“(…)
Ao erguermos pedras
Erguemos a nossa pátria”
“Pedra-Pátria” por Sangre Cavallum
A necessidade de gravar uma inscrição numa pedra erguida por nós cá me fez mergulhar numa pesquisa relativa aos verbos atestados nas línguas célticas antigas continentais e me lançar numa certa confusão entre os modelos verbais propostos em Proto-Céltico (doravante ‘PrC’) e as evidências. Me refiro aos termos relativos ao registro de dedicação, oferta e correlatos presentes tanto em edifícios, aras, altares rupestres e ou objetos diversos. Neste breve texto pretendo apresentar algo buscando compartilhar impressões sobre tal processo de identificação dos termos e no caminho, claro, buscar esclarecer algo, ao menos para mim mesmo.
É de se esperar que, à semelhança das línguas latinas (como o português), utilizemos a terceira pessoa do singular do perfeito no registro de tais coisas, por exemplo, “x dedicou y” (SVO) ou “y, x deu/ofertou” (OSV). Há um debate técnico se há no PrC uma forma de Aoristo separada do Perfeito em si, ou se só há o Perfeito, cujas desinências provém do Aoristo Proto-Indo-Europeu (doravante ‘PIE’). Em grande parte, ao que parece, isto provém do que se pode reconstruir de tal tempo verbal a partir, principalmente, do gaélico antigo (‘Sengoidelc’ doravante ‘Sgo’, de longe, a língua céltica mais atestada e bem preservada em termos de léxico e sintaxe) e do como isto contrasta com certas expressões gaulesas e celtibéricas preservadas.
Neste sentido, é importante frisar que é difícil não cair num mar de especulação semi-metafísica sem fim de reconstruções e possibilidades linguísticas, dado que a difícil literatura sobre o tema, enredada de altíssimo tecnicismo, por si só já é um grande desafio de compreensão. Sem contar que a própria fragmentariedade dos registros linguísticos dos antigos idiomas célticos continentais já representa uma barreira tremenda para a ambição de reconstruções acadêmicas completas. É importante frisar este ponto e peço que o considerem bem antes de prosseguir.
Daí que vamos simplificar começando a falar algo sobre o pretérito no Sgo, que basicamente se divide em três tipos (sem considerar os temas): (i.) os pretéritos em ‘s’, (ii.) os em ‘t’ e (iii.) os reduplicados e irregulares. O grupo (iii.) se subdivide noutras ramos, assim como, pelo menos os tipos (i.) e (ii.) possuem uma forma depoente e/ou passiva; como no latim, seria de se esperar no PrC, a partir desta simples visão básica do Sgo, que haverão verbos que, apesar de ativos, terão forma depoente no perfeito (no latim, chamados de verbos ‘semidepoentes’) ou algo assim. Para que o leitor se localize, o latim possui 4 grandes conjugações (temas) regulares (o português reuniu tudo em 3), fora os irregulares, o céltico – a julgar pelo Sgo – possui um sistema mais complexo de verbos “fortes” e “fracos” (que basicamente possuem uma vogal ligada à raiz), além dos temas propriamente. Sem contar que há quem defenda que houvesse no PrC algo como o sistema de “absoluto” e “relativo” presente em cada forma verbal no Sgo, tese esta que, por adesão a Navalha de Occam, particularmente não creio que fosse o caso (acredito – é meu chute – se tratar de uma “inovação” posterior do céltico insular). Ou seja, resumindo, creio que podemos dizer com certa segurança que o verbo no céltico continental (e talvez mesmo no PrC) era mais complexo que no latim (e que o verbo no latim, é mais complexo que no português!).
Em termos de tentativas de reconstruções, tarefa louvável por si só, dada a dificuldade e a fragmentariedade geral já exposta, nos referiremos a duas: a de Frederik Kortlandt (“Italo-Celtic Origins and Prehistoric development of the Irish Language” de 2007) e a mais simples de David Stifter (“Sengoidelc: Old Irish for beginners” 2006). Estas duas, apesar de não concordarem entre si, apontam direções para os pretéritos em ‘s’ e em ‘t’ e para as formas reduplicadas, mas nos deixam às cegas no que diz respeito as formas irregulares.
