Menelau e Helena, bronze etrusco do séc. 4 a.C.
Quando eu tinha 16 anos li a adaptação de Colleen McCullough da Ilíada, intitulada A Canção de Tróia, e na versão desta autora Helena não teria sido raptada, mas ido de livre e espontânea vontade para Tróia, por estar apaixonada por Paris – e, diga-se de passagem, por ser uma dondoca fútil e lasciva. É assim que McCullough retrata Helena, a Dourada, símbolo de toda a Grécia.
Ao ler, eu já sabia que na verdade tratava-se de um rapto, pois alguns anos antes havia lido sobre Mitologia Grega em Junito de Souza Brandão. Isto em nada atrapalhou meu gosto pela obra de McCullough, