Deusas Fluviais – Navia

[Atenção, leitor, antes de ler esta publicação é necessário ler as anteriores sobre Boann, Sinand, e, Sirona e Sequana, se ainda não as leu.]

Navia/Nabia é uma das divindades nativas de culto mais presente no período da romanização. Seu nome está presente não só em aras votivas, mas também na toponímia das regiões galaica e lusitanas. Com frequência a deusa dá nome a rios tais como Neiva, Navia, Nabão e Navea, o que denota a correlação entre esta deusa e as águas, em especial a dos rios. Também derivam de seu nome as palavras ‘nau’, ‘náutico’, ‘nave’, demonstrando por sua vez a ligação entre a deusa e a navegação.

Dentre os epítetos de Navia destacam-se Abione: água ou corrente. Sesmaca, derivado de Segimasa: muito vitoriosa. Arconunieca, semelhante ao nome da deusa celtíbera Arconi, e levantando a possibilidade de que fossem a mesma ou, de alguma forma, parecidas. E o teônimo Tongoe: juramento. A Ara de Marecos relata um sacrifício em louvor a Navia e outras divindades, e contém tantas informações que merece um olhar mais calmo. Nela lê-se:

“À ótima virgem (protetora ou conífera), Ninfa dos Danigos, Navia Corona, uma vaca e um boi, a Navia um cordeiro, a Júpiter um cordeiro e um terneiro, a […]urgus um cordeiro, a Lida uma (gazela ou cabra); levaram-se a cabo os sacrifícios anuais e no santuário no quinto dia dos idos de abril do consulado de Largo e Mesalino [9 de abril de 147 d.C.]”

A primeira informação que a ara fornece é a de que Navia é uma deusa virgem, algo comum em povos indo-europeus, embora não tanto entre Celtas. Uma vez que a ara foi produzida em um culto sincrético celta e latino, pode ter parecido importante a romanos assinalar esta característica, que por sua vez nos leva à interpretatio ‘ninfa’, referindo-se a uma imanência e tutela sobre um território, o dos Danigos. Esta informação vinculada ao epíteto ‘protetora’ demonstra que Navia é também uma deusa da Soberania, algo comum entre deusas Celtas vinculadas a rios. Vale aqui lembrar o epíteto Sesmaca, muito vitoriosa, e Corona, marcial ou guerreira, outra característica comum a deusas Celtas, a de condutora na guerra e fornecedora da vitória. Se tomarmos por possível o epíteto cornífera, ao invés de protetora, e que os sacrifícios a ela são bovinos, lembraremos da deusa romana Diana, dita A Cornífera, e também à deusa fluvial gaélica, Boann, dita a que possui muitas vacas, e também uma deusa fluvial da soberania.

Por falar em outras deusas semelhantes, lembremos as gaulesas Sequana e Sirona. Como já vimos em outra publicação, essas deusas estão vinculadas a rios, fertilidade, e a cura. Sequana, tutelar do Rio Sena, assim como Navia tem sua imagética vinculada a barcos e pássaros. Sirona a sonhos de inspiração, proteção a grávidas e lactantes e à primavera. A informação final que nos fornece a Ara de Marecos é a de que o sacrifício ali feito era anual e ocorria em 9 de abril, a pouco mais de 10 dias do Equinócio de Primavera. O sacrifício de uma vaca e um boi, um casal bovino em todo o mundo i.e. relacionado à fertilidafe, pode então ser visto como uma forma de agradar à deusa e obter seu favorecimento na fertilização do território, típico das celebrações do início da primavera.

Sabemos portanto que Navia é uma deusa da fertilidade, da soberania, da vitória em batalha, das águas e fronteiras fluviais. Falemos agora da possível assimilação da deusa pelo Cristianismo na figura de Santa Íria de Tomar:

De acordo com a lenda, Íria (ou Irene) teria nascido no século VII em Nabão, Portugal, nas proximidades de Tomar. De família ilustre, Íria teria recebido instrução desde cedo em um convento, aonde ficou conhecida pela inteligência, sabedoria e fé, escolhendo permanecer virgem e dedicar-se a seu deus. Certo dia, ía em procissão pelas ruas de Tomar quando foi vista por Britaldo, príncipe e filho do governante da região. O rapaz foi tomado de tão profundo amor por Íria, que adoeceu e nada podia curá-lo, ou devolver-lhe o apetite e a vontade de viver. Deus informou a Íria da razão da convalescença de Britaldo, e por compaixão ela foi tentar demovê-lo de sua paixão. Disse-lhe em seu leito que desistisse dela pois desejava uma vida casta e religiosa. Ele a fez prometer que, uma vez que não seria dele, não seria de nenhum outro homem, e assim, Britaldo conformou-se. Tempos depois, o abade Remígio também se apaixonou por Íria e ela rejeitou suas investidas, a princípio com gentileza, mas uma vez que o abade não cessasse de importunar, ela o repeliu com rispidez. Rancoroso, o abade Remígio, que era douto nas artes químicas, preparou e colocou na sopa de Íria uma beberagem que provocou nela os sintomas de uma gravidez. Quando a fofoca se espalhou, Britaldo ficou enfurecido e ordenou a um soldado que matasse Íria. Quando ela foi fazer suas orações rotineiras ao amanhecer na margem do rio Nabão, foi degolada e teve seu corpo atirado ao rio. O corpo de Íria desceu pela corretenza até o Rio Tejo, onde foi encontrado após Remígio revelar o seu ardil. A lenda diz ainda que misteriosamente um sepulcro emergiu das águas com o corpo de Íria e tornou a submergir quando tentaram alcancá-lo.

