Túmulo de Eleanor de Aquitânia, matrona das artes e literatura, lendo até mesmo na morte.
[Este artigo foi originalmente escrito no blog slakkosabonos.blogspot.com que não comportava um texto tão longo, e por isso foi dividido em três parte, razão pela qual, ao lê-lo o leitor aqui encontrará algumas divisões e recapitulações.]
Parte 1
Corre na web, ao que parece desde 2013, uma campanha contra o Cavalheirismo, elencada por pessoas que se acreditam feministas. Recentemente li alguns textos a respeito e, por achar esta uma campanha diretamente prejudicial a toda a sociedade e do interesse do Reconstrucionismo Celta, resolvi colocar esta contribuição.
Antes de qualquer coisa, mantenho o termo ‘Machismo’ no título para aparecer em mecanismo de busca quando alguém procurar pelo tema. Mas a verdade é que não faço ideia do que é Machismo. Nunca encontrei em nenhuma das autoras feministas do meio acadêmico cujas obras li, este termo, e sim, Patriarcado, Androcracia, Misoginia. Machismo é um termo indefinido que não se aplica a nenhum dos termos anteriores, que são diferentes entre si, parece ser só o ideal para significar qualquer coisa da qual se queira acusar alguém ou algum grupo. Mas uma vez que minha contribuição ao tema é uma crítica a este artigo aqui, e que, entendi do dito texto que Machismo ali representa Misoginia, faça o leitor o favor de substituir aquele termo por este quando o ler aqui.
Então, para começar, minha contribuição se dará com uma explicação histórica do que é Cavalheirismo, como surgiu, quais suas raízes e motivações, seu significado, e por fim, porque não é Machismo. E é retornando às origens do Cavalheirismo que vou abordar a Cultura Celta pré-cristã e, ficará claro ao leitor que interesse o Reconstrucionismo Celta pode ter na sua preservação.
Como deve ser de conhecimento do leitor de língua portuguesa, Cavalheirismo e Cavalaria estão conectados não apenas pelo radical das palavras, mas pelo momento histórico e circunstâncias comuns a sua criação. A aristocracia guerreira desde a Antiguidade destacava-se pelo uso de cavalos em batalhas. Durante a Idade do Bronze e do Ferro carros de guerra eram puxados por cavalos, inicialmente contendo quatro rodas, mas posteriormente evoluindo por toda a Europa para o estilo biga, ou seja, com duas rodas apenas. Já na Idade Média, esta arma de guerra entrou em desuso, e a aristocracia passou a apenas montar os cavalos.
Em Portugal cada herdadeiro (senhor de terras) deveria contribuir com um determinado número de arqueiros, lanceiros, cavalos e cavaleiros, entre outros. Cada um destes nobres carregava um símbolo de seus feitos, dos de seus ancestrais e da região de onde vinham: as heráldicas, registradas no Colégio de Arautos, uma espécie de arquivo de todos os nobres da Europa. Destes grupos surgiram Ordens de Cavalaria, com seus códigos de conduta e juramentos próprios e variados, mas todas elas tinham por base os quatro preceitos: Proteger as mulheres e os fracos, defender a justiça, amar sua terra natal, e, defender a igreja (neste caso, a ICAR).
Todos os cavaleiros e integrantes da armada de um nobre, habitavam sua fortificação, e com eles viajavam de uma para outra. Além de todos estes homens habitavam as fortificações uma série de serviçais e damas pertencentes à família do nobre ou à de senhores vassalos e que recebiam nestas moradas, instrução e apadrinhamento por parte das senhoras. Sobre estas senhoras recaía, portanto, mais do que a tarefa de administrar a manutenção e alimentação de uma comunidade destas proporções, também a segurança e o bem-estar de todas as suas damas, e, na ausência ou morte do esposo, cabia todas as demais funções administrativas feudais. A historiografia demonstra que entre as mulheres pobres era muito mais fácil adquirir matrimônio por amor e vontade própria, mas para as integrantes da nobreza, o casamento encerrava uma série de obrigações políticas, militares e a manutenção da linhagem.
