Três Faces de Lugus

É sabido que Lugus, a exemplo de outras divindades Celtas, é representado na Gália com três cabeças, no entanto, este artigo não pretende explicar a epígrafe gaulesa, mas abordar a abrangência dos poderes e da simbologia de Lugus sobre as três classes predominantes no mundo céltico, a sacerdotal, a produtora e a guerreira, a partir da mitologia gaélica.

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Lugh, O Deus Multi-habilidoso, ou Samildanach, como é conhecido na Mitologia Gaélica, é uma figura curiosa e típica da Cultura Celta. A despeito de outros panteões, a família real divina gaélica não é reinada por um único e supremo deus acima de todos os demais. Quero dizer que, diferente do Odin nórdico, e do Zeus grego, os Celtas não viam o mundo dos deuses como imutável, com um deus imortal que governava sobre os demais.

A Mitologia Gaélica nos diz, e a epigrafia continental corrobora, que o tempo no mundo dos deuses corre de forma diferente do nosso, muito mais lento, com as semanas de lá passando-se em séculos aqui. E havendo lá o tempo, há também mudanças. Quando os Deuses chegaram ao mundo, Nuada era o seu rei. Ele perdeu a mão na Primeira Batalha de Mag Tuireadh, para assegurar território para os deuses, ou seja, um reino terreno. Foi sucedido por Bres, genro do Dagda, e mais uma vez voltou a reinar depois que este foi deposto. Tendo Lugh feito-se herói na Segunda Batalha de Moytura e Nuada nesta morrido, sucedeu como rei dos deuses. Depois de Lugh sabemos que outros filhos do Dagda reinaram e ainda reinam sobre os deuses, como McGréinne, filho do Sol, McCecht, filho da agricultura, e McCuill, filho da aveleira. E que o próprio Dagda reinou quando os Milésios chegaram à Irlanda. E que mais um filho do Dagda, Finvarra, tem reinado nos últimos séculos.

Percebe-se que Lugh e Nuada foram os únicos a reinar que não eram descendentes do Dagda. Lugh, portanto, não era próximo na linhagem de sucessão, e, nos conta o mito também, que este deus conquistou seu direito a reinar de uma outra forma: pelo mérito!

Ao chegar aos portões de Tara, Lugh descobriu que para entrar, precisava ser mestre em alguma profissão que lá ainda não houvesse. Confiante em ter se especializado em múltiplas artes, Lugh narra aos porteiros toda uma gama de profissões possíveis e imagináveis, passando pela classe produtora como artesão, pela guerreira como um campeão, e pela sacerdotal como mago e historiador, por exemplo.

Os porteiros lhe dizem que para tudo aquilo já existe um deus na côrte dos Tuathá de Dannan, e Lugh então lhes pergunta se eles têm ali um deus versado em tantas artes. Intrigado, o então rei, Nuada, permite a entrada de Lugh e lhe impõe vários testes para provar suas habilidades . Lugh obtém êxito sobre todos os demais deuses, e é então convidado por Nuada a ser rei por um tempo para que resolvesse o conflito entre deuses e Fomores.

É assim que se apresenta ao mundo Lugh/Lugus/Lugo o Deus Multi-habilidoso, Deus de todas as profissões e rei sobre todos os outros por excelência. E tamanha é a sua excelência que ele põe fim à trégua com os Fomores e articula a guerra através da qual os deuses ficarão definitivamente livres dos Fomores, trazendo a harmonia, a Ordem para o mundo.

E tão precioso é este deus que os demais decidem mantê-lo longe da batalha, guardado por 9 cavaleiros. Mas Lugh, contudo, ao ver o seu avô Fomor prestes a usar o terrível poder do seu enorme Olho Mal para fulminar e secar todos os seres vivos e a terra, desvencilha-se dos 9 cavaleiros e entra na batalha. Em alguns textos ele usa uma lança em outra um projétil, para acertar o olho de Balor, com tanta força que este é arremessado para fora da cabeça de seu dono e cai virado para o próprio exército, dizimando-o. E assim nos é apresentado Lugh Lámfatha, O Longo Braço.

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Balor e seu olho são também típicos do mundo Celta e da nossa cultura até hoje. Conhecemos este olho como Mal Olhado, Olho Gordo ou Olho Grande, e vemos nas pessoas que o portam o mesmo poder maléfico de Balor. É muito presente no folclore brasileiro aonde a presença galega é mais forte, e assim como na Mitologia Gaélica costuma ser colocado sobre lavouras e hortas, mas também sobre gado, pessoas e animais domésticos. Eu mesma já fui vítima desta praga Fomor na infância (acredite, leitor! Mas os detalhes ficam para uma outra oportunidade). O poder deste tipo de magia concentra-se na inveja e na ambição em demasia. O rei Fomor com seu enorme olho espiava e invejava as lavouras e gado irlandeses, impunha-lhes tributos pesados, exigia suas crianças como escravas e ía pessoalmente saquear, como no caso da vaca de Cían, o pai de Lugh.

A vitória de Lugh sobre o Olho Mal representa a vitória do agricultor e do sacerdote curandeiro (esta também uma arte do deus, como nos diz o Táin Bó Cualgne) sobre a praga, a peste, os invasores do Outro-mundo e suas doenças e mazelas. Ao fim da batalha, a cabeça decepada de Balor diz que a coloque sobre a cabeça de Lugh para conferir-lhe poderes, mas o Deus desconfia e a coloca sobre uma pedra que é contaminada e morta de imediato.

Então Lugh segue em seu caminho de maestria nas artes e profissões e vai negociar com Bres, que estava do lado dos Fomores. Eles fecham um acordo e Bres revela para Lugh os segredos da agricultura, das épocas para semear e colher, e neste diálogo estabelecem que este ciclo deve ser anual. Lugh ainda chefia o Dagda e Ogma no resgate da harpa Carvalho de Duas Floradas, que havia sido roubada pelos Fomores e é de fundamental importância para a agricultura e a Ordem no mundo, já que ao ser tocada pelo Dagda esta harpa executa a magia que faz com que o tempo e as estações do ano se sucedam.

Este episódio da Mitologia, a Segunda Batalha de Mag Tuireadh, é fundamental para a Ordem, para o mundo cosmisado como o conhecemos, com o tempo, o trabalho, os ciclos, os valores e virtudes. É um passo a mais de “civilização” na criação. Lugus é o deus que nos proporciona tudo isso. Ele surge agregando todas as virtudes e profissões que já existiam, superando seus mestres nelas. Em seguida ele liberta, ordena, ensina os deuses a serem soberanos sobre si mesmos e seu território. Devolve-lhes o orgulho e impõe a justiça. Ele é um rei por excelência e não por ascendência. Lugus é uma epifania da juventude e masculinidade, o herói divino, também pai do maior herói mortal, Cúchulainn. Um Deus para todas as profissões e ocupações, para guerreiros, reis, sacerdotes e qualquer um que busque disciplina, ritualística, sucesso e vitória.

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