Em Busca dos Indo-Europeus – Cultura – Tradução de JP Mallory

mallory indo-europeans

[Inicia-se aqui uma série de postagens com traduções sobre cultura Proto-Indo-Europeia contidas na obra In Search of the Indo-Europeans de JP Mallory, ano 1991. Neste trecho da obra o autor aborda aspectos da metodologia utilizada na reconstrução desta cultura, a saber, a paleontologia linguística. As páginas traduzidas vão de 110 até 114, e comentários da tradução estarão em itálico no corpo do texto.]

Tradicionalmente houveram dois métodos empregados por Indo-Europeístas para reconstruir a cultura Proto-Indo-Europeia. Uma envolve a comparação direta entre as práticas culturais dos diferentes povos Indo-Europeus na esperança de isolar elementos comuns e projetá-los de volta no período Proto-Indo-Europeu. Esta técnica é amplamente ilustrada na maioria das páginas de livros sobre cultura Indo-Europeia onde os autores acumulam numerosas referências aos costumes e instituições dos diversos povos Indo-Europeus. Frequentemente isto contribui para uma melhor leitura, mas todo o leque de tal abordagem, ao menos quando aplicado à mais obviamente funcional categoria de cultura, é certamente suspeita.

Podemos tomar como exemplo ao examinar vagamente como os indo-europeístas têm observado similaridades entre a organização e funcionamento das confrarias guerreiras retratadas na história e literatura de vários povos Indo-europeus. Aqui encontramos, da Índia até a Alemanha e Irlanda, uma série de motivos recorrentes na organização destes bandos de guerreiros – estrutura igualitária, comportamento berserker de frenesí durante a guerra e às vezes fora dela, o uso de animais selvagens tais como o lobo como totens, e a tendência a operar fora da jurisdição normal da sociedade o que ocasionalmente levava a conflitos entre os guerreiros e as elites políticas e religiosas da comunidade.

Estas evidências nos permitem extrapolar tais confrarias guerreiras de volta para a sociedade Proto-Indo-Europeia? Muitos certamente acham a imagem de jovens berserkers Indo-Europeus varrendo a Ásia e Europa um atraente veículo para a expansão das línguas Indo-Europeias. Naturalmente, ninguém defende que tais bandos guerreiros sejam uma exclusividade Indo-Europeia e podemos citar muitos outros exemplos ao longo da Ásia, África e do Novo Mundo, especialmente entre os Índios das Planícies. No entanto, se as confrarias guerreiras constituíam um segmento formal da sociedade Proto-Indo-Europeia, isto deve ser traduzido em alguma expectativa arqueológica tais como a deposição sistemática de armas nas sepulturas de jovens do sexo masculino. Muito frequentemente, isto tem levado arqueólogos a considerar a descoberta de sepulturas de guerreiros na maior parte da Eurásia com traços de expansões Indo-Europeias.

O fato mesmo de os bandos guerreiros não serem um fenômeno unicamente Indo-Europeu deve nos alertar contra a interpretação de um Indo-Europeu por trás de todos os registros arqueológicos de sepultura contendo uma pedra ou machado de guerra. Armamentos são o produto de um ambiente, circunstâncias econômicas e sociais que podem ser encontradas por toda parte, e não há razão para assumir um caráter inerentemente guerreiro para os Indo-Europeus. [Em oportunidade futura, uma tradução de David Anthony, de abordagem arqueológica, fará um contraponto a esta afirmação de Mallory.]

Mais importante, nossas evidências para Indo-Europeus derivam de períodos muito diferentes, nenhum deles antes da Idade do Bronze. Podemos ser atingidos pela similaridade entre heróis germânicos e irlandeses dos contos medievais e o deus guerreiro Indra que lidera seu bando de endemoniados Maruts nos hinos do Rig Veda, mas seu comportamento é mais apto a ser uma resposta genérica à suas circunstâncias culturais particulares do que a herança genética direta de ancestrais em comum e instituições que existiam milênios antes. Sugerir o contrário seria afirmar implicitamente que a estrutura organizacional da guerra entre Indo-Europeus permaneceu essencialmente estática por vários milhares de anos. Qualquer arqueólogo comprometido em estudar a guerra na Europa não pode deixar de notar as numerosas mudanças na tecnologia bélica, arquitetura defensiva e a organização da guerra desde o Neolítico tardio até a Idade das Trevas, e qualquer tentativa de ler instituições militares irlandesas no Neolítico do Oeste Europeu seria transparentemente falacioso. Resumindo, não podemos ser inteiramente crédulos de nossas reconstruções quando estas estão baseadas unicamente no resíduo etnográfico dos povos Indo-Europeus tardios. Consequentemente, neste capítulo, nos ateremos ao segundo método de reconstrução cultural, paleontologia linguística.