As senhoras deviam, então, zelar também pelo comportamento sexual entre suas damas e cavaleiros. Era preciso haver um código de conduta próprio para este ambiente tão populoso, e aos homens coube, naturalmente, um código próximo àquele que eles já tinham como juramento perante seu suserano, seus companheiros e a igreja. Uma vez que o Cavalheirismo abordado nesta campanha difamatória se concentra sobre as relações entre gêneros, também este texto se concentra em abordar a fração do Cavalheirismo que corresponde à relação entre homens e mulheres, e para tanto, vai buscar na Literatura Medieval suas origens e diretrizes.
Já deve ser de conhecimento do leitor que as relações entre a França e a Grã-Bretanha são desde o século XI d.C. bem estreitas, isto devido à conquista da Inglaterra, em 1066 por William Duque da Normandia, que se fez coroar rei e com seus vassalos e descendentes expandiu seu território, ao longo dos séculos seguintes por boa parte da Ilha Britânica e das casas nobres da França. No século XI passou a haver entre Inglaterra e França um grande intercâmbio cultural alavancado pelas constantes viagens e casamentos entre a então nobreza inglesa e a francesa, de forma que ambas as culturas passaram a se influenciar mutuamente.
Era comum, no século XII que a nobreza normanda instalada na Inglaterra recebesse bardos galeses e gaélicos como hóspedes ou contratados, e que estes oferecessem sua poesia lírica como entretenimento e serviço. Assim contos oriundos da Mitologia Celta passaram então a ser conhecidos pela aristocracia normanda, que os exportou para os salões da nobreza francesa, que, com exceção da Bretanha francesa, já ia bem vilipendiada de sua origem céltica pelos séculos de conquista romana, invasões bárbaras e cristãs.
Não demorou e a poesia lírica bárdica da Ilha Britânica passou a ser escrita por poetas e monges aristocratas sob o mecenato dos nobres, assim como o eram as giestas, tratados, textos sagrados e demais categorias da literatura medieval. Igualmente entre os países ainda célticos, como Gales e Irlanda, a constante pressão de invasores levou a um crescimento da importância da poesia escrita como forma de preservação. Entre os que se dedicaram a isto que hoje chamamos de Matéria da Bretanha, está Marie de France, tida como a precursora do gênero amor-cortês e responsável por levar à corte de Henry II e ao continente contos que ela afirmou ter ouvido de menestréis britônicos, e que, frequentemente envolviam temas românticos e aspectos do sobre-natural céltico. A ela se seguiram outros, como George de Monmouth, Thomas e Béroul, entre outros, escrevendo sobre o Ciclo Arturiano.
Tendo vivido na corte ou próximo à corte de Henry II, Marie de France foi contemporânea de outra mulher muito culta de sua época, Eleanor Duquesa da Aquitânia, que foi Rainha da França em virtude de seu primeiro casamento com Louis VII, e, posteriormente Rainha da Inglaterra por seu segundo casamento com Henry II. Riquíssima, influente, bem educada e inteligente, Eleanor de Aquitânia não só casou e descasou como bem quis, como também arquitetou condições matrimoniais muito favoráveis a ela e seus 10 filhos, a quem colocou em tronos e ducados da Inglaterra até a Germânia.
Por sua perspicácia política e casamenteira, Eleanor de Aquitânia foi direta e indiretamente responsável pelo destino de boa parte do cenário político da Europa Ocidental, fazendo ligações diplomáticas e matrimoniais desde a Península Ibérica até a Germânia, ou colocando-se em revoluções, como a que arquitetou contra o próprio esposo Henry II em favor de seu filho de mesmo nome que o pai. Contudo, Eleanor de Aquitânia é mais celebrada na memória ocidental por ter influenciado com erudição a cultura do norte da França e da Inglaterra, patrocinando o Trovadorismo, oriundo do Sul da França assim como ela, e dando-lhe ensejo para desenvolver-se por a toda a Europa Ocidental.
