Texto originalmente publicado no blog “Parahyba Pagã” em 16/10/2009. Mantivemos a redação original, caso hajam novos comentários estes aparecerão entre chaves [] no texto.

É um tópico relativamente consensual no Neopaganismo o não sacrifício animal. Não é difícil encontrar os argumentos a favor disto, autores a fora. O principal argumento que temos encontrado pode ser formulado, mais ou menos, da seguinte forma, obviamente considerando os similares e suas variações: toda vida é sagrada, pessoal e intransferível. Ora violar o que é sagrado é uma profanação, violar o que é pessoal é um desrespeito arbitrário assim como o que é intransferível. Matar é uma violação da vida, logo é uma profanação e um desrespeito arbitrário [na verdade, argumentos do tipo liberal-utilitaristas oriundos do “Ética Prática” de Peter Singer são os mais comuns].
Inclusive é corrente utilizar como critério de diferenciação entre o que pode ser chamado de Neopaganismo e de Paganismo a não execução de sacrifícios animais. Apartando as práticas Neopagãs das práticas das religiões étnicas tradicionais, dos cultos de matriz africana, etc.
Evidentemente que aqui não trataremos dos pormenores deste argumentos e de suas variantes. Seria muito interessante buscarmos as origens deste argumento no Neopaganismo, mas isto é um trabalho que no momento deixaremos de lado. Mas perguntamos, em que medida isto é coerente com o paganismo antigo ocidental e em que medida isto pode ser seguido.
Para a primeira pergunta, uma resposta satisfatória demandaria uma pesquisa história muito extensa em ampla. Por paganismo antigo ocidental, nos referimos as crenças pré-cristãs dos povos que habitavam a Europa ocidental, em especial ao mundo greco-romano, germânico, celta e relacionados. Bem, vamos tratar de maneira ampla. A totalidade destes povos realizavam sacrifícios animais como práticas religiosas corretas e metafisicamente fundamentadas [e mesmo, demandadas pelos próprios deuses, conforme revelado em certas passagens ao longo de várias narrativas mitológicas]. Basta recorrer ao mito grego dos ardis de Prometeu e do primeiro sacrifício (VERNANT, 2006, p. 61) por exemplo para se ter uma ideia do aparato simbólico-discursivo (poderíamos, simplesmente, dizer “mágico”) em cima do sacrifício. Não entraremos nos pormenores.
Havia exceções? Sim, no mundo Europeu, se considera estas exceções em última análise como influência oriental. No geral, a abstinência do sacrifício animal e da eventual refeição comunitária com a carne do animal sacrificado, se relaciona as correntes de mistérios gregas, Orfismo, Pitagorismo e seus desdobramentos, revivências e reinterpretações. Nestas “linhas” – um tanto marginais à religião cívica do mundo grego (ibid. p. 69 ou BURKERT, 1993, p. 572) – o sacrifício de “sangue” é considerado “impuro” (VERNANT, 2006, p. 55). A ligação entre sangue e impureza é muito clara no imaginário cristão, e de alguma forma tem lá suas semelhanças com esta visão órfico-pitagórica [se bem que o próprio filósofo Sócrates, a julgar pelo testemunho de Platão, um crente nos mistérios e possivelmente “iniciado” no Orfismo, não hesitou em fazer um voto de um sacrifício de sangue a Asclépio, voto este cumprido postumamente por seus discípulos].
