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A Batalha entre os Deuses e os Titãs, de Joachim Wtewael |
Como dizia na primeira parte deste texto, O Univero é composto de Ordem e Caos, beleza e movimento, mudança, renovação. Para Serith “O caos é perigoso. Ameaça sobrepor-se ao Cosmos. Nós precisamos do Caos; de outra forma, nosso mundo se parte e morre. Indo-Europeus não gostam do Caos. De fato, rituais Indo-Europeus destinam-se a lidar com ele. Contudo, não lidam com o Caos negando-o. O Cosmos, afinal, não o nega. De fato, assim como o Cosmos, os rituais Indo-Europeus integram o Caos ao Cosmos. Um ritual Indo-Europeu portanto se dá no ponto em que a Fonte e a Árvore se encontram. Esta é uma das formas pela qual a Cosmologia afeta a religião.”
Ou seja, os rituais indo-europeus se dão no ponto de encontro entre Caos e Ordem, entre Fonte e Árvore, entre o visível e o invisível – exemplo destes encontros são os Equinócios, o alinhamento astronômico da harmonia, e os Solstícios, alinhamentos astronômicos díspares.
No caso da Cultura Celta, dá-se quando o Tempo encontra o Não-tempo. Quando nosso mundo encontra o Outro-mundo. Samhain é o fim e reinício do Ano, do Tempo. Neste momento o Tempo se desfaz e com ele as fronteiras entre os mundos. A Ordem e o Caos, o visível e o invisível se encontram, assim como os vivos e os mortos. Toda sorte de ser vivente no Cosmos: Sîdh, mouros, janas, trasgos, monstros e mortos, pode caminhar sobre a terra e visitar os mortais. Inicia-se o período de predomínio do Caos, a escuridão e o frio, e é uma quarentena depois, em Imbolc/Ambiuolcia que celebra-se a visita de Brigantia/Brigid, exilada da Irlanda junto a seu esposo destronado, Bres, a quem mantém-se fiel.
Já em Beltaine, oposto ao Samhain, a Ordem e o Caos voltam a se encontrar, mas aqui dá-se o início da guerra cósmica, quando Lugh e os demais deuses se insurgem contra as trevas da exploração dos Fomores, e culmina com a vitória da Ordem sobre o Caos, com a entrada da luz e calor que avança para o verão. O ponto exato da vitória da Ordem sobre o Caos se dá em Lughnassadh quando a vitória de Lugh e os demais deuses sobre os invasores, Fomores (disformes e exploradores) toma lugar, após a Segunda Batalha de Magh Tuireadh, que ocorre ao longo do verão. O Lughnassadh é, portanto, a celebração da vitória e do heroísmo dos deuses.
Continuando com Serith, o autor segue para o caso indo-iraniano do Zoroastrismo, cuja concepção central está na batalha cósmica entre Ahura Mazda, a Ordem e Beleza, e Angra Manyu, Caos e Mentira: “A vontade de Ahura Mazda é que tudo esteja em bela harmonia, em ordem, que o zoroastrismo chama de Asha.
A humanidade não é capaz de agir apenas com beleza, de acordo com esta ordem, mas através das ações, tanto morais quanto rituais, podemos fortalecer Asha no universo e ajudar nesta batalha.”
Já citei acima como a Segunda Batalha de Magh Tuireadh representa na Cultura Celta a vitória da Ordem sobre o Caos, uma leitura atenta desta passagem da Mitolgoia Gaélica mostra como foram aí definidos padrões fundamentais para a Ordem no mundo, tais como a tomada da agricultura pelos deuses (mais uma vez por obra de Lugh) e a definição das estações e colheitas que se dão uma vez ao ano.
De volta às raízes i.e. Serith nos diz “Em grego nós encontramos a palavra ‘aristos’, ‘o melhor’; ‘harmonia’, ‘harmonia’; e ‘ararisko’, ‘encaixar, adaptar, harmonizar’. O armênio nos dá ‘arnel’, ‘fazer’. Todas estas palavras asha, rta, aristos, harmonia, ararisko, e arnel, assim como ‘aritmética’, ‘arte, ‘rito’, remontam ao Proto-Indo-Europeu H²er-* ‘encaixar de acordo com o padrão apropriado’; e o padrão apropriado é aquele que reproduz o Cosmo, o belo e organizado.