Se foi Marie de France quem trouxe o substrato cultural céltico para a literatura medieval e Eleanor de Aquitânia quem permitiu a união deste com o Trovadorismo, foi a filha mais velha de Eleanor com Louis VII, Marie Condessa de Champagne, quem permitiu a elaboração de um tratado definitivo que, inspirado nos valores célticos, cristãos e nos da cavalaria medieval, estabeleceu a forma como as relações entre homens e mulheres deveriam ocorrer.
Marie de Champagne foi igualmente culta e patrocinadora de autores famosos da Idade Média, entre eles, Chrétien de Troyes, autor de várias obras que abordaram a o Ciclo Arturiano da Matéria da Bretanha, e as giestas de nobres cavaleiros de sua época – é tido como o maior autor do estilo Trouvère, o do amor-cortês. Mas foi o clérigo Andreas Capellanus, outro autor sob o mecenato de Marie de Champagne, quem escreveu o famoso Tratado do Amor Cortês entre 1186 e 1190 d.C.
Busto da Duquesa Marie de Champagne.
O Tratado do Amor-Cortês apresenta diálogos entre homens e mulheres de diferentes classes sociais, demonstrando como deveriam portar-se, e também alguns julgamentos da própria Marie de Champagne acerca do decoro em seu ducado. O tratado explana sobre a natureza do amor, como as pessoas devem ser e agir para merecê-lo, como alimentá-lo e identificar traições e declínios nos sentimentos, e, resgatá-lo. Uma obra gestada e encomendada por mulheres, para apontar o comportamento que homens e mulheres deveriam ter, e que apresenta um recado claro: Tão virtuoso quanto se é como guerreiro, deve-se ser como amante. Ou, nas palavras do próprio Capellanus: “Só a virtude torna alguém digno de ser amado”.
Mas antes de continuar falando do Tratado do Amor Cortês, reservo para a continuação deste artigo uma ilustração mais detalhada de como os paradigmas célticos influenciaram aos Trouvères e ao Cavalheirismo.
Parte 2
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Deirdre e Naoise, de A.C. Michaels. |
Esta segunda parte do artigo ‘Cavalheirismo não é Machismo’ ilustra para o leitor a origem céltica de boa parte destas virtudes cavalheirescas, falemos então de como a literatura do amor-cortês está imbuída dos temas da Mitologia Celta. O Ciclo do Ulster e o Ciclo Feniano são aqueles pertencentes à literatura vernacular irlandesa que mais influenciaram aos Trouvères. No primeiro encontram-se contos oriundos da Idade do Ferro e que giram em torno da corte do Rei Conchonbarr e do maior herói gaélico, Cúchullain. No segundo, os contos em torno da confraria guerreira liderada por Finn McCull.
A Me. Maria Nazareth Alvim de Barros exemplifica em especial o conto Os Filhos de Uisnech, do Ciclo do Ulster, e, A perseguição de Diarmuid e Greinne, do Ciclo Feniano, como os mais bem explícitos exemplos da temática céltica em torno das virtudes guerreiras e amorosas implícitas na literatura dos Trouvères, e às obras de Tristão e Isolda, pertencente ao amálgama galês do Ciclo Arturiano, atribui a apoteose desta categoria literária.
No conto Os Filhos de Uisnech, vemos como o vicioso rei Conchonbarr ordena o enclausuramento de uma recém nascida profetizada para ser a mulher mais bela da Irlanda e causa da morte de muitos guerreiros, Deridre, a fim de que esta venha a ser sua consorte. Soberana como se esperava que fosse uma mulher céltica da Idade do Ferro, Deirdre decide seu próprio destino escolhendo o mais valoroso e honrado guerreiro de sua geração, Naoise filho de Uisnech, e põe sobre ele uma géis, encanto que impõe um juramento, uma obrigação, através do qual ele não pode esquivar-se de seu amor. Sabendo da profecia e prevendo a ira de Conchonbarr, os amantes exilam-se na Escócia, junto com os irmãos e demais companheiros de guerra de Naoise que recusam-se a abandoná-lo.
