Há uma certa tendência – ao que parece herdada da vivência cristã – em se utilizar certas fórmulas finalísticas ou de afirmação de intenção em algumas expressões do Neopaganismo, meio que em substituição do “amém”. De minha parte mesmo, me recordo de um esquema litúrgico neodruídico do finado Isaac Bonewits (da ADF) em que o mesmo utilizava uma construção “assim seja” em irlandês antigo e isto meio que me levou a pensar na utilidade de tal afirmação de intenção e testar o uso, e claro, anos depois, a buscar tal construção em Proto-Céltico.
Aí, a construção que achei na época – com o aval de pesquisadores mais gabaritados que eu naquele momento – foi do verbo “ser” no imperativo da terceira pessoa do singular como *biyetōd e a reconstrução de *swā para a nossa locução “assim”, de modo que “assim seja”, ficaria *swā biyetōd. E claro, passei a utilizar isto por um bom tempo.
No entanto, em um estudo publicado em 2018 (Palaeohispanica 17, p. 255-256) intitulado “Cuestiones de escritura en el celta de Hispania, Galia e Italia” da estudiosa Patrizia de Bernardo Stempel, a mesma lê uma inscrição em alfabeto celtibérico feita numa fusaiola como “e.s.tu:ka.e.tu.s:ka:m.u.s.ku”, ou seja algo como “estū kaetus kamuskū” que traduz como “seja um presente de amor a querida Kama” (eu, leria mais literalmente, ou seja, “seja um ‘kaetus’ para ‘Kamusku’” entendendo ‘kaetus’ como “presente, lembrança” e ‘Kamusku’, caso a leitura da autora esteja correta, como uma espécie de apelido carinhoso para ‘Kama’).
Pesquisando, notei que me passou “batido” por anos uma outra inscrição celtibérica registrada como K.12.1., a estela de Retugenos, que também trás uma possível atestação do imperativo do verbo ser: “r.e.tu.ge.no:e.s.to.:ke.l.ti.s” ou seja, “Retugeno estō keltis” ou numa leitura literal, “de Reχtugenos seja o monumento”. Bem, se a leitura estiver correta – e me parece, no grosso, que sim – temos a atestação do imperativo pela segunda vez que nos levaria ao Proto-Céltico *estōd, ou seja, ao invés de *swā biyetōd, seria mais adequado dizer *swā estōd (de notar que no latim é quase isto: estō é a forma imperativa do futuro, da segunda e terceira pessoa, uma vez que no presente o latim não possui forma para o imperativo na terceira pessoa do singular).
Por falar em latim, é interessante notar que algumas das preces antigas latinas terminem exatamente com o tal imperativo futuro ‘estō’. Na prática moderna, o MTR da Itália, por exemplo, utiliza a expressão latina ‘ita est’, ou seja, literalmente “assim é”. Mas também o pessoal da Nova Roma utiliza preces antigas (terminadas em ‘estō’) adaptadas. Daí que, obviamente, decidi atualizar a expressão e a temos utilizado por uns meses já (se brincar, já deve fazer ano). De minha parte, me dou por satisfeito com a expressão *swā estōd para o uso citado acima, mas isto não nos impede de procurar mais pistas.
Se olharmos no corpus de inscrições célticas restantes, na Celtibéria nos chama atenção o famoso bronze de Luzaga, que ao final da descrição do pacto (em celtibérico gortikā, ou como se diz em latim tessera) traz a fórmula finalística teiuoreikis, cuja interpretação é mais complicada do que parece: o primeiro elemento é mais pacificamente entendido como *deywo-, ou melhor, *dēwo- “deus, divino”, já o segundo elemento “-reikis” é que é um problema. Não creio que se trate do termo “rei”, que em Proto-Céltico seria *rīgs, de modo que me resta supor que o termo seja um derivado ou do verbo *rēk-o- “desfazer, desmontar” (talvez de modo a dizer que o contrato só possa ser “desfeito pelo divino”) ou dos verbos *rek-o- “arranjar, por em ordem” (ou seja, “arranjado pelo divino”) ou *reg-o- “estender, ampliar, abarcar” (ou seja, neste caso para afirmar que o contrato está sob “domínio ou proteção divina”). Tal indecisão dificulta o uso deste termo, além de que, efetivamente, o temos mais como um termo para finalizações ritualísticas “documentais” e que talvez não o tornasse o mais adequado para o uso das preces orais regulares.
Bem, mas agora venho cá compartilhar tal informação, mas também trazer a tona a discussão mais ampla e anterior: seria, de fato, interessante utilizar tais formulações? Ou insistir nelas, especialmente quando não sabemos bem se as utilizavam estritamente deste modo, seria aprofundar uma herança “cristã” dispensável? Estou aberto a reconsideração e ao diálogo neste quesito.
E por falarmos nas coisas práticas, há uma série de evidências e registros por vezes negligenciados e que podemos trazer à tona, discutir, reutilizar ou ressignificar. De nossa parte cá, por exemplo, faz um bom tempo, que utilizamos a “salutatio iberica” como saudação às divindades (é bom lembrar que há quem conjecture que a saudação romana tenha vindo desta), assim como convencionamos certos gestos (de oração) a partir de uma interpretação mais branda, também a partir de certas estatuetas ibéricas que são numerosas (clica aqui para uma rápida visualização das estatuetas votivas). Como se trata de algo doutrinal e interno, cá apenas aponto direções gerais úteis aos que buscam mais diretivas práticas.

Lembrando que até então havia me passado despercebido uma passagem relativa ao gesto de adoração romana que Plínio (Naturalis Historia, 28.25) dá a entender ser comum entre os gauleses também, e aí ficamos a saber se já era algo comum ou se fora uma adoção da prática romana modificada por um costume gálico antigo. Me refiro ao gesto romano de beijar a mão direita (levando a mão aos lábios, ou de modo mais “discreto”, a ponta dos dedos) e rodar o corpo, que Plínio diz considerarem os galos, mais religioso o giro para à esquerda (ao invés da direita). Bem, se estivermos entendendo corretamente, teríamos um testemunho de que tais celtas teriam, ao contrário do que é atestado na Hibérnia, uma prática de sentido no movimento ritual (pelo menos neste gesto) anti-horária, ao invés do conhecido movimento circambular gaélico, “ao sul” *deχsiwom. Movimento que produz ordenamento, deixa algo ordenado (*deχstlos). Uma vez que temos o registro “fossilizado” na linguagem desde o Proto-Céltico de tal orientação, a observação de Plínio soa “estranha” ou talvez se explicasse por alguma circunstância específica que o observador romano, ignorando-a, generalizou para todas as ocasiões.
De nossa parte cá, ainda continuamos considerando o sentido ritual à Direita, basicamente por uma série de evidências acumuladas, oriundas não apenas da literatura e folclore (das terras célticas mas também de Espanha e Portugal) mas mesmo de testemunhos como a descrição do “banquete” céltico por Ateneu (no Depinosphistae) entre outros (Estrabão, etc.). Mas já indicamos que, dependendo de como entendamos tais sentidos e o que estes “reforçam” ou “propiciam” em termos, digamos, “mágicos”, estando no Hemisfério Sul, houvesse motivo para reconsiderar algo. No entanto, é um ponto de debate que preferimos deixar em aberto no momento.
Saudemos os Deuses Imortais e sigamos no caminho da virtude!