Iniciemos pelo celtibérico
Basicamente temos 4 verbos consensualmente interpretados neste sentido: 1. ambitinkounei, 2. aūz, 3. SISTAT e 4. tegēz. 1. está atestado em e podemos recuar com segurança ao PrC *ambi-ding-o- literalmente “moldar ao redor” ou “moldar, pressionar em torno”, com o sentido de “construir, edificar”. O termo aparece em celtibérico numa construção típica (ainda não atestada noutros idiomas célticos, que eu saiba) numa declinação fossilizada no locativo do particípio ativo, que parecia funcionar como o infinitivo presente ativo do latim, grosso modo, como nosso infinitivo. 2. aūz é atestado em K.0.8 e K.5.1 e partiremos da consideração de que ‘auzu’, ‘auzeti’ e ‘auzanto’ seja outro verbo, no caso, “haurir, tirar água” (seguindo STEMPEL, Patrizia de B. “CIb. auzu ‘haurio’, auzeti ‘haurit’, auzanto ‘hauriant’: water in the Botorrita Bronzes and other inscriptions (K. 0.8, 1.1, 1.3, 2.1, 5.1)”, na Palaeohispanica 7 de 2007; interessante que poderíamos também especular algo a partir de *aw-dā-). Nos interessa, justamente, por ser atestado, ao que parece, no perfeito (há quem diga que seja num aoristo: PRÓSPER, Blanca M. “Un paralelo léxico-sintáctico entre celtibérico y galo”, 2006 na revista Palaeohispanica VI) da terceira pessoa do singular; neste caso teríamos uma declinação regular que bate com as reconstruções acima referidas e podemos recuar o verbo etimologicamente ao PrC *aw-o- “produzir, gerar” e “favorecer” (originalmente, como sugerido por Prósper no artigo referido acima, talvez, com o sentido de “tecer”), talvez o mesmo verbo *aw-yo- traduzido por Matasović (“Etymological Dictionary of Proto-Celtic”, 2009), de maneira não muito segura, como “ajudar, proteger”. As formas celtibéricas, como demonstrou Prósper (no artigo acima referido), podem ser recuadas ao PrC *awōts > celtibérico ‘aūz’.
3. ‘SISTAT’ atestada na famosa e ainda obscura grande inscrição de Peñalba de Villastar (K.3.3) em alfabeto latino possui, basicamente, há três leituras da forma ativa: (i.) seria do verbo no indicativo do presente simples, que é em PrC *sistati, ou seja “põe de pé, levanta, erige, sustenta”, ou (ii.) seria uma forma plural *sistanti (interpretação de PRÓSPER, Blanca M. em “La gran inscripción rupestre celtibérica de Peñalba de Villastar: una nueva interpretación” de 2002) ou (iii.) seria no perfeito, ou seja, PrC *sistāts “pôs de pé, levantou, erigiu” e neste caso, também, ao que parece, com alguns ajustes, bateria com as reconstruções propostas por Kortlandt e Stifter. Interessante notar que as duas leituras não resolveriam muito da controvérsia em torno do objeto do verbo ‘LVGVEI’: SISTAT LVGVEI tanto pode ser “levanta/estabelece o juramento” como “erigiu para Lugus”, ou ainda “erige para Lugus” como “levantou/estabeleceu para o juramento”. Ainda nesta famosa inscrição há a interpretação de LVGVEI como termo declinado para “juramento, voto, consagração” (vd. LLORIS, Francisco B.; CÓLERA, Carlos J.; SIMÓN, Francisco M. “Novedades epigráficas en Peñalba de Villastar (Teruel)” na Palaeohispanica V, 2005), o que transformaria o verbo *lug-o- em “jurar, fazer um voto, consagrar”, ampliando o campo semântico do gaulês ‘luge’ e ‘luxe’ presentes na tabuinha de chumbo de Chamalières.
Por fim, 4. temos tegēz que aparece em K.6.1 (o tratado registrado no Bronze de Luzaga). Aqui temos, novamente, uma forma verbal que após uns ajustes bate com o esperado. No caso, podemos recuar ao PrC *ding-o-, ou seja *de(n)gets “registrou, lavrou, fez” (literalmente “arranhou, riscou”) o que ficaria por explicar o **te inicial ao invés de **de, mas lembramos que na mesma inscrição *deywo- aparece como ‘teiuo-’. Ficamos a especular se a queda do **n fica restrita como parte da tendência geral celtibérica ou se seria algo a se recuar à forma verbal em PrC.