É o então campeão do Rei Conchonbarr, Fergus MacRóich, quem parlamenta o regresso e perdão dos amantes e seu grupo, prometendo-lhes salvo conduto e proteção. Mas o rei é falso e ardiloso, ele finge concordar, no entanto, quando Naoise, Deirdre e seus amigos aportam na Irlanda, ele usa de um ardil para afastar Fergus e seus guerreiros. Por conta de outros juramentos que recaem sobre Fergus, ele é obrigado a ausentar-se e não pode ir ao socorro dos amigos. Conchonbarr leva seu exército e ataca os recém chegados. O texto segue com as proezas de Naoise e seus companheiros resistindo ao exército do rei, mas sucumbindo ao final. Deirdre é feita prisioneira por Conchonbarr e após um ano de sofrimento e fidelidade à memória de Naoise, tira a própria vida.
Ainda no Ciclo do Ulster, o conto intitulado A corte de Emer, mostra Cúchullain tentando conquistar a mão de Emer. O herói faz sua aproximação quando ela está ensinando suas virtudes a 30 outras mulheres, e expõe seu desejo de tê-la como esposa, elogia seus seios comparando-os a uma campina onde gostaria de repousar. Emer então impõe suas condições para aceitá-lo: “Nenhum homem repousará aqui, a menos que possa saltar ao longo de três muros, matar três grupos de nove homens com um só golpe, deixando um homem em cada grupo vivo, e matar cem homens em cada um dos vaus daqui até Emain Macha”. Cuchullain aceita e cumpre as tarefas e Emer concorda em casar-se com ele. Ele parte para a Escócia para aprimorar suas habilidades guerreiras e o romance entre os dois permanece em segredo até o seu retorno. Mais tarde Cúchullain se tornará o maior herói da Irlanda por defender sozinho seu país, o Ulster, da invasão dos exércitos unidos de todas as outras regiões da Irlanda.
Já no conto A Perseguição a Diarmuid e Greinne, vemos o grande chefe guerreiro Finn McCull arranjar seu casamento com a princesa Greinne. Ora, o conto nos diz que Finn já era idoso, e outros textos do ciclo mostram que ele não havia sido fiel ao coração das várias mulheres com quem se uniu e teve filhos. Embora seja um grande guerreiro e sábio vidente, o ciclo coloca neste conto uma punição para Finn. Ao receber no salão a Finn e sua confraria, e ver sua idade avançada, Greinne desiste de se casar com ele. Ela interroga seu druida sobre a identidade e os feitos de bravura dos demais integrantes da Fianna para escolher outro parceiro para si.
Greinne, então, serve uma poção mágica que põe a todos em sono profundo, e se aproxima dos dois guerreiros da confraria com quem gostaria de se casar. Primeiro faz a corte a Oisin, filho de Finn, mas por estar sob outro juramento, ele não pode desposá-la. Ela, então, faz a corte a Diarmuid, mas ele recusa, pois não quer trair a confiança de Finn. A dama então põe sobre ele uma géis e Diarmuid se vê compelido a fugir com ela enquanto todos dormem. Ao acordar, Finn fica irado, e ainda que Oisin seja testemunha de que Diarmuid não o traiu, Finn quer vingar-se.
O conto se segue com a perseguição aos amantes e as proezas de Diarmuid, auxiliado por Oengus Og, deus do amor, para enfrentar Finn e sua confraria. Os guerreiros de Finn o seguem mas passam a dividir-se em sua lealdade ao líder, alguns deles consideram injusta a perseguição a Diarmuid e a Greinne. Com a interferência diplomática do deus Oengus, Finn aceita a paz com aos amantes, mas só para no futuro armar uma cilada contra Diarmuid. Greinne teria, segundo algumas versões, morrido de tristeza junto a Diarmuid, e o enredo deste conto teria dado ensejo ao fim da confraria.
De volta à literatura Trouvères, em Tristão e Isolda, vemos novamente um guerreiro valoroso e leal apaixonar-se pela mulher prometida ao seu líder, o Rei Marc. Tristão é o matador de dragões e gigantes, sobrinho do Rei Marc (ambos vassalos do Rei Arthur), Isolda é a princesa curandeira da Irlanda. Tristão vai para a Irlanda com a missão de matar um dragão e com este feito conseguir a mão da princesa para o tio. Ele logra seu feito, mas se fere no combate, Isolda o cura e os dois se apaixonam. Mas para cumprir com sua palavra, Tristão teve de levar a mão de Isolda para seu tio, que ignora a paixão entre eles.
Ao tomar por engano uma poção mágica, Tristão e Isolda ficam para sempre ligados, incapazes de entregar seus corações a outros. O paradoxo está na fidelidade e lealdade que os amantes têm um para com o outro, ainda que vivam em adultério, pois Isolda é obrigada a casar-se com Marc. O adultério segue até que os amantes são descobertos, o Rei Marc exila o sobrinho e como punição, entrega a esposa aos leprosos. Tristão consegue salvá-la e, exilados, passam a viver na floresta da caça e da coleta, uma vida simples e feliz, mas eles lamentam por terem quebrado sua palavra para com Marc, que era um bom homem e um bom rei.
Tristão e Isolda de John William Waterhouse.
Certo dia o Rei Marc descobre o esconderijo dos amantes e os vê ainda dormindo, mas naquela noite, cansados, eles não dormiam juntos, e Tristão colocara sua espada entre seu corpo e o de Isolda. Ao ver a cena, Marc crê que os dois eram inocentes e que havia cometido uma injustiça contra eles, e os convida a voltar para a corte. Tristão sente-se dividido entre a lealdade ao rei e o amor a Isolda, mas a convence a voltar. Ele entrega Isolda a Marc e exila-se na Bretanha francesa.
A infelicidade reinicia-se: Isolda é infeliz porque é obrigada a deitar-se com Marc, Tristão também o é porque padece de ciúmes. Num momento de desespero ele aceita a corte de uma mulher de mesmo nome que sua amada, Isolda das Mãos Brancas, princesa da Bretanha francesa, e casa-se com ela. Mas após a cerimônia ele cai em si e se arrepende, querendo poupar a virtude da esposa que está prestes a entregar-se a um homem que não pode amá-la. Ele mente, diz que sofre de uma doença e por isso não pode consumar o casamento. Ela acredita, e se torna também uma infeliz, mas ao descobrir a mentira de Tristão se enfurece e o envenena.
Nada é capaz de curar Tristão, mas seu companheiro de armas, Kaherdin, navega até Tintagel e relata o sucedido a Isolda. Ela navega com ele para a Bretanha levando seus elixires para tentar salvar o amante, mas o clima os atrasa e eles não conseguem chegar a tempo. Vendo Tristão morto, Isolda falece ao seu lado. O Rei Marc mandou sepultá-los juntos: sobre Isolda plantou uma roseira, e sobre Tristão, uma vinha. As duas plantas se enroscaram e cresceram tão emaranhadas que nada podia separá-las.
Todos estes contos de origem celta legaram o padrão disseminado pelo amor-cortês. É pelas virtudes guerreiras que um homem merece ser amado: ele deve ser valente, leal, proteger a amada e zelar pela segurança dos mais fracos. Ela deve cultivar virtudes e talentos, e escolher um homem por seu merecimento. A conquista é árdua para o homem, ele deve louvá-la, respeitá-la, esperar, e lutar por ela. Uma vez conquistado o amor, a fidelidade entre eles deve estar acima de tudo, mesmo das convenções sociais e do poder estabelecido.
Assim como na Mitologia Celta, os cavaleiros devem ser tão fiéis a sua amada quanto são leais a seu suserano e companheiros de armas (se não mais). Assim como na Mitologia Celta, as heroínas se rebelam contra imposições sociais e escolhem a quem entregar seu amor, e o fazem em virtude dos feitos dos homens. Ainda como na Mitologia Celta, um encantamento (geis ou poção) representa a magia inquebrantável do amor e do juramento entre os amantes. Tanto o herói celta, quanto o cavaleiro das Trouvères eram liderados no amor pela mulher, de certa forma, eram seus vassalos. Nas palavras de Barros:
Iluminura do Codex Mannesse. Considerada a mais importante obra alemã da Idade Média. |
“…o amor era visto como o próprio destino, ou seja, a busca maior do homem que, glorioso pelos feitos heróicos, se completava pela descoberta amorosa. O amor cortês glorificava a figura feminina, transformava-a no bem supremo, mas fazia do homem um vassalo […] A tudo isso se associava a noção de mesura, que se opunha à desmesura, a qual caracterizava não só o herói trágico quanto o herói celta.”