No geral, muitos dos envolvidos com o Neopaganismo desconhecem a natureza dos sacrifícios do paganismo antigo. Seja por “bloqueio”, pré-conceito ou por real ignorância e falta de interesse no tema. No mundo greco-romano, a primeira esguichada de sangue ainda quente que espirra sobre o altar, muitas vezes acompanhado como no caso grego de um grito ritual ou de uma canção solene, tinha uma importância metafísica crucial. Assim como a decoração dos templos com ossadas de animais sacrificados. Quando o sacrifico era de grandes animais – quem já viu um boi sendo morto pode imaginar a quantidade de sangue – exigia dos sacerdotes verdadeira habilidade no manuseio dos instrumentos para a realização do sacrifício e mesmo no corte da carne (pois muitas partes eram dedicadas aos deuses, ou deuses específicos). Quando tratamos de sacrifícios humanos então, geralmente uma sensação de repulsa nos abate. O mundo Indo-Europeu não tinha a prática de canibalismo como corrente, como entre os nativos daqui (o que não quer dizer que não tenha ocorrido em alguma parte). Imaginar cabeças decepadas encaixadas em estruturas de paredes de santuários, ou corpos em decomposição enforcados em bosques sagrados, não nos parece agradável nem muito “religioso”. Ou mesmo a prática sármata do patricídio, legitimada religiosamente.
Antes que alguém comece a se perguntar se defendo estas práticas atualmente, digo, geralmente, que não. Em alguns casos talvez isto funcione socialmente. Quando a mídia paraibana foi tomada pela notícia do assassinato de uma família quase toda por um casal em João Pessoa, onde os assassinos mataram crianças retalhando-as com um facão, o sentimento do Estado era de ver o casal de assassinos mortos, preferencialmente por meios de suplícios. Claro, muitos cristãos – realmente cristãos – os perdoaram e tal, bastava um arrependimento que os livraria da culpa por qualquer crime hediondo. Mas no geral, o sentimento popular era de revolta (os próprios presos revelaram que tramavam para matar o casal no presídio) e de anseio velado de vingança. Por isso que digo “geralmente” não, pois creio que haja situações onde “pena de morte” seja justificável. Os gauleses (e generaliza-se para os celtas em geral), ao que indica, realizavam sacrifícios de prisioneiros e culpados de crimes considerados muito graves fazendo-os passar por suplícios terríveis (CÉSAR, 1967, p. 199), coisa que era tida como agradável aos deuses. Isto se aplicaria hoje? Sinceramente não sei, nem desejo discutir isto aqui. A questão, é óbvio, é o significado de “crimes muito graves” [como é dito que os Lusitanos também faziam com patricidas – crime gravíssimo – executando-os ao lançar do cimo de penhascos, longes de seus *nemeta – para não os poluir; dentro deste nicho específico de punições capitais, confesso que não vejo muitos problemas morais. Fato é que, se pensarmos na coerência mínima, por mais que não seja o caso de todo politeísta ser a favor de penas capitais, ser “contra” não deveria ser a regra geral].
O que nos interessa é visualizar bem que no mundo antigo o sacrifício animal era ligado com as práticas religiosas, em alguns muitos casos, essencialmente, tanto que muitas vezes “piedoso” ou “religioso” era aquele que observava os dias sagrados e os sacrifícios sangrentos. Isto é contrastante com as práticas do Neopaganismo e os discursos que as legitimam, se excetuarmos as correntes órfico-pitagóricas. Neste sentido não há coerência prática geral, nem teórica se considerarmos as evidências simbólicas presentes em narrações míticas.
Já sobre a sustentabilidade disto, temo nossas dúvidas. O motivo é simples: há como viver sem ceifar vidas? Desde que nascemos, respiramos no ar vários seres microscópicos que são mortos ao entrarem no nosso organismo, ou a bebermos água. Nos alimentamos constantemente de vida retirada ou ainda viva; a vida mantêm nossa vida. No geral, uma das primeiras medidas do Cristianismo, foi proibir o sacrifício cruento de animais. Como isto era impossível, tiveram de “secularizar” a matança, tirando de cena, o sacerdote, as fórmulas, práticas, encanamentos, e o direcionamento das coisas aos deuses.
