Antes de mais nada, não é algo sobre Iberoceltismo estritamente, mas é algo que, pela dimensão filosófica mais ampla, pode ecoar em nós. Especialmente se olharmos a partir da Romanidade.
Faz um tempo que um ótimo portal sobre Hellenismos publicou um texto advogando a incompatibilidade do Hellenismos com uma abordagem “Völkisch”. Antes de prosseguir cá, peço ao leitor que leia. Se entendi bem, o autor advoga que uma abordagem do tipo “völkisch” não é compatível com o Hellenismos (bem, se ele clamou algo mais amplo como “não é compatível com o ‘Paganismo'”, deixo para o leitor – de minha parte, por generosidade, não creio que tenham focado nesta asserção mais ampla e muito mais questionável). E como tal abordagem é a preferida para justificar certas adesões por parte dos tipos “faxos/nazis”, não haveria compatibilidade destes para com o Hellenismos, e os que o fazem, portanto, algo como charlatães ou falsários.
Antes de adentrarmos nas considerações sobre o grosso deste argumento, é importante frisar que utilizarei os termos nos sentidos mais ou menos comuns aos utilizados no texto e não estou lendo Völkish como estritamente nazi, mas sim como uma ênfase em pequenas comunidades étnicas orgânicas. Bem, iniciemos pelo que considero ser o cerne oculto da questão: a dissociação com tipos “nazis”. Se trata de uma espécie de higienização, uma vez que ninguém, compreensivelmente, quer estar associado com gente que defenda nazismo e coisas do tipo. Neste sentido, o Nazismo adquiriu, numa sociedade como a nossa, uma função talvez similar a do “Diabo”, e aí, óbvio, ninguém quer ter associação alguma com isto, pois há toda uma “Inquisição” a policiar e punir, se podemos dizer assim.
Eu mesmo já combati besteirol nazi e mesmo escrevi contra certas interpretações que julguei quase exclusivistas, como num comentário contra um texto do Varg Vikernes que dizia, grosso modo, que quem fosse pró-gay não era um pagão true (leitores do finado Parahyba Pagã se recordarão). Até admiti que uma postura “pró-gay” por parte de asatruares conservadores seria de espantar (nisto dando razão ao Varg), mas generalizar para todos os “pagãos” seria forçado e exclusivismo (aí residindo o erro do Varg: ao generalizar uma visão “parcial” que pode até ser justificada, como sendo “total”, válida para todos, inclusive para aquelas famosas figuras de uma certa elite romana da época imperial). O ar na época, ainda existente em certos círculos, era do tipo “quem é pagão true, é nazi”. Felizmente as coisas ficaram mais claras, ou pelo menos pareciam ter ficado. Mas, parece que desde a situação das eleições de 2016 nos EUA, de lá, começou a se irradiar algo parecido, mas noutra tônica e agora vinda do lado “colorido”: “quem é pagão true, é esquerdista”. Suspeito que este tipo de posição seja o cerne oculto acima referido. E sabe como é… se o sujeito não é esquerdista, não é pagão true e só pode ser nazi, só pode…
Antes de mais nada, é importante romper com a dicotomia persecutória de reduzir todos que não são “esquerdistas” a “nazis”. Este tipo de coisa termina levando água para o moinho dos nazis de facto, por fazer os desajustados à narrativa se sentirem “traídos” ou injustiçados, afinal, estão sendo mesmo. Além de que, operando numa lógica mais orientada pela disjunção simples ou conjunção ao invés da disjunção exclusiva (a “lógica maniquéia”), somos levados a pensar mais em possibilidades diferentes do que na sua redução monopolista. Então, como resolvemos isto sem que, sejamos levados a admitir como “certa” uma interpretação discordante e “concorrente” da nossa?