E como conclui Adriano Gonçalves Laranjeira: “Os jovens cavaleiros procuravam, pois, conseguir o agrado da dama amada, na mais absoluta discrição. Em sua homenagem venciam torneios, compunham versos, eram caridosos com os necessitados. No jogo cortês elas são o “senhor”, e eles, os vassalos, aqueles que prestam juras de fidelidade.”
E “a mulher cumpria, assim, no convívio social da corte, o papel de educadora dos jovens cavaleiros. O Tratado do Amor Cortês, quando se propõe a normatizar as práticas do amor cortês, coloca as mulheres em lugar de destaque, no papel das condutoras das ações masculinas”.
Na próxima e última parte deste artigo, uma crítica à campanha ‘Cavalheirismo é Machismo’, e uma defesa da manutenção e resgate do Cavalheirismo e das virtudes guerreiras.
Parte 3
La belle dame sans merci, de Frank Bernard Dicksee, 1901.
Como vimos até agora, a Cavalaria é obra dos homens, e o Cavalheirismo é obra das mulheres. Ambos preservam o cerne da identidade céltica do oeste europeu, juntamente com as adições do período medieval e as cristãs. Mas o importante é que esta criação que as mulheres influentes da Idade Média nos legaram, preservam junto com a identidade ocidental as normas de conduta que impedem os homens de serem tirânicos para com elas, e ao invés disso, os inspira a serem honrados e fazerem a justiça não apenas em campo de batalha, mas em todo o convívio social.
Um fato biológico que não pode ser alterado, é que os corpos masculinos são mais fortes que os corpos femininos. Por isso, embora as mulheres tenham todas as ferramentas intelectuais para influenciar a sociedade, que aponto neste texto, em tempos de conflito ou crise, a sobrevivência delas nunca vai depender apenas de si mesmas, mas do caráter dos homens que elas têm como aliados. E somos uma espécie social: aliados são essenciais, até mesmo para os homens, cuja sobrevivência depende do caráter de outros homens que eles têm como aliados. Desconectar os seres humanos e os compromissos que eles têm uns para com os outros, não é solução, é sabotagem.
É evidente que nem todo homem é um cavalheiro, ainda que seja gentil. Ao longo de toda a história da humanidade sempre houve homens que aproveitaram sua força física para submeter os mais fracos e, entre eles as mulheres, a suas vontades. Na Idade Média não foi diferente, o já citado William I, conquistador da Inglaterra seqüestrou e casou-se com Matilda de Flanders. A princípio ele a pediu em casamento, ela fez a descortesia de rejeitá-lo afirmando que era muito bem nascida para se casar com um bastardo. Ele a seqüestrou. O pai de Matilda até tentou reavê-la, ofereceu resgate, ameaçou com guerra, mas ela recusou e quis permanecer casada. Aparentemente eram ótimos cúmplices: uniram seus exércitos e juntos arquitetaram a conquista da Inglaterra.
A última descendente de Celtas a governar a Bretanha francesa foi Anna Vreizh, Duquesa da Bretanha. Para evitar que seu território fosse anexado pelo rei da França ela se casou com Maximilliano de Habsbourg, imperador do Sacro Império Romano-Germânico. O então rei da França, Carlos VIII, atacou sua fortificação em Rennes, seqüestrou-a e obrigou a casar-se com ele, tornando-a rainha da França em 1492. Fatos como estes inspiraram os romances do séc. XVIII e XIX sobre damas medievais prisioneiras em torres, passivamente necessitadas de um herói que as salvasse. Mas este estereótipo está longe de ser a regra.
