O Fogo da Mente – Um Meio de Ascese Feminina

“Eu fui ao bosque de aveleiras,

Porque havia um fogo na minha cabeça.

Cortei e descasquei um ramo de aveleira,

Espetei uma baga em um fio

E atirei a um rio

[…]

Alguém chamou-me pelo nome:

Era uma moça brilhante,

Com flores de macieira nos cabelos,

Que chamou-me pelo nome e correu,

Desaparecendo no ar brilhante…”

(The Song of Wandering Aengus de William Butler Yeats)

As Aveleiras são sagradas nas Culturas Celtas. Entre gaélicos é o fruto que confere sabedoria ao Salmão de Fée, e a letra Coll do alfabeto Ogham, símbolo de conhecimento. No poema acima sobre o deus Aengus e seus sonhos de inspiração, o poeta Yeats aludiu a um tema comum da tradição irlandesa, as Aisling: sonhos proféticos e de inspiração poética concedidos pela Deusa da Soberania. Ele sentiu o fogo da inspiração em sua mente e por isso foi ao bosque de aveleiras aonde encontrou uma dama feérica, epifania da Soberania.

Uma das deusas que confere dádiva semelhante é Brigid, entre outras coisas, a deusa do fogo e da inspiração bárdica, que concede o dom da poesia aos Fíli, sacerdotes responsáveis pela poesia, música e profecia. Cognata de Brigid, a deusa gaulesa Brigindu foi associada a Minerva pela Interpretatio Romana.  Minerva era para romanos a deusa da sabedoria, da diplomacia, da estratégia militar, uma deusa essencialmente inteligente, nascida da cabeça do pai, Júpiter.  Buscando entender as religiões dos povos bárbaros à luz da sua própria e notando em Brigindu aspectos semelhantes a Minerva, os romanos tornaram-nas uma só na cultura gallo-romana que então se formava.

Igualmente sábias são as deusas já tão citadas em meus textos anteriores, Boann e Sinand. Ambas associadas à Fonte da Sabedoria, Boann carrega o nome de Segais, ‘Sábia’, e Sinand é a deusa da Sabedoria propriamente dita – entenda-se desde já que sabedoria, no contexto dos Celtas gaélicos, é a união entre conhecimento, prática espiritual e inspiração. É a aspiração sacerdotal, o meio de ascese dos sacerdotes. Sinand concede ainda auxílio a Fíonn MacCumhail, líder da confraria guerreira dos Fianna e tido por todos como homem bravo e sábio, capaz de descobrir informações ocultas ao levar à boca o dedão que queimara cozinhando o Salmão de Fée, aquele mesmo que se alimentava das avelãs que caiam na Fonte da Sabedoria.

No contexto Iberocelta, a deusa Navia concentra em si os aspectos típicos das deusas sábias e doadoras de inspiração. Ela é uma deusa fluvial da Soberania, está ligada à guerra, ao conhecimento, às fontes de água e aos meios que conduzem ao Outro Mundo: rios, barcos e aves. Semelhante ao papel de Brigid na Irlanda, está Trebaruna, deusa a quem se atribuem o fogo do lar, as fontes de água das habitações castrexas, e cujo nome pode significar Segredo do Lar, ou ainda, Segredo da Tribo. Uma deusa da Soberania nos domínios do lar e das fortificações, ligada às mulheres e o conjunto de saberes destas. Também as deusas Matres têm seu quinhão de conhecimento, mostrando que a maternidade não é empecilho para o cultivo da sabedoria. As Matres também estão ligadas a rios, como o Marne na França, e costumam ser representadas em trio; uma deusa tríplice que leva nos braços bebês, gêneros alimentícios e pergaminhos, em geral interpretados como contendo inscritas as linhagens familiares ou o destino dos mortais, que traçam quando do nascimento destes.

Os guerreiros galaicos que lutaram na guerra púnica, nos diz Sílio Itálico, tinham também  o dom da clarividência, e, é de se notar, um de seus métodos era pela observação das penas das aves: “sábios na adivinhação pelas entranhas, penas e chamas, mandou a rica Gallaecia seus jovens, que agora alulam as canções bárbaras da sua língua pisando a terra batida a pés alternados, e acompanhando o feliz número com seus escudos ressoantes”. Apiano tece elogios aos lusitanos durante as guerras contra Roma, sem esquecer de mencionar a bravura das mulheres lusitanas, a quem parece ter sido dada alguma instrução marcial, já que também pegavam em armas para defender os Castros quando estes eram invadidos. E Plutarco faz referência a mulheres que tinham a função de diplomatas entre os Celtíberos, dedicindo pela guerra ou a paz.