Muito antes de August Schleicher ter iniciado a reconstrução das formas linguísticas Proto-Indo-Europeias, linguistas já haviam começado a reconstruir a cultura dos falantes desta língua. As mesmas correspondências que demonstravam a afinidade entre as diferentes línguas Indo-Europeias também apontavam para um mesmo conteúdo cultural no vocabulário dos Proto-Indo-Europeus. A série de palavras vistas para ovelha em Luviano hawi-, Sânscrito avis, Grego o(w)is, Latin ovis, Lituano avis, Irlandês Antigo oi ou Inglês ewe dão amplas provas de que a comunidade Proto-Indo-Europeia conhecia a *owis ‘ovelha’. Foi partindo de tais comparações que Adalbert Kuhn, em 1845, tentou produzir uma descrição da sociedade Proto-Indo-Europeia. Ele descreveu a cultura dos Indo-Europeus originais como assentados (palavras para vila, forte, casa); engajados ambos em agricultura quanto produção de rebanho (gado, ovelha, cabra, suíno, cavalo, cão); e politicamente evoluídos ao nível do estado (Rei).

Já se avançou muito desde a primeira tentativa de Kuhn, e um século e meio de reconstrução léxico-cultural um vasto número de pesquisas incluindo enciclopédias de cultura Indo-Europeia. Mas nenhum levantamento destes recursos esclareceria que o acordo em algumas questões é difícil de alcançar. As razões para isto são sólidas, se não um pouco assustadoras.

É extremamente incomum, por exemplo, para a maioria das línguas Indo-Europeias compartilhar os remanescentes da mesma palavra Proto-Indo-Europeia. A perda do vocabulário original parece ter sido alta e é especialmente provável que tenha afetado línguas conhecidas apenas por escrita no passado 1.000-2.000 anos. Se este é o caso, em quantas línguas diferentes deve uma mesma palavra ocorrer para ser tida como Proto-Indo-Europeia? Não há realmente nenhuma configuração aceitável de correspondências que podem ser utilizadas, ainda que uma regra geral demande ao menos uma correspondência entre uma língua Indo-Europeia e uma não-adjacente língua asiática para que se possa atribuir a palavra para a alta antiguidade Indo-Europeia. Outros podem apontar critérios diferentes tais como correspondências entre três diferentes línguas desde que uma não seja adjacente a outras. Por razões que se tornarão mais claras abaixo, é prudente exigir tanto uma européia quanto uma asiática.

Um segundo problema frequentemente encontrado é a variação no significado de uma cognata em várias palavras aonde é mais fácil reconstruir o som original da palavra do que seu real significado. Quando a palavra Grega para carvalho é a mesma que a palavra germânica para faia e a palavra russa para sabugueiro preto, sobre quais bases se pode atribuir uma origem Proto-Indo-Europeia?

Palavras emprestadas colocam um outro problema, embora não tão grande quanto alguns querem crer. Na história dos estudos Indo-Europeus, podem sempre ser encontrados alguns que desafiam a validade da reconstrução do nosso léxico-cultural sustentando que é impossível saber se uma palavra em particular foi herdada dos Proto-Indo-Europeus em várias de suas línguas filhas ou emprestada de uma língua para outra ao longo do tempo. Muito frequentemente tais avisos são limitados a exemplos nos quais o linguista inocente erra ao comparar com o caso da palavra café, cigarros, coca-cola por transparecer similaridades nestas palavras dentro das línguas europeias modernas.