O Cavalheirismo era a característica que distinguia os Cavaleiros injustos dos justos, os que acreditavam que sua força deveria servir para o bem, e que não tinham direito de impô-la sobre as mulheres e os mais fracos. Não precisou ser criado entre Celtas, pois as mulheres antes da romanização e cristianização tinham recursos financeiros e legais para defenderem sua vontade tanto quanto os homens em tempos de paz. Tinham, inclusive, recursos legais para irem à guerra dividir esta responsabilidade com os homens, se preciso fosse. E os homens, estavam imersos neste paradigma de respeito à figura feminina.
Na Lusitânia e Galícia eram as mulheres quem herdavam as terras, e não os homens. Na Irlanda e boa parte da Britânia, elas tinham direito à herança e ao divórcio, e a conservar suas posses e filhos. Mesmo na Idade Média, em locais aonde a herança Celta permanecia mais forte, havia leis que asseguravam os direitos das mulheres sobre suas posses e a escolha de seus consortes. No País de Gales a Lei de Hywell Dda afirmava que a mulher tinha o direito de escolher com quem se casar, e se a família tentasse impedir, era direito dela fugir para se casar. O Cavalheirismo foi a forma como esta herança céltica de autonomia feminina pôde sobreviver na nossa cultura.
No texto que aqui critico, o autor afirma que Cavalheirismo é Machismo porque as mesuras e gentilezas com que os homens tratam as mulheres destinam-se apenas a conseguir manter relações sexuais com elas. Seu argumento origina-se de uma disputa por quem vai pagar a conta do jantar e do motel, afirmando que se os homens pagam a conta, é para poder manter relações sexuais, assim comprando as mulheres, e que elas sabem e aceitam isto, sendo, portanto, um Machismo mutuamente instituído. Assim, sugere que as gentilezas se encerrem e que as mulheres paguem também as contas, para evidenciar que não estão sendo compradas, mas mantendo sua independência e a relação sexual por sua livre escolha.
O argumento é desde o início falho, pois não aborda uma relação cavalheiresca, muito menos de amor, afinal exclui o pudor, a preservação e, principalmente, exclui a premissa das virtudes para ser merecedor do amor. Se um homem leva uma mulher para jantar esperando manter relação sexual com ela na mesma noite, sem amor, ele não é um cavalheiro. Se a mulher sai para o primeiro encontro com um homem e mantém relação sexual com ele, sem amor (dividam eles a conta ou não), ela não é uma dama. Nem este homem tem motivos para esperar merecer uma dama como companheira, nem esta mulher tem motivos para esperar merecer um cavalheiro como companheiro.
Não é nada contra sexo, muito menos é sobre sexo apenas após o matrimônio. O Tratado do Amor Cortês e a literatura Trouvères não pregam a castidade, ao contrário. As prosas de Tristão e Isolda têm várias passagens de encontros nas quais fica implícita a relação sexual. Este padrão se repete em várias outras obras, como Aucassin e Nicolete, ou as que abordam os personagens Guinevere e Lancelot. Mesmo Capellanus, um clérigo cristão, diz que o amor se concretiza quando o amante pode finalmente estreitar a mulher amada em seus braços (a forma como ele pode se referir a sexo).
É nisso que os Trouvères, escritores nortenhos influenciados pela Mitologia Celta, diferem dos Troubadours, escritores sulistas. Os Trouvères conservam a relação sexual em seu texto e suas idéias, enquanto que os Troubadours relegam aos amantes a impossibilidade da concretização do amor, do ato carnal, sendo por isso enredos trágicos. Nos Trouvères, os temas célticos aparecem na fuga, no amor secreto, na escolha própria, por vezes no adultério, os amantes desafiam tudo e realizam sua paixão, a tristeza só está marcada quando a morte de um ocorre, levando também à morte do outro, fiel até mesmo na morte.
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Troubadours |
O autor do texto Cavalheirismo é Machismo aponta como referências de seu texto a debates em listas de discussão feministas. Bem, eu não sei quem estas pessoas são, por isso não me sinto confortável em criticá-las, mas este comportamento que descrevem e rejeitam não é Cavalheirismo. É apenas seu próprio comportamento moderno e promíscuo, e não a tradição ocidental. Se estes homens mantiveram as gentilezas mas só pensam nas mulheres para sexo, e elas resolveram fazer o mesmo em relação a eles, é a si mesmos que precisam questionar e transformar, não ao Cavalheirismo, que como se vê, não entendem, nem sabem o que é.
