(04-01-2009) Uma possível reinterpretação da ‘Incubatio’ relacionada ao deus Endovélico.

Texto originalmente publicado no blog “Parahyba Pagã” em 04/01/2009. Mantivemos a redação original, caso hajam novos comentários estes aparecerão entre chaves [] no texto.

endovelico14
Para mais imagens, visite: http://acaminhodacasa.blogspot.com.br/2013/05/o-santuario-rupestre-da-rocha-da-mina.html

O breve texto que se segue é oriundo de leituras e de algumas experiências que gostaríamos de compartilhar. Deve ser visto como um teste, ou antes como algo provisório e passível de melhoras. Em todo caso, espero que vos seja útil em algum aspecto. Além de que peço para que considerai-vos livres para investigar, aprimorar ou corrigir o que for necessário. Seguimos, no geral, o excelente artigo do estudioso José Cardim Ribeiro, O Deus Sanctus Endovellicus durante a Romanidade, exposto na revista Palaeohispanica v. 5 (2005) e sua argumentação, relacionada aos testemunhos arqueológicos acerca da interpretatio romana do deus como Silvano.

Sobre os aspectos mais metafísicos e certos “comprometimentos ontológicos” este passo também é discutível, ainda sim, preferimos relegar tais questões ao campo das ‘crenças’ ou das UPGs (GPN: Gnose Pessoal Não-substanciada).

O deus Endovéllico é um dos mais populares, se não o mais, deuses lusitanos adorados nos nossos dias (na verdade desde um bom tempo, inclusive na Antigüidade, ao menos na área da Lusitânia) [na verdade, a evidência arqueológica aponta para a popularidade, mas também para o aspecto tópico do culto], de tal forma, que seu culto estendia-se das camadas mais populares (escravos, camponeses, etc.) às mais favorecidas (RIBEIRO. 2005, p. 726) oriundos de diversos lugares; é uma deidade essencialmente silvestre, do mato, dos bosques, rochedos e lugares selvagens (em especial o local onde havia seu santuário: São Miguel da Mota, Alandroal, Portugal) a quem nos voltamos nestes esboços.

Durante a presença romana, geralmente era representado nu (as vezes com uma capa ou pele de animal nas costas), corpo não atlético (no sentido de músculos não tão bem-definidos) [?], barbado, cabeleira espessa, olhar sereno, face madura, segurando uma vasilha ou copo, segurando ainda uma vara, ou galho – lembrando, a exceção do martelo, as representações do deus gaulês Sucellos. Associado simultaneamente as aspectos infernais (no sentido ctônico), salutíferos e ‘salvadores’ além de oraculares; ainda, de acordo com os animais que geralmente lhe eram sacrificados – o porco, javali, aves e frutos silvestres e eventualmente cabras – à terceira função dumeziliana (Ibid.). Lhes são associados ainda a palma, a pinha, o louro e, apesar de não ser unanimidade entre os estudiosos, o lobo. Muitas são as interpretações do nome do deus, sendo as mais aceitas (remontando à Leite de Vasconcellos) – “aquele que contém em si próprio o querer bem”, “aquele que é em si mesmo benemerente, favorável, propício” (Ibid.) [em edições posteriores da mesma revista, publicou-se excelente artigo sobre a etimologia do teônimo].

É aceite em nossos dias (Ibid. p. 735), que tanto haviam práticas oraculares “diretas” como as “intermediadas” por meio de sacerdotes ou áugures especializados (no templum do deus), sendo em sua maioria, práticas “diretas”. Nos voltaremos à estas práticas diretas, em especial à denominada pela tradição latina de incubatio. A incubatio, “encubação”, consistia, grosso modo, em ritos específicos que após realizados o executante dormia, geralmente junto a uma fonte, gruta, fenda ou nascente, e através dos sonhos a divindade lhe comunicava algo [encubava-lhe enquanto estava desacordado]. Ainda, pelas matas onde o deus presidia e pressentia (eis os atributos ‘praestantissimus et praesentissimus numen’ – ser prestançosíssimo e presencialíssimo na região delimitada), haviam a possibilidade direta da voz do deus ser ouvida pelo devoto.