A palavra Proto-Indo-Eruopéia para este padrão é Xártus (H²ertus)**. Sobre Rta, Serith nos diz que “é o contrabalanço recíproco, a flutuação de forças que por seu movimento encontram o equilíbrio […] Ainda que todas as nossas ações tomem lugar dentro do Xártus, e embora deva ser nosso objetivo agir de acordo com o Xártus, mesmo as ações que não estão em equilíbrio com este são de alguma forma semeadas e incorporadas.”
Por isso toda a vivência religiosa Indo-Européia é uma tentativa de viver de acordo com este equilíbrio entre a Ordem e o Caos. Estar integrado ao Cosmos é ter consciência de que não se pode agir sempre de forma bela e organizada – nem mesmo os deuses o podem, a mitologia i.e. está repleta de ações injustas, mentiras e egoísmos que por vezes os próprios deuses cometem, e geram reações no universo. No entanto para que a Ordem, o Cosmo prevaleça, é importante esforçar-se por fazê-lo ao máximo, tomando partido do Cosmos na eterna batalha e eterna dança entre Ordem e Caos. É preciso tomar partido dos deuses nesta batalha, não só nesta época no ano, o verão, mas em especial nela.
Aqui voltamos à função sacerdotal. O rito é a forma como o Xartus se reproduz ao longo do tempo. A função do sacerdote é também observar as estrelas, o clima, conhecer os momentos precisos – como também o faz o agricultor em seu dever igualmente sagrado – de achatar a mola (vide a alegoria citada no texto anterior). Todo ritual é uma repetição, e o sacerdote repete a cada ano, no momento propício a união entre o tempo e a terra dos mortais, e a dos deuses. Ele leva seu povo a reviver junto com o Cosmos aquele evento sagrado. O ritual contribui assim para Ordem, é a vitória sobre o Caos. O sacerdote é aquele que aproxima o seu povo da epifania, facilita o encontro com os imortais e ancestrais, ensina o caminho da beleza, da ética, da Ordem, sendo por tanto, o guardião da sabedoria que seu povo detém sobre o universo.
Nós do Politeísmo Celta devemos conhecer nossa Mitologia, lê-la de forma crítica, procurar as ações belas e validá-las, procurar as danosas e nos esforçarmos para não repeti-las, buscando assim uma vida virtuosa. É por isso também que devemos estar em contato com os pontos de encontro entre Ordem e Caos, visível e invisível, nos locais onde os mundos se encontram: a árvore sagrada, a clareira na floresta, a fonte, a praia, a ilha, a montanha, a rocha que desponta na terra. Devemos procurar estes nossos templos, e devemos celebrar nossas estações nos pontos de encontro, integrando-nos ao Cosmos, ao pilar, sustentando o Universo e tomando consciência dos seus movimentos em nós. Devemos cultivar a beleza e a organização, a centralização e a harmonia em nossos corpos, nossa mente, nossos espíritos, nossas ações, nossa arte e técnica, e tudo o mais o que produzimos.
Às vezes teremos de dar voz ao Caos, é parte da nossa natureza, mas é lícito se for no intuito de restabelecer uma Ordem ameaçada pela estagnação. Só não se pode esquecer que, assim como todo movimento do Caos gera uma reação, uma reciprocidade do Cosmos, também nossas ações danosas a nós mesmos e a outros terão reações, e devemos estar prontos a nos responsabilizarmos por elas.
Assim, a reciprocidade se torna também parte fundamental da ética Indo-Européia. Aquele que busca viver como um indo-europeu sempre devolve um presente por um presente, respeito por respeito, hospitalidade por hospitalidade, e, ao contrário do que pregam outros credos, uma pancada por outro pancada.
Indo-europeus não dão a outra face. Fazê-lo seria como quebrar a ordem cósmica, seria romper o movimento de reciprocidade que equilibra, que incorpora e dá Ordem, aos fluxos do Caos. Ao contrário, somos um conjunto de povos que se desenvolveram ao longo do tempo através da ideologia do heroísmo e de guerras constantes. Somos [ou éramos] povos de aristocracias guerreiras, até druidas e agricultores vão à guerra, se necessário. Até as mulheres guerreiam, e com habilidade, se preciso for – os comentaristas clássicos dão conta disto.
Nós do Politeísmo Celta somos cultuadores do heroísmo, da ascese, somos guerreiros ou druidas, ou somos Crín Dana, buscamos a elevação através da ação bela e ordenada, do cumprimento do dever. O quanto de ordem conseguimos manter na vida resulta na honra que construímos, e na maneira pela qual seremos lembrados aqui, e saudados no Reino dos Ancestrais.
*, ** A linguística posiciona o 2 em baixo, e não em cima como está no texto (por puro desconhecimento de como usar o teclado).
Belíssimo texto.
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