Hoje em dia existem contraceptivos que impedem a disseminação de DSTs, e a gravidez indesejada, e mesmo assim há epidemias como a do HPV e HIV. Contudo, até a década de 60 do século passado, estes métodos não existiam e o que evitava, ou melhor, freava a disseminação da sífilis, gonorréia, e outras DSTs era a responsabilidade e a fidelidade. Irresponsáveis e promíscuos sempre existiram, e as DSTs sempre circularam através deles, a diferença hoje em dia é que isto que atualmente chamam de Feminismo, convencionou fingir que apenas os homens eram canalhas e promíscuos, e que uma vez “liberadas” as mulheres também podem sê-lo. A promiscuidade tornou-se um objetivo universal a ser alcançado em nome da igualdade de gêneros. Quem pensa dessa maneira não percebe que só está expandindo mais um comportamento abusivo no qual um ser humano trata a outro como objeto para obter prazer, e, dissemina doenças.
Mas não, promiscuidade não era regra entre os homens, ainda que tenha sido muito mais tolerada entre eles pelo fato de não carregarem filhos no ventre. E não é propagandeando a promiscuidade generalizada, denegrindo o comprometimento, e, destruindo instituições milenares que o Feminismo vai conseguir dar autonomia às mulheres. Tudo o que falei deixa claro que as mulheres do ocidente europeu na Idade Antiga e em certa medida na Idade Média não precisaram ser promíscuas, nem feministas, para serem independentes em suas escolhas amorosas, precisaram apenas de independência econômica.
O Feminismo teve seu papel de imensa importância no século XIX e XX ao romper com os padrões de extrema submissão e exclusão da vida jurídica, econômica e política a que as mulheres foram progressivamente submetidas a partir da Idade Média, e com o padrão de vulnerabilidade e incapacidade que o século XIX lhes atribuiu. Padrão este que reproduziu sobre a figura da princesa medieval prisioneira de uma torre, e também na historiografia, criando uma visão errônea das mulheres antigas e medievas. Por isso fariam melhor os atuais feministas em estudar mais de história e conhecer melhor sua própria cultura antes de difamá-la e descartá-la. Se dedicassem-se mais a ler e menos a ‘tagarelar’ em redes sociais e listas de discussão, provavelmente concentrariam seus esforços de forma mais sábia e eficiente.
Por fim, não é o Cavalheirismo que ensina os homens a comprar mulheres como objetos para obter prazer, são as próprias mulheres promíscuas, que se acreditam liberadas, ou as preguiçosas de adquirir segurança financeira por seus próprios méritos, quem ensinam isso. O Cavalheirismo é o que as mulheres fortes e conscientes têm ensinado a seus filhos por quase mil anos, muito antes do Feminismo.
A propaganda feminista atual diz “Ensine seu filho a não estuprar”, como se as pessoas tivessem andado por aí ensinando uma coisa dessas. Creio que algumas delas não ensinem seus filhos a cortejar, respeitar os mais fracos e um ‘não’ vindo de uma mulher, a conformar-se com a rejeição. O Cavalheirismo, ao contrário, ensina o homem a ser gentil, respeitar as mulheres e os mais fracos e defendê-los, se preciso. Ensina a ser um sujeito honrado, paciente, e a ter retidão. O Cavalheirismo existe no interesse das mulheres e não pode deixar de existir, deve sim, ser preservado.
Bibliografia usada e sugerida:
BARROS, Maria Nazareth A. de. Tristão & Isolda: O mito da paixão / Maria Nazareth Alvim de Barros – São Paulo ; 1996.
ELLIS, Peter Berresford. Celtic Women: Women in Celtic Society and Literature. 1996.
LARANJEIRA, Adriano Gonçalves. Representações da mulher no Tratado do Amor Cortês de André Capelão. UESB. http://www.uesb.br/anpuhba/artigos/anpuh_III/adriano_goncalves.pdf