Ora, mas alguém dirá: “ah mas nos referimos a vida animal…”. Ótimo. Isto implica em um hierarquização dos tipos de vida. Ou melhor, da vida dos seres. Geralmente consideramos que a vida de um peixe é “melhor” ou “vale mais” que a de um vegetal, e que a de uma ave “vale mais” que a de um peixe, de um animal mais do que a de uma ave e a de um ser humano, mais do que todas! Isto me parece até algo natural de nossa espécie. Suspeito que um timbú prefira ver um humano morto à outro timbú. Ou então, nos recolhemos no argumento do “ser indolor” [é o caso do argumento de Peter Singer: ser um ser senciente]: tiramos a vida dos que não sentem dor. Este argumento é de um materialismo que nos parece estranho quando percebemos que, muitas vezes, pessoas muito esotéricas ou espirituosas o sustentam [mas é coerente com o materialismo assumido, inserido na tradição filosófica liberal-empirista-utilitarista anglófona de Peter Singer]. Muitas vezes eles próprios concebem a existência de corpos espirituais para estes seres, mas esquecem do sofrimento deles (por ligarem “sofrimento” à posse de um sistema nervoso, posição naturalmente materialista). Na concepção Órfico-pitagórica, talvez isto seja mais facilmente explicado em recorrência ao ciclo hierárquico de reencarnações, etc.
Nem sempre a vida humana é hiper-valorizada no imaginário tradicional Indo-Europeu. No geral, como nos diz Michel Rouche (2009, p. 477), não raro alguns animais como o cavalo, tinham um valor que superava qualquer vínculo familiar entre povos eqüestres. Ainda na Idade Média, foram registrados casos onde o indivíduo preferiu perder sua mãe à seu cavalo. Para os que enxergam estas relações sob o olhar totemista é um pouco mais fácil compreender, mas no geral isto causa um sentimento de horror e/ou de incompreensão.
No mundo antigo Indo-Europeu, a hierarquização de vítimas [e vidas], muitas vezes era corriqueiro, e até prescrito religiosamente [ou filosoficamente estabelecido, como no caso da discussão sobre os tipos de alma que o humano possui, diferentemente dos animais e vegetais, como Aristóteles defende no “De Anima”]. Isto me parece implícito no rito romano do Suovetaurilia ou o védico Sautramani, segundo o esquema trifuncional dumeziliano. Mas hierarquizar vítimas é algo mais compreensível vindo de quem se utiliza de vítimas [diferenciando-as espiritualmente, valorizando certas vidas mais que outras vidas] do que de quem não se utiliza delas, por considerar toda e qualquer vida “sagrada, pessoal e intransferível” segundo o argumento acima. Este argumento, no meu ver, por si só impediria a sobrevivência de qualquer ser, já que me parece impossível evitarmos ceifar a vida (‘vida’ é vida) de seres microscópicos que estamos “ingerindo” constantemente.
Ok, então qual é a saída? Acredito que seja mais razoável defender que por hierarquizarmos vidas que não realizamos sacrifícios de animais. Esta é uma saída, um tanto vaga, claro, mas é uma [cujas bases e argumentos já estão, misticamente na compreensão órfico-pitagórica da metempsicose; filosoficamente, na noção de dignidade humana enquanto ser diferenciado de Platão, Aristóteles, estoicos, etc.]. Há opções que geralmente não são pensadas. Pessoas altamente “espirituosas”, dotadas de uma piedade hiper-crônica [o “hippie” New Age padrão], muitas vezes se esquecem disto quando responde instintivamente matando uma barata que saiu correndo pela cozinha num pisão. Ou quando mataram aquela muriçoca chata tarde da noite. São vidas ceifadas.
Uma das saídas possíveis para a questão das matanças cotidianas não reconhecidas como tal, e que tenho adotado em certa medida, é realizar estes atos do cotidiano que nos confrontam com iminência de ceifar uma vida (para nossa sobrevivência, higiene, saúde, etc.) como sacrifícios “primiciais” [“sacrifícios” carregam uma solene dignidade piedosa em si que, hoje, me parece mais difícil ver nestas ocasiões]. Geralmente, me parece adequado realizar uma breve oração ou dedicação em voz alta antes de realizar o ato. Isto tem me feito perceber ‘vida’ onde geralmente só enxergamos ‘incômodos’, como formigas, rãs, insetos em geral, etc.