De minha parte, continuo acreditando que há incompatibilidade entre o Nazismo de verdade e as fés Indo-Européias em geral, pelo primeiro prescrever uma noção de raça biologicista (reducionista), uma estatolatria exagerada de viés materialista, uma romantização do “Povo” de inspiração rousseauniana, etc. Claro, podemos também elencar incompatibilidades com o Comunismo, o Liberalismo, etc. E mesmo podemos também, nos esforçarmos para pinçar compatibilidades. Daí que quando surge gente reivindicando tais ideologias de bloco, tendo a denunciar as incompatibilidades, especialmente quando os que fazem tais reivindicações passam por falar por “todos” ou em nome de um outro bloco monolítico fechado. Tenho defendido, justamente, que abandonemos tais “blocos” políticos ideológicos e nos voltemos para nossas religiões somente, trabalhando nelas e a partir delas, tanto por julgar mais coerente quanto por julgar mais eficaz como defesa contra o instrumentalismo político modernista. Na prática, creio que, uma vez que este trabalho estiver feito (e demanda tempo e esforço), gerará possíveis aproximações pontuais com certas causas políticas e não de “bloco”, além de que, se feito direito (ou seja, se “parirmos” de fato, ao invés de “traduzirmos” somente), estas possíveis aproximações se darão a partir de nossa própria lógica, metafísica e linguajar evitando o ferramental teórico tóxico destas ideologias.
Sei que isto dá trabalho e o mundo real exige posições pra ontem, o que levará muita gente a deixar isto de lado. Além de que, é preciso reconhecer que há certas particularidades nas religiões Indo-Europeias que tornam umas mais ou menos diferentes entre si em certos temas, o que é natural e esperado, diga-se de passagem; ou que mesmo numa dada religião, tenha gerado em si “escolas” de interpretação e ritual diferenciadas ou mesmo grandes mudanças ou alternâncias doutrinárias endógenas. Só por isto fica claro que, por exemplo, se não há lá muito espaço numa abordagem do tipo völkisch numa totalidade religiosa específica, isto não significa que o mesmo seja válido, no mesmo grau, para outras totalidades religiosas diferentes. Feliz ou infelizmente, a depender do quanto se moralize tal coisa.
Buscando ser bem direto, no caso específico do Hellenismos, este engloba um arcabouço espetacular de variantes e fenômenos dentro de si ao longo de sua história. Uma abordagem Neoplatônica, claramente favorecida pelo site do autor do texto em questão, historicamente tem ares pós-alexandrinos. E isto é algo a ser compreendido antes que prossigamos. Ou seja, por “pós-alexandrino”, me refiro a uma certa de tendência mais “cosmopolita”, “culturalista”, menos centrada simbioticamente no patriotismo da polis. Neste contexto mais geral, tal abordagem tem toda razão em se dizer “katholika” (“universal” em grego), pois ganhara ares “imperiais”, uma certa “padronização” cultural que onde chegara se sincretizara com tradições locais. Filosoficamente, uma das vantagens da teologia neoplatônica, como parte inerente de sua “universalidade” (lembrando aos leitores que a considero o Neoplatonismo como o “Perenialismo Original”) é a reversibilidade temporal que garante ferramental teórico para explicar até o passado litúrgico pré-(neo)platônico. Daí que, uma ênfase no culto familiar, nos ancestrais étnicos/pátrios (na língua grega “patrios” significa, justamente, “ancestral”) tende a não ser visto como centro vital do culto.
No entanto, tomar tal abordagem “pós-alexandrina” como a única possível, e reconheço que de longe é a filosoficamente mais elaborada e defensável, e a partir daí traçar a linha dos trues contra os posers não me parece tão claro assim. Além de que, se corre o risco de incorrer no exclusivismo e reducionismo contrário ao que certos nazis incorrem. Um grupo que decida e se identifique com uma abordagem “patriótica”, centrada no culto aos heróis locais e tradições “cívicas” tópicas, além de um forte componente de culto doméstico e coletivo aos antepassados daquela comunidade, não parece ser algo impossível ou mesmo plenamente incompatível com manifestações do Hellenismos nos tempos arcaicos e mesmo clássicos de certas poleis e vilarejos menos centrais (uma vez que todo mundo pensa logo nas grandes cidades como Atenas, Tebas e Esparta). Claro, talvez, alguém diga, seria uma abordagem mais esperada em comunidades na própria Grécia.