De certo modo, toda palavra nova é um empréstimo que se espalha de um único falante ou pequenos grupos de indivíduos para todos os falantes de uma mesma língua. Se todas convergem no mesmo idioma, então a palavra será aceita e tomada por nativa. Se, por outro lado, a palavra cruza uma fronteira linguística, será articulada conforme as normas da língua que está tomando de empréstimo a palavra. Quando esta é diferente da língua que a emprestou, então é possível discernir que é um empréstimo e não uma herança. No inglês, por exemplo, possuímos duas palavras para gado – cow e bovine – que podemos relacionar a palavras similares de outras línguas Indo-Europeias. Poderíamos facilmente associar a nossa palavra bovine a uma série de outras que incluem o Grego bous, Latin bos, e Irlandês Antigo bo, mas nunca poderíamos supor que fosse uma herança Inglesa resultante do Proto-Indo-Europeu gwous uma vez que o Proto-Indo-Europeu gw jamais produziria um b em inglês (nem poderia o final da palavra ser explicado). Apenas cow pode ser a forma herdada, enquanto bovine (e beef) são claramente empréstimos derivados do Latin bos/bovem. Além disso, mesmo bos não é o resultado latino esperado  de uma palavra Proto-Indo-Europeia (que teria produzido algo como *vos em Latin), e por isso linguistas comumente tomam bos como empréstimo do Úmbrio no qual encontramos a inicial b (bum, cf. Latin bovem), ou de algum dialeto não-latino similar da Itália. Mesmo quando lidamos com línguas proximamente relacionadas tais como Nórdico Antigo e Inglês Antigo, podemos discernir os inúmeros empréstimos nórdicos na língua inglesa, por exemplo, egg, ugly, keel, sky, skill, e muitas outras. É esta habilidade de reconhecer quando palavras emprestadas estão presentes que geralmente inspira nos linguistas a confiança para determinar quando palavras são heranças Indo-Europeias ou são empréstimos posteriores entre línguas Indo-Europeias já distintas. De fato, linguistas têm devotado um tamanho substancial de pesquisas em identificar palavras emprestadas como meio de elucidar os contatos entre as diferentes línguas indo-europeias na pré-história. Para tomar um exemplo familiar podemos identificar palavras Célticas emprestadas para ferro e chumbo no Germânico que ordenadamente com evidências arqueológicas indicam contatos entre Celtas da Idade do Ferro e seus vizinhos Nórdicos. Similarmente, os germânicos também emprestaram alguns termos sociais, por exemplo, governante e servo, de seus vizinhos Célticos. Isto não quer dizer, é claro, que não existam dificuldades genuínas na análise de algumas palavras, mas linguistas históricos não são ingênuos nisto e eles trazem para seus dados um arsenal de técnicas que reduzem grandemente a chance de reconstruir absurdos dentro da pré-história.

Infelizmente, nossa confiança na reconstrução de itens culturais frequentemente tende a ser inversamente proporcional às suas utilidades arqueológicas. Por exemplo, enquanto ninguém duvidaria de que a evidência linguística indica que os primeiros Indo-Europeus conheciam os cães, seria muito mais útil sabermos se eles conheciam a enguia, a tartaruga, o salmão, ou outros animais mais geograficamente circunscritos. O motivo da nossa inabilidade de resgatar com certeza algumas dessas palavras jaz embutida na hipótese Indo-Europeia básica. Uma expansão de Indo-Europeus por uma vasta área tirou muitos deles de seu ambiente primevo de forma que eles experimentaram mudanças radicais na sua ecologia cultural antes de emergirem na história. Neste momento eles frequentemente já haviam abandonado estas partes de seus vocabulários das quais não precisavam e os traços restantes de uma palavra Proto-Indo-Europeia particular podem ter sobrevivido apenas em um punhado destas línguas. Estas podem ser preservações de antigas palavras emprestadas, mas podem também ser criações posteriores confinadas a uma área particular do mundo falante de línguas Indo-Europeias. Isto é particularmente verdadeiro quando consideramos o contraste entre as línguas Indo-Europeias e as Indo-Iranianas.

Se empregarmos o procedimento tradicional de não aceitar uma palavra como proto-Indo-Europeia a menos que possua uma européia e uma asiática refletida, então devemos encontrar a linha Indo-Europeia que falta. Os textos sobreviventes das línguas Tocárias e Anatólicas oferecem apenas oportunidades limitadas para avaliar o conteúdo cultural das línguas Indo-Europeias da Ásia. O Índico e Iraniano, por outro lado, nos dão vasto corpo de evidências mas também com histórias unicamente asiáticas e a princípio essencialmente pastoris. Por esta razão, comumente achamos que palavras amplamente refletidas em línguas Europeias não têm reflexo nas Indo-Iranianas. Paul Friedrich, por exemplo, nos apresenta com nada menos do que 18 categorias de árvores, mas poucas destas têm qualquer reflexo nas línguas Índicas ou Indo-Iranianas. Este tem sido um problema que tem perturbado linguistas por mais de um século e que tem sido invariavelmente resolvido de três formas. Alguns propõe que os Europeus retiveram o vocabulário Proto-Indo-Europeu e os Indo-Iranianos migraram de uma terra natal europeia, perdendo muitos termos conforme migravam em seu novo ambiente asiático; alternadamente, foram os Indo-Iranianos quem retiveram o vocabulário herdado enquanto os povos que migraram para o Oeste da Europa criaram novas palavras em seus novos arredores [Também é de se supor que à medida que se estabeleciam junto ao ambiente e povos autóctones do Oeste, por conveniência os Indo-Europeus absorvessem palavras das línguas locais]; finalmente, alguém propôs uma terra natal grande o suficiente para que ambos os ramos abrangessem uma grande variedade de economias e ambientes. No momento é melhor nos ater a todas estas teorias conflitantes no fundo de nossas mentes e não propor ainda nenhuma solução para o problema da terra natal. Ao invés disso, abordemos de forma breve alguns dos mais importantes temas da cultura Proto-Indo-Europeia reconstruída.

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