Além de se passar em território dedicado à deusa Navia, a lenda de Santa Íria de Tomar é excessivamente Celta para crermos que possa ser um fato ou criação do período medieval. Vemos aqui o mesmo padrão da mitologia gaélica no que tange a Deusas da Soberania: como Boann e Etain, Íria se vê em meio a um triângulo amoroso e disputada por dois homens. Como em Tochmarc Etain, um homem adoece e nada pode beber, nem comer, nem dormir, em decorrência de sua paixão. O mesmo ocorre no conto de Conla filho de Conn, ao ser arrebatado pela beleza de uma dama do outro mundo que aparece em uma barca no mar e após a convalescença, é levado por ela para viver eternamente junto à Fonte da Sabedoria, também chamada Fonte de Conla, na mitologia gaélica.

Como no mito de Boann e de Sinand, uma deusa morre junto à água, dando origem a um rio sagrado que carrega o seu mesmo nome. Mais uma vez como Sinand e Boann, Íria é dita como uma mulher de inteligência e sabedoria renomada. São muitas as coincidências para não supeitarmos de que Santa Íria de Tomar seja, na verdade, uma evemeridade da deusa Navia, e que sua lenda seja oriunda do mito nativo desta deusa.

Se assim for, podemos nos aprofundar nas semelhanças entre as deusas fluviais Boann, Sinand e Navia:

Um dos nomes de Boann é Sábia, ela é morta por não acatar o aviso dos subordinados de seu esposo, os portadores do cálice, diante da Fonte da Sabedoria e seu corpo é levado numa enxurrada que o transforma no rio Boyne, logo após ter dado a luz ao bebê de um dos deuses que disputavam seu amor, traindo a palavra que dera ao primeiro. Os temas comuns a Santa Íria são o triângulo amoroso, a gravidez sobrenatural, a sabedoria como atributo e o sacrifício em meio à água que leva o corpo na forma de rio.

Sinand é uma deusa que não engravidou nem mesmo amou a deus algum. Ela não tinha esse desejo, Sinand buscava apenas a Sabedoria e Inspiração como meio de ascese. Ela morreu após ingerir a água da Fonte da Sabedoria e seu corpo foi levado pela água tornando-se o rio Sinand (Shannon). Ela se torna uma deusa da sabedoria e também auxilia guerreiros e heróis, por vezes até em vinganças. Semelhanças com Santa Íria de Tomar são a preferência pela sabedoria e dedicar a vida ao sagrado e a fé, ser morta junto a um meio aquático e se transformar em rio, alcançando assim a elevação espiritual, bem como o auxílio aos guerreiros.

Navia parece assim, uma confluência de deusas célticas fluviais: a simbologia da barca e das aves de Sequana, a primavera e inspiração de Sirona, a fertilidade e sacrifício de sua forma humana para tornar-se um rio de Boann e, mais uma vez o sacrifício para tornar-se um rio e adquirir a ascese e elevação espiritual de Sinand, conduzindo os guerreiros em suas contendas.

Assinala-se assim algo como um mitema de Navia, que seria o de uma deusa jovem e virgem que deseja apenas à sabedoria e divina inspiração. Ela se vê alvo dos amores de um deus soberano e marcial, a quem jura fidelidade ainda que conserve sua virgindade, e, um deus vinculado a magia, sabedoria e fertilização da terra (possivelmente um deus ctônico). Este último a engravida por meio de magia, a deusa mantém-se firme em alegar sua inocência e propósito de elevação pela erudição. O deus que se sente traído a mata e, de seu sacrifício tem origem o rio que carrega seu nome e sua existência e fornece fertilidade a todo o território. A deusa injustiçada encontra a ascese e a sabedoria que desejava, mas também adota um caráter por vezes agressivo, pois passa a defender o território dando apoio bélico.

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