Daí que o mais próximo que teríamos de uma tendência völkisch, arrisco dizer, se deu nestes contextos mais arcaizantes, onde as festividades públicas do culto dos heróis locais, linhagens e epítetos “tópicos” dos Deuses nas poleis eram relevantes, inclusive, como elementos identitários. Neste sentido, talvez, não era exatamente uma abordagem religiosa de filósofos neoplatônicos, é verdade, como o é que a totalidade da religião helênica não se resume à teologia neoplatônica. Em termos de transformações mais gerais, também arrisco dizer, a Guerra contra os Persas ajudou a cementar um certo senso de identidade cultural mais ampla (“nacional”, digamos) entre os helenos sob a direção espiritual manifesta em Delfos. O centro espiritual local, tópico é ajuntado ao centro “nacional”. E a expansão alexandrina, a “catolicidade” transforma o “nacional” em “imperial”, num certo sentido culturalista.
Agora, se admitirmos certa possibilidade de uma abordagem parecida com algo “völkisch”, isto significa que tais aderentes devam ser, necessariamente, nazis, e mais ainda, vistos como completos alógenos pelos demais hellenistas? Não sei. Mas enfatizo que não estou dizendo para os hellenistas neoplatônicos de hoje que devam dar as mãos e abraçarem os “nazis” como seus irmãos amados. Digo que o Hellenismos enquanto Neoplatonismo, advogar certo viés “katholikon” ressurgente é justo, coerente e para pessoas como eu que estudam filosofia, pode até ser intelectualmente instigante e mais chamativo. No entanto, reivindicar para si exclusividade de vivência ou única interpretação válida, me parece ser um passo complicado tomado muito mais pelo desejo de demonstrar sua inofensividade política (“virtue signaling” ou como diz Faye “pseudo-angelicalismo”) ou “correção” moral.
Se é verdade que não temos como controlar ou evitar de uma vez por todas que gente doida nazi, comuna ou infectada/enfeitiçada por outras perigosas superstições modernas, adentre em nossas fileiras em termos mais gerais (“Paganismo”), podemos claramente controlar em nossos grupos fechados, demarcando fronteiras, por meio de alianças de grupos que favorecem uma mesma abordagem/interpretação. Inclusive, deixando claro publicamente que não concordamos com uma abordagem X ou Y, dizendo-lhes que não os reconhecemos como representantes dignos. Creio que os grupos têm liberdade para isso e muitos já fazem. Mas quando passamos a reivindicar uma espécie de exclusivismo puritano contra “heréticos desviantes da ortodoxia” a coisa começa a ficar estranha. Daí que é bom ter calma para não chegarmos neste ponto.
Nós cá mesmo, de um lado, nos demarcamos claramente da ala “Neo”, infestada, sob nosso olhar, de instrumentalismo político progressista ultramoderno e de outro, lutamos para que o besteirol nazi-biologicista fique fora. Não nos vemos no mesmo time nem de um, nem do outro. Mas não reivindicamos nossa abordagem ao Iberoceltismo como a única e que por isso, se fosse possível, devêssemos proibir qualquer um que não concorda conosco de estudar e cultuar os mesmos Deuses que nós. Podemos até estar convictos, por motivos místicos ou filosóficos, que nosso culto é melhor, mais bem fundamentado e/ou que talvez, agrade mais aos Deuses ou proporcione experiências mais edificantes. Mas daí para agirmos de modo “supremacista”, policiando numa sanha persecutória para destruir (fisicamente ou moralmente) ou converter os que consideramos “inferiores” e “hereges”, mesmo com a melhor das intenções, me parece algo forçado quando não totalitário. Que os Hellenistas Neoplatônicos do dito site, coerentemente, se demarquem de abordagens völkisch, estão no seu direito; agora, que isto não se transforme numa tentativa de monopolizar o discurso nem reduzir a herança rica e multifacetada do Hellenismos. O mesmo podemos dizer sobre a fé Celta, Romana, Nórdica, etc.