Do mesmo modo, que para os que consomem carne, o sacrifício animal é uma ótima saída. Há maneira mais respeitosa de se tirar uma vida do que dedicando-a aos deuses? E ainda por cima, consumindo parte do animal? Creio que esta é uma boa saída para os que vivem em comunidades rurais em oposição aos que, pelo contexto urbano em geral, são levados a consumirem carne industrializada, em processos que muitas vezes envolvem mortes cruéis e total desrespeito para com o animal [e nisto, não é preciso ser um vegano ou “ecochato” para ver que possuem alguma razão ao denunciar certas crueldades desnecessárias]. Muitas vezes, nosso problema é que consumimos carne demais em nossa vida moderna. Os gregos só consumiam carne dos sacrifícios e de acordo com as regras sacrificais, por exemplo (VERNANT, 2006, p. 58). Sem contar que em reuniões comunitárias como um casamento, ou festa de homenagens, muitas vezes é um costume ocorrer, no interiorzão da Paraíba, a matança de um boi, carneiro, bode, ovelha, porco ou mesmo galinhas, etc. Geralmente na zona rural, um casamento implica na matança de algum animal. Isto poderia ser repaganizado – ao que me parece – “sem traumas” (já que suspeito que isto vem diretamente das épocas pagãs) [e enquanto prática, piorou-se com a Cristianização, uma vez que a legislação no alto medievo, proibiu as maneiras de matar animais de modo mais rápido e indolor, por caracterizarem “paganismo” ou mesmo “judaísmo” – a história da PB, no caso do Santo Ofício, registra ainda no séc. XVIII, acusações deste tipo relacionadas ao modo como os animais eram abatidos. Fato é que, hoje, a prática comum nas comunidades rurais, como já observei, consiste em técnicas ruins que muitas vezes fazem o animal sofrer desnecessariamente. E isto poderia ser corrigido, com uma mudança de atitude religiosa. No entanto, é interessante notar, uma parte considerável dos animais criados nas comunidades rurais por cá passaria ou chegaria perto numa visão de “bem estar animal” ou “boa vida” antes do abate, como pensado por Peter Singer].
Ou seja, sustentar este discurso de “não tirar a vida” é difícil. Os antigos parecem ter percebido que tirar a vida é algo sagrado, solene e respeitoso em si mesmo, já que inevitável. Nos idiomas célticos, temos uma ótima maneira de ver isto: o termo “sacrifício” é bem próximo de “retribuição”, *ati-(od)-berto-, e para “vítima”, “retribuída ou atribuída” *ad-bertā (em Galês médio ‘aberth’, em Irlandês antigo ‘edbart’ ou ‘idbart’). “Sacrificar” é, nesta maneira de ver, retribuir; e só retribui quem recebe algo.
Bem, com este brevíssimo texto não desejo convencer o público Neopagão a realizar sacrifícios de animais. Apenas desejo provocar a reflexão a este respeito. Creio que é preciso analisar alguns dos argumentos, e creio que caso estes sejam “fracos”, realizamos um favor à comunidade Neopagã em demonstrar isto. Isto torna possível a elaboração de argumentos mais firmes.
[Sobre este tema, minha posição não mudou muito: considero que o vegetarianismo é uma opção coerente se, se assume, como os pitagóricos ou certo ramo dos hindus, certa concepção de metempsicose – ou seja, quando se é por concepção religiosa. Considero hipócrita e pouco defensável a condenação do sacrifício animal – realizado adequadamente, o que significa com o mínimo ou nenhum sofrimento na hora do abate – quando se come carne industrializada. De modo que, um “carnívoro” não tem muita moral para condenar qualquer sacrifício animal realizado adequadamente.]
Fontes:
BURKERT, Walter. Religião grega na época clássica e arcaica. Tradução: M. J. Simões Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.
CÉSAR, Júlio. Comentários sobre a guerra gálica (De bello Gallico). Tradução: Francisco Sotero dos Reis. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1967.
ROUCHE, Michel. Alta Idade Média Ocidental. In VEYNE, Paul (org.). História da vida privada 1: do Império Romano ao ano mil. Tradução: Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia antiga. Tradução: Joana Angélica D’Ávila Melo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.