrônomos gregos e romanos (vale lembrar que na época não havia distinção entre Astronomia e Astrologia), aumentaram o conhecimento dos movimentos celestes e do nosso planeta, desenvolvendo a Astrologia e ampliando-a para o estudo do indivíduo.
Cláudio Ptelomeu foi o astrônomo/astrólogo que lançou as bases do Mapa Circular que é até hoje usado na Astrologia Ocidental. As descobertas greco-romanas por sua vez passaram a influenciar a fonte indiana, e a Jyotish, ou Astrologia Védica, tem hoje muitos aspectos típicos da cultura greco-romana, tais como a crença aristotélica nos Quatro Elementos constituintes do Cosmos.
A Astrologia Védica não sofreu a interrupção e restrição que a religião abraãmica impôs à Astrologia Ocidental, e por isso continuou se expandindo e desenvolvendo, sem dissociar-se da teologia e liturgia do Hinduísmo. Enquanto isso a Astrologia Ocidental permaneceu dissociada de seu caráter divino, foi profanada e associada ao charlatanismo, mas sobreviveu.
No século 19 d.C. foi visitada pela Psicologia e teve em Carl Jung um de seus maiores estudiosos, uma vez que para a postulação da Teoria do Inconsciente Coletivo, a mitologia greco-romana foi fundamental. Hoje no Ocidente a Astrologia é utilizada como ferramenta terapêutica psicológica, enquanto na Índia faz parte da medicina como um todo. Continua sendo, lá e cá, uma ferramenta de previsão do futuro, mas perdeu aqui muito do seu significado religioso. O astrólogo e consulente ocidentais não enxergam mais a influência dos deuses nos assuntos do mortais, tais como a vida privada e a geopolítica. Para a maioria dos praticantes ocidentais os astros são corpos celestes cuja força influencia os eventos. Mas não consideram a possibilidade de que os movimentos celestes e geológicos, bem como sua influência nos assuntos humanos, sejam obra dos deuses.
Contudo, antes do advento do Cristianismo, os indo-europeus todos acreditavam na imanência divina, ou seja, na centelha divina criando e dando vida a toda a natureza, o que inclui a humanidade. E nas culturas indo-europeias que agregaram a Astrologia a seus sistemas religiosos – até onde eu sei, a grega e a romana – os Planetas e seus movimentos através da Constelação foram compreendidos como maneira visível de entender e de prever a influência dos deuses.
Em Roma o conceito religioso de Numen denota a crença em poderes de origem divina que a tudo pode mover e perpassar, direcionado pelas vontades dos deuses, e levando a todo o Cosmos a sua influência. Dessa forma, quando uma rosa brota e alguém se apaixona, ali passou a Numen de Vênus, por exemplo. Da mesma forma, quando um corte é feito e o sangue escorre, ou alguém sente raiva, a Numen de Marte está agindo. E quando a morte toca um ser vivo, é a Numen de Plutão, quando uma mulher engravida, é a Numen da Lua. Os planetas, assim como toda a natureza se devem à Numen de algum deus ou outro ente sagrdo que os criou. Por isso tanto o mar quanto o Planeta Netuno, são obra da Numen do deus Netuno. E tanto o clima quanto o planeta Júpiter, são obra da Numen do deus Júpiter. Assim é que um augúrio, como o vôo de um pássaro em um rito, é uma manifestação da anuência dos deuses.
Foi imerso nesta crença que Cláudio Ptolomeu creditou a transição do sistema de governo romano de República para Império, à conjunção de Plutão e Netuno no signo de Touro. Touro é o primeiro signo do elemento Terra, a Constelação de Touro é parte da Numen de Vênus, e influencia a terra, os territórios, áreas rurais, fertilidade do solo, agricultura, lucro, cofres, despensas, cozinhas, alimentos, prazeres, enfim, a riqueza dos países. Netuno tem uma Numen benéfica, mas difícil: não só age sobre o elemento Água, como também turva a tudo por onde passa. Netuno, além dos mares, rege os caminhos entre os mundos, a espiritualidade. Mas também ilude, confunde, dilui e desconcentra: Netuno pode ser um charlatão. Por isso Netuno em Touro simbolizou, para Cláudio Ptolomeu, a corrupção, incompetência e incapacidade que havia consumido o sistema republicano.
A conjunção com Plutão trouxe ao baile um outro deus, igualmente do elemento Água, mas que não dilui ou dissolve: Plutão corrói, é a Água que emana das profundezas da terra corrompendo e subvertendo a superfície. Plutão é ácido, mata e destrói. E adora carregar para as profundezas do sub-mundo o que está frágil, doente e corrompido. Ao tocar o signo de Touro, das finanças e propriedades, e unir-se a Netuno, as Numens combinadas produziram a queda de uma camada da elite romana e orquestraram a dissolução da República, que depois de um processo que durou algumas décadas de instabilidade, culminou em uma nova forma de governo, o Império.
Está claro, portanto, que no paradigma indo-europeu, especialmente no greco-romano, cabe a crença de que os deuses operam não apenas sobre a natureza e vida privada dos mortais, mas também sobre as esferas públicas, aí incluída a geo-política.
Não tiveram os deuses por acaso, total responsabilidade nos eventos que levaram à Guerra de Tróia e influência no seu desfecho, de acordo com a literatura grega? Herodoto, Homero, e tantos outros autores gregos não descreveram em suas obras como os deuses orquestraram, defenderam seus interesses e disputaram a vitória através de eventos climáticos, pragas, e influenciando os sentimentos dos reis e rainhas envolvidos no conflito?
Com que arrogância então podemos nós, crentes na fé dos deuses antigos, desprezarmos a possibilidade de estarmos nós e todo demais vivente, suscetíveis a influência de determinadas Numens em nosso pensamento, ou em uma conversa, ou em coincidências que nos levam a conhecer certas pessoas ou ler certas coisas, ouvir certas músicas, etc. Sendo assim levados a colaborar com cenários políticos e econômicos que atendem a certos interesses dos deuses? E com que arrogância podemos nós nem desconfiar que estejamos ocasionalmente sendo influenciados não por Numens divinas, mas titânicas? Fomoriamas? Caóticas? Que na eterna guerra contra os deuses, agem na intenção de desconstruir a ordem divina, o Cosmos.
Temos dito e repetimos: preserva as tradições dos teus Ancestrais, pois elas são obra da ação humana e divina conjugadas. Conserva os saberes antigos, estuda e pratica os métodos religiosos dos teus Ancestrais, pois são o fruto de milênios de parceria com os deuses e de manutenção da ordem cósmica. Rito não é só estética. Rito é a repetição daquilo que tem dado certo ao longo das eras, é a repetição da criação, da ordenação, do Cosmos. É também a repetição daquilo que obtém a comunhão com os deuses.
Quem não conhece as histórias sagradas dos deuses, heróis e ancestrais e não cultua conforme eles instruíram, não pode nem sequer ter a certeza de estar entrando em contato com os deuses, ainda menos de ser capaz de discernir a quais interesses está servindo. Por isso, é fundamental estudar as fontes antigas, tanto para praticar a fé ancestral, quanto para compreender os caminhos e meandros aos quais os entes sagrados pavimentam, e para ser capaz de posicionar-se no contexto social.