Neste sentido, o devoto, geralmente [não se trata de “geralmente”, mas sim do que é ortoprático] dirigia-se ao local “ao natural”: cabelos soltos, vestes rústicas, nenhuma joia ou adorno, pés descalços ou mesmo nu, algumas vezes oferecia o sacrifício ele próprio [e não um oficiante externo] e com parte deste sacrifício junto de si (a pele no animal devidamente retirada, por exemplo) dormia no chão. A voz do deus vinha de baixo, “ex imperatio auerno” (Ibid. p. 737). A ideia do ‘contato íntimo’ com o natural e com os aspectos “não-civilizados”, parecia ser de extrema importância (como o era no culto de Silvano/Fauno). Doravante, perguntar-nos-ia: e nos nossos dias?

[A incubatio, como a própria etimologia aponta, requer, necessariamente, “deitar-se” e desde o cariz geral da divindade, deitar-se no chão. A princípio, neste deitar-se para encontrar o deus, não vejo nenhum cariz sexual, como se a divindade metafisicamente, “fecundasse” o devoto: ao contrário, o sono, a partir dos procedimentos purificatórios e propiciatórios, é a condição que permite o contato – contato onde o deus revelará a resposta; e não a gerará a partir da semente “plantada”, a ser “parida” pelo devoto posteriormente. Por isto, não creio que uma explicação “sexualizante” seja adequada. Sabemos que procedimentos próximos, como dormir junto a tumba de um herói em tempos e após certas condições, também foram utilizados pelos irlandeses e no meu ver também contam como exemplos célticos de incubatio. Se considerarmos as antas e dólmens na franja atlântica que registram alguma continuidade de atividade cultual na Península Ibérica, ficamos tentados a crer que tais procedimentos também foram realizados em suas cercanias. Para quem tiver mais interesse, este ritual é documentado de forma detalhada no culto de Asclépio, onde uma os sacerdotes, geralmente médicos, auxiliavam o devoto a interpretar a mensagem e/ou lhe prescreviam os fármacos indicados pelo deus]

Eis uma possível proposta:

  • Oferendas: frutas sazonais silvestres e/ou vinho.
  • Local: o ideal seria um local específico, como uma mata, um bosque, um rochedo, uma nascente ou um local que reunisse isso tudo, e que houvesse um altar ou espaço dedicado para oferendas às entidades do local e ao deus Endovélico. Como isto é problemático em certos contextos, a não ser que estejamos pertinho de São Miguel da Mota, sugiro que busquemos alternativas. Uma seria dedicar um espaço, ou um altar próprio à este deus em um ambiente da casa ou nos arredores (se houver algum espaço “natural” na propriedade). O importante é que seja um local/espaço já previamente associado ao deus, e que “funcione”, onde o dedicante sinta sua “presença” e tenha oferendas dedicadas e atestadamente recebidas (confirmadas por augúrio); isto pode levar anos. De acordo com os pressupostos ontológicos de cada um, um local onde há uma constatação de que povos indígenas ou outros honraram uma divindade de “funções semelhantes” talvez seja adequado. Sinceramente, tenho minhas reservas a este tipo de procedimento (de “neo-interpretatio”) por considerá-lo desrespeitoso em certo sentido e problemático com certos pressupostos que assumo [resumidamente: ou o local é onde originalmente foi ou teremos de buscar alternativas, estas, em teoria, com chance de sucesso proporcional a geografia sagrada e/ou ao culto ortopraticamente adequado à divindade].
  • Vestimenta: de acordo com o local, acredito que este ponto pode ser definido de maneira mais adequada. Por exemplo, se o/a dedicante mora sozinho em seu apartamento, acredito que nada impede que faça o rito nu/nua. No geral, seria interessante roupas bem simples ou rústicas, nenhum adornou ou bijuteria (no máximo uma coroa ou guirlanda de folhas de palmeira, ou louro) e pés descalços.
  • (Opcional)Utensílios: uma faca, foicinha ou punhal ritual.

Preparações: seria interessante (no sentido de que “provavelmente funcionaria melhor”) se o/a dedicante estivesse “limpo” [novamente, titubeando para agradar ecletistas “New Age”: não se trata de “seria interessante”, se trata de “é ortoprático”, é o que tem que ser feito e pronto]. Caso não conheça uma técnica específica as “rezadeiras” e “benzedeiras” são uma boa opção [purificar-se, por ablução ou banho de ervas, “sangue verde”, como substituição da purificação pelo sangue do animal sacrificado]. O/a dedicante deve estar concentrado o máximo possível e principalmente “conectado” com o local (também há várias técnicas neste sentido, como os “centramentos”, meditações diversas como a da árvore, dos dois pilares, etc.). Grosso modo, o/a dedicante deve estar concentrado, com o nível de trabalho da freqüência cerebral em ‘alfa’, no mínimo, e com o ‘sentimento/percepção’ de estar integrado e a vontade no lugar. Também é necessário que o/a dedicante tenha meditado por certo tempo o que procura, sobre o que gostaria de receber o “conselho”, a ordem, e tenha os objetivos claros em sua mente.