Aproveito para registrar uma observação simples: nesta altura, faz-se necessário um estudo sistemático das formas verbais em celtibérico, pois se avançou consideravelmente desde, por exemplo, a publicação do artigo clássico de Carlos J. Cólera “The Celtiberian” publicado na revista virtual e-keltoi de 2002 (que possuía o mérito de compilar todas as inscrições celtibéricas conhecidas até aquela época); se avançou na identificação do sistema dual de escrita, na identificação de certos traços morfológicos e sintáticos, assim como do próprio léxico, novas inscrições e interpretações mais acuradas. Talvez algum acadêmico espanhol famoso já esteja fazendo isto, não sei, mas aponto que é algo a ser feito.
Passemos ao gaulês
O primeiro verbo que identificamos é o cognato do celtibérico ‘aūz’ que é ‘AVOT’. Se a interpretação já referida (PRÓSPER, 2006) estiver correta, e me parece que está, devemos entendê-lo como PrC *awōts, gaulês ‘au̯ōs’. O principal entrave a esta interpretação é a terminação verbal que fora atestada com vogais (explicadas como adição pronomial) ou sem a africanada (fora registrado como AVVOT, ΑΟΥΩΤ, ΑΟΥΩΥΤ, etc.).
O verbo ‘dedē’ aparece na inscrição do Templo de Diana (Nimes) e na inscrição de Orgon, Bouches-du-Rhône, dedicada a Taranus. No segundo caso, temos ‘dede’, no primeiro ‘dedē’ (ambas escritas no alfabeto grego). Com algum ajuste, os modelos do perfeito reduplicado referenciados antes explicariam: ‘dedē’ seria pois, PrC *dedē (a partir de um **de-d[o]e[s]), literalmente “deu, doou” no sentido de “ofertou, presenteou”. Em lepôntico (e é bom frisar que não sabemos bem as fronteiras entre este idioma e o gaulês mais arcaico), temos a famosa inscrição de Prestino onde aparece a forma verbal TETV, que entendemos como **dedū. Esta terminação no perfeito (ou aoristo) pode ser entendida de formas diferentes, como veremos abaixo e creio que sua leitura acertada dependa das demais, apesar de podermos atribuir segurança a etimologia (PrC *d-ā-), como na inscrição de Vergiate onde lemos TEV
E agora entramos no grande “mistério” em termos de explicação da forma verbal a partir dos modelos de declinação de Stifter e Kortlandt: os verbos IEVRV e karnitu que, mesmo sendo verbos diferentes, tratarei em conjunto por apresentarem, aparentemente uma mesma declinação ou conjugação. Para o primeiro termo, como apontado por Xavier Delamarre (“Dictionnaire de la langue gauloise” de 2003), temos IEVRV, ΕΙΩΡΟΥ, EVRI, IOVRVS, ΕΙΩΡΑΙ além de EVRISES (no Pilar dos Navegantes) que parece dizer “dedicantes”. O primeiro grande desafio é a etimologia. Matasović (2009) vê como forma derivada de *φar-na- “outorgar, conceder” (que suspeito que seja *φeri-na-), que só se explicaria se considerarmos tal verbo como um irregular, pois mesmo em Sgo ‘ernaid’ (PrC *φer[i]nati) “oferta, concede” e ‘ro-ír’ “dedicou, ofertou” aponta para algo disto. No entanto, fica difícil explicar o –V– (*-wo-, *-ū– ou *-w-?) antes do –R-, que parece remontar a raiz mesma dos termos. E as terminações, como as entendemos? Seria uma vogal breve ou longa (muito provavelmente uma longa)?
Não encontro terminação parecida no perfeito simples nas línguas que estudo: no latim, nada, no grego só algo parecido não no perfeito, mas em algumas formas de aoristo (e mais no subjuntivo). Como reconstruiríamos tais formações? **φeri-w-ū(s) → φewr(i)-ū > gálico ‘i̯eurū’ “consagrou, ofertou”? Daí teríamos algo como **φeri-w-ī → φewr(i)-ī → ‘i̯eurī’ (“ofertei, consagrei”, a semelhança da primeira pessoa do singular da terceira declinação do perfeito em latim) mas fica difícil explicar IOVRVS como terceira pessoa do plural do perfeito ou aoristo ativo, até pela leitura do monumento onde aparece a inscrição (Saint-Germain-Source-Seine) pode ser diferente, como Pierre-Yves Lambert (“La langue gauloise” de 2003) demonstrou e que me parece uma leitura melhor. Sem contar que ainda levantaria a possibilidade de considerarmos o –S final como –s, ou seja, como africana –ts, característica da terceira pessoal do singular do perfeito sem reduplicação.