O sacerdócio parece ter sido praticado por mulheres, ainda que fora da mitologia gaélica a nenhuma seja atribuído o título de druida. Contudo as Bandruí da Mitologia Gaélica podem não ter sido identificadas por comentaristas clássicos no continente por desconhecimento efetivo das culturas locais ou simplesmente por que as sacersotisas continentais portavam outras nomenclaturas. O fato é que há relatos em abundância de mulheres  engajadas em funções sacerdotais, como o sacrifício de prisioneiros após a batalha, ou a profecia. As Gallizenae foram descritas como 9 virgens que dedicaram suas vidas à profecia e culto a um deus de nome desconhecido em uma ilha do Rio Sena. No conto galês Os Espólios de Annwn, o rei Arthur ruma em busca do Caldeirão de Annwn, um objeto mágico guardado igualmente por 9 virgens que eram as únicas capazes de aquecê-lo.   E é também amplamente conhecido o túmulo da Sacerdotisa (ou rainha) de Vichy, junto a quem foram encontrados um torc de ouro maciço, outros artefatos de elevado status, e um caldeirão que era possivelmente utilizado em imersões ritualísticas, segundo comparações com a imagem do Caldeirão de Gundestrup.

Mais uma vez de volta à Irlanda, há relatos de métodos divinatórios de clarividência e profecia como o Imbas Forosnai, “inspiração dos ossos”, executado por Ollams, os mais ilustres entre os Fíli. Estes sacerdotes mastigariam a carne crua de um sacrifício de porco, cachorro ou gato e a cuspiria sobre uma pedra junto à porta, cantaria então para os deuses da inspiração e em seguida ficaria recluso por 3 dias e 3 noites enquanto dormia e buscava por sonhos divinatórios.

No Táin Bó Cualgne encontram-se duas personagens femininas capazes de executar o Imbas Forosnai, Scátchach a mestra guerreira de Cúchullain e outros heróis, e Fedelm, cuja função como Fíli ou guerreira é difícil de precisar, e existe ainda a possibilidade de ser uma dama do Sîdhe. Fedelm é descrita como uma mulher armada e sobre um carro de guerra, diante da Rainha Mebd quando esta e o rei Aillil reuniam o exército de Connacht para invadir o Ulster. Mebd pergunta a Fedelm se ela adquiriu Imbas Forosnai, ao que Fedelm responde que a adquiriu estudando em Alba (termo que se refere à ilha britânica, mas que alguns supõe que neste caso possa ser a Ilha de Mona, reservada a sacerdotes). Mebd demanda uma profecia e, na forma de um poema, Fedelm prediz a derrota do exército de Connacht.

Há uma relação intrínseca entre o universo femino, a sabedoria sagrada, e a influência na guerra. Vale ressaltar que a deusa gaélica Morrigan nunca é vista lutando em batalha, mas sempre usando de magia e profecias para auxiliar e encorajar a sua tribo. Seja como profetiza, seja presenteando com uma espada mítica, liderando ou abençoando, há sempre uma figura feminina sábia inspirando os guerreiros na mentalidade dos povos Celtas. Além das funções típicas e organicamente femininas, como a maternidade e o cuidado com a família, o imaginário e a sociedade Celtas construíram um papel de prestígio para as mulheres de conhecimento e de espirituailidade elevadas. Elas aconselhavam e conduziam os homens na guerra, e, no âmbito mágico, também concediam a vitória.

Tanto assim foi que algumas mulheres vieram mesmo a guerrear e ocupar o cargo máximo de líder em suas tribos. Ao tempo da invasão da Britannia houve pelo menos duas rainhas, Boudicca e Cartimandua, e como Tácito escreveu: “nós os britônicos estamos acostumados a mulheres comandando na guerra”, e “pois os britônicos não fazem distinção de sexo entre seus líderes”.

Portanto, entre todos os aspectos da cultura ancestral que buscamos recuperar, há que se dar importância ao papel da mulher de inspiradora de sua tribo, ensinando a importância da espiritualidade, do conhecimento, e da bravura. É notável que um dos caminhos de ascese das mulheres em sociedades celtas foi o de estudiosas e profetisas. A erudicão e o sacerdócio são, por isso, um caminho não somente digno e certeiro para a elevação espiritual e social da mulher, mas também uma forma de colaboração para com a sua comunidade.

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