[Este passagem, hoje vejo, está mal redigida. Hoje eu diria o seguinte: deve-se se purificar, dirigir-se ao altar, realizar a oferenda e expor formalmente a questão que se deseja respondida ao deus. É óbvio que a consulta deve ser para algo sério, não se trata de um procedimento oracular para banalidades. Após isto, caso seja necessário, dispor a oferenda adequadamente – no caso do culto a Asclépio, por vezes, tomava-se um novo banho; no caso do procedimento descrito no culto a Silvano, talvez coubesse misturar algo do que fora sacrificado, um pouco do insumo das frutas silvestres ou o próprio vinho ao banho – e então deitar-se e buscar dormir.]

Tempo: a assimilação da divindade com o submundo e com aspectos avernais num geral, parece indicar que o rito seja melhor feito durante a noite. Este ponto é obscuro, não há nada em nossas fontes que sugira algo. Caso o rito seja realizado durante a noite, talvez seja necessário algum tipo de fogo.

[Outro ponto vago: no geral, incubationes era realizadas ao pôr do sol, justamente para que o devoto durma, mais ou menos, em seu horário normal de sono – por vezes nos esquecemos que, até o advento das luzes elétricas e formas mais eficazes de iluminação, era relativamente comum para muitos dormirem em dois “sonos”. Realmente o uso do fogo não está claro, mas se houver, o mesmo será necessário apenas durante a prece e sacrifício].

O rito

Após as devidas preparações, o/a dedicante dirige-se ao altar e ora ao deus:

 

“Em teus domínios venho, ó Endovélico,
Deus santo do mundo d’além,
Cuja escuridão e bonança auxilia,
Salvador que traz o bem,
Cura e revela o que há de ser,
Deus santo Endovélico,
A ti sacrifico,
Para que proclames o mando do Averno,
Através do sono encantado,
E de boa mente peço que aceites, o meu sacrifício ofertado”*

 

São ofertados as oferendas (caso haja um utensílio ritual como um punhal, este é passado sobre a oferenda simbolizando a ‘passagem de estado’) [erro: a oferenda deve ser “destruída”, cortada, derramada ou desfigurada de fato, e não só “simbolicamente”].

É guardado alguma parte da oferenda, mesmo que seja simbolicamente.

O/a dedicante deita-se e tenta dormir em cima da parte guardada (este ponto também dependerá de vários contextos, pode ser forrado algo no chão e colocado a parte guardada da oferenda em baixo, por exemplo. Talvez, colocada a parte guardada da oferenda em baixo do travesseiro funcione, não sei, é algo a se testar…) [se a sugestão de um novo banho antes do sono for tomada, esta parte guardada da oferenda, como já indicado, será misturada a água do banho].

Recomenda-se que se tenha um caderno ou algo a mão para que assim que quando desperto o/a dedicante possa de imediato anotar o sonho. Evidentemente, acontecerá de não dar certo [eu não diria isto: se deu errado, é porque algo foi feito errado], por algum motivo, ou ainda, como já aconteceu comigo, outra pessoa próxima (um familiar, conjugue, etc.) venha a ter um sonho significativo (provavelmente não haverá muito “simbolismo” não: uma voz ou uma pessoa, geralmente, fala abertamente sobre o assunto).

Em todo caso, está ai, e espero que vos seja útil de alguma forma.

*Os que possuem alguma familiaridade com línguas antigas, em especial com o latim ou uma língua celta continental antiga (as reconstruídas), podem desejar falar o conjuro nestas línguas.

Em latim seria algo como:

In tuis dominationibus uenio, o Endouellice,
Deus sanctus Auerni,
Eo tenebris tranquilitatibusque auxiliatur,
Liberator bonum conferens,
Curens et futurum patens,
Deus sanctus Endouellicus,
Tibi sacrifico,
Ut ex imperatio Auerni dicas,
Per incantatum somnum,
Et libens rogo, ut meum sacrificium acceptes.

FONTES:

RIBEIRO, José Cardim. O Deus Sanctus Endovellicus durante a romanidade: ?uma interpretação local de Faunus/Silvanus? In PALAEOHISPANICA v.5. Zaragoza: Institución “Fernando el Católico”, 2005.

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