E o mesmo poderíamos dizer de ‘karnitus’ presente na inscrição de Briona (Novare) em relação a ‘karnitu’ presente na inscrição galo-estrusca de Todi (Umbria), uma vez que o termo inicial (‘tanotaliknoi’ ao invés de ser um nominativo plural, poderia ser lido como um dativo singular, ou seja, como ‘tanotaliknōi’, “para o descendente de Danotalos”, sendo o objeto da dedicação). Novamente, fico tentado a considerar a leitura como ‘karnitū’ e supor que estejamos diante de uma forma irregular depoente (pelo –et-) de um hipotético verbo PrC **karn-(y)o- “empilhar, levantar uma pedra, erigir” a partir do PrC *karno- “pilha de pedras, marco pétreo, lápide”. Ou seja, se eu estiver certo, ou estaríamos diante de uma forma irregular de um pretérito depoente (com sentido ativo) ou diante de um pretérito em –t-, e neste caso, não batendo com nenhum modelo, teríamos que explicar o –ū final ou considerar que, ao invés de estarmos diante da terceira pessoa do singular, estejamos diante da primeira pessoa do singular, a semelhança do pretérito em ‘t’ de *ber-o-, que ao menos no céltico insular, daria *birtū (STIFTER, 2008) “portei, carreguei”. Interessante que o mesmo se poderia pensar de IEVRV (o que tornaria os nominativos identificadores, precedidos de um hipotético “eu” oculto, por exemplo, “[eu,] Marcial filho de Dannotalos, dediquei a Ucuetis este monumento” – o que os levaria a consideramos quase como vocativos… mas aí esbarraríamos na falta de declinação do vocativo nas inscrições, além de que transformaria EVRI numa terceira pessoa do singular e nos faria pressupor a falta da grafia de um –S ou –T final, para o *-st).
Ou seja, sobre ‘IEVRV’ e ‘karnitu’, percebam as dificuldades e o “mistério” que representam em termos morfo-sintáticos, pois em termos semânticos, sabemos o que tais verbos designam. O que me parece interessante nisto tudo é a atestação de que os Celtas, ao menos os da Gália Cisalpina, possuíam um verbo específico para designar o levantamento de pedras, monumentos, seja como tumbas ou como marcos espaciais e religiosos. E pensando sobre tal verbo *kar-(y)o- sou levado a pensar se nos pactos de hospitalidade celtibéricos a expressão ‘kar’ não poderia ser também uma abreviação para *karnom “pedra erguida, monumento” e não apenas para *karom ou *karyā “amizade”. Também me vem a mente as aras lusitanas onde se lê CARNEO (Nºs. 21214, 21215, 23737), entendidas como dedicadas a tal divindade (“Carneos”, teônimo etimologicamente ligado a tais pedras erguidas e monumentos, as *anta, se esta interpretação estiver correta).
Voltando a atestação da terceira pessoal do singular do perfeito temos uma interessante atestação gaulesa numa inscrição sobre um pote em Argenton-sur-Creuse, onde se lê VIIRCOBRIITOS RIIADDAS, ou seja ‘u̯ercobretos readdās’. Como bem apontado por Delamarre (2003), podemos compreender o verbo a partir do PrC *φro-ad-dā- “doar, dedicar” ou, na minha opinião mais provavelmente, de *φro-ad-sta- “consagrar, dedicar a,”; no primeiro caso teríamos *φro(e)-ad-dāst (ou se considerarmos a reduplicação do verbo simples, seria de esperar algo como **φro[e]-ad-dē, que daria em gálico ‘readdē’) que em gaulês seria ‘roaddās’. No segundo caso, teríamos *φro(e)-ad-stāst (talvez a semelhança do celtibérico ‘SISTAT’), que daria no gálico ‘reaððās’, “consagrou, dedicou”.
E por fim, temos uma inscrição bilíngue de Verceil com texto em latim e outro no alfabeto galo-etrusco de leitura obscura onde alguns estudiosos creem ser ‘to(s)okot(e)’ o equivalente ao verbo latino DEDIT, mas a fragmentação do texto complica muito estabelecermos a própria segmentação correta do trecho, tornando a leitura comprometida. Apesar disto, esta inscrição é interessante por registrar, ao que parece se considerarmos que verbo esteja em tal parte do texto, um verbo diferente iniciado por *do- ou *to-.
E por fim, arrisquemos algo no lusitânico
A língua lusitana é um enigma em si mesmo, pois muito se debate (sem que tenhamos uma conclusão segura) sobre sua celticidade ou parentesco geral de tal idioma. De minha parte, como estudante amador, digamos, cada vez mais me parece que o lusitano é uma espécie de desdobramento ítalo-céltico que não é nem latim, nem opera dentro do PrC propriamente, estando mais para um ramo irmão do PrC e das línguas latinas, uma espécie de “relíquia” ítalo-céltica. Mas isto se trata mais de uma impressão do que de uma tese bem fundamentada documentalmente, é bom esclarecer.
Haveriam verbos “dedicatórios” nas poucas inscrições lusitanas que temos? Bem, vejamos uns palpites rápidos, pois no lusitano o nível da especulação é ainda mais pesado. Iniciemos por Lamas de Moledo onde lemos o verbo DOENTI, visivelmente uma terceira pessoa do plural. Se este verbo realmente parte da raiz “dar”, aparenta estar no indicativo mesmo soando estranho tal -E- (mais comum no perfeito ou aoristo), pois seria de esperar alguma forma de reduplicação caso estivesse no perfeito, em PrC seria esperado *dedant(oros) (de acordo com Kortlandt) ou *dedar (de acordo com Stifter, que acho uma má reconstrução); a título de comparação, no latim, o perfeito é ‘dedērunt’. Daí que muito provavelmente, na minha opinião, se estamos partido da raiz “dar” (se poderia conceber algo como **do-senti, no sentido do latim ‘adsunt’ ou ainda numa forma subjuntiva: “que os Xs se façam presentes com”), estamos diante de um indicativo presente simples: “dão”.
A inscrições de Arroyo de Luz oferecem possíveis formas verbais: PRAESONDO SINGEIETO e ISAICCID RVETI. Ficamos tentados, ao ler PRAESONDO a compararmos com o latim ‘praesum’ (“estar à frente, comandar”) numa forma de particípio ou gerundivo (aproximando o lusitano do latim), talvez no sentido de “havendo de estar no comando SINGEIETO”. Já este outro termo, aparentemente uma terceira pessoal do singular no imperativo (futuro?) que parece ser seguida uma possível lista de signatários (a tradução hipotética deste trecho seria algo como “o que estiver no comando deverá [verbo = **sing-yo-?]”), talvez pudéssemos entender como relacionada ao termo céltico ‘singi/sengo-’ presente nos termos célticos SINGIDVNVM, SINGIACVS, SINGENIA, etc. Que Dalamarre (2003) tem dificuldades para apontar a tradução, sugerindo de modo muito duvidoso “ave de rapina”. Olhando no dicionário de Matasović (2009), para além dos verbos *sī-ni- “abarcar, estender” (que carece do G radical) e de *seg-(y)o- “semear” (que, por sua vez, carece do N radical) não encontrei mais nada. Em latim também não há nada (ao menos que olhemos para ‘signō’ “designo, marco, defino”). Ou seja, apesar de haver um possível raiz céltica que clarearia a semântica do verbo, não conseguimos identificá-la.
ISAICCID, tanto poderia ser uma forma de perfeito na terceira pessoa do singular quanto um ablativo singular de tema em -i. Se considerarmos ISAICCID um verbo, RVETI passa a ser um objeto (dativo/ablativo/locativo singular de um tema consonatal ou em -i) para que haja alguma lógica na construção da frase. E isto tornaria PVPPID também candidato a verbo (com objeto ‘CARLAE·EN(E)TOM’ que poderia ser dativo singular seguido de um acusativo singular, no caso “PVPPID EN(E)TOM para CARLA” ou um dativo singular seguido de um genitivo plural, que ficaria “PVPPID para CARLA dos ENETOs”). Obviamente que estaríamos em melhor posição para decidir se tivéssemos mais indicações semânticas dos termos. RVETI em céltico talvez remontasse a *rowesyā “campo aberto” termo cognato do latim ‘rūs’ “campo, sítio”, que nos faria esperar o nominativo lusitano **rūets. Para EN(E)TOM há em PrC uma reconstrução hipotética *eni-φedo- “local, posição”, que daria um nominativo lusitano **enedos; mais distante haveria *φetno- “pássaro”, que pressuporia ENTOM (ou EDNOM) ou invés de EN(E)TOM.
E os supostos verbos? Próximo de PVPPID encontramos um termo gaulês ‘pop(p)os/pop(p)ilos’ “cozinheiro, padeiro” que nos remete a um verbo PrC *kʷokʷ-o- “cozinhar, assar”, que nos daria algo como “preparou, cozinhou” (“preparou o pássaro para Carla”?), ou ainda *kʷeφ- “rugir, murmurar” (talvez no sentido de chamar atenção, sinalizar de forma sonora) que nos daria algo como **kʷekʷeφits. Ou seja, decifrar este suposto verbo não é fácil. No entanto o anterior, ISAICCID, não é menos difícil. Considerando que o –CC– presente seja parte do radical de fato, localizamos o nome PrC *īkkā/yekkā “cura, tratamento” que pressupõe um verbo *i-yekk-o- “curar, tratar”, se concebermos a hipótese de uma construção do tipo **eχs-i-yekk-o- “expurgar, trazer a cura”, seria razoável supor algo como um lusitano **īsēkkīts “expurgou” (“X expurgou o campo”, talvez registrando um procedimento ritual de purificação rural). No entanto, como creio que esteja claro, tudo é muito especulativo e dependente de uma interpretação morfo-sintática dos termos, de modo a encontrarmos a melhor solução semântica em termos de significado da frase como um todo e do contexto geral do que está sendo gravado no “monumento”.
Para encerrarmos este “passeio” no lusitânico, nos resta olhar para a inscrição de Arronches onde sabemos o contexto geral mais amplo. Neste caso, como candidato a verbo, temos PANDITI, colocado entre ICCINVI (antes) e ATTEDIA (depois). Considerando que ICCINVI seja um dativo singular (a semelhança dos dativos HARACVI presentes na mesma inscrição) de um nominativo **ICCINOS ou ICCINOM, podemos considerá-lo como um conceito ou como um nome próprio para quem é direcionado o objeto do verbo. Se objeto for ATTEDIA, em si, parece estar no plural neutro ou num ablativo/instrumental singular; por outro lado, se for o sujeito, estará no nominativo singular (sendo um nome próprio ou conceito). Ou seja, temos “Para ICCINOS PANDIT ATTEDIA(sujeito)” ou “Para ICCINOS PANDITI com/por meio de ATTEDIA”. PANDITI lembra muito o latim ‘pandō’ que é “estendo, trago ao sol, mostro, descubro”. É bem possível que seja um indicativo simples na terceira pessoa do singular, de modo igual ao latim ou do modo céltico como verbo fraco. Em céltico não achamos nenhuma raiz clara, com exceção do hipotético *kʷands-ā- “sofrer, ser pressionado” que semanticamente soaria muito estranho na inscrição, de modo que é mais provável que o sentido do verbo esteja próximo ao do cognato latino.
Neste ponto, recordei-me que debatera a interpretação geral desta inscrição num grupo de e-mails de estudiosos anos atrás (2011!) e fora procurar as mensagens. Redescobri que as coisas podem ser ainda mais complexas, uma vez que podemos compreender PANDITI como um dativo também (complementando ICCINVI), deixando de ser um verbo. E isto meio que suspende nosso esforço cá. Pois é, avisei que o Lusitano era outro nível de especulação! A parte boa desta revisitada foi perceber a possível interpretação de ATTEDIA a partir de *ad-teχt-(y)o-, em algo como “obtenção, recebimento” e de AILATIO a partir de *awislo-āti-, que poderia significar algo como “aplacar, satisfazer”, levando a direção geral interpretativa do rito registrado na inscrição como um “hecatombe” para propiciação das plantações, “renovação” da fecundidade ou revitalização dos campos.
Bem, o que posso dizer ao final? Primeiro, que tais discussões técnicas, apesar de massantes, são importantes para quem deseja escrever nas línguas antigas mas, em segundo, mais ainda para que possamos perceber certos nuances implícitos no processo do estabelecimento e registro misterioso em pedra destes eventos. Não posso terminar de outro modo, neste dia de plenilúnio do primeiro mês do ano religioso, senão conclamando um chamado que ecoa pela nossa ancestralidade: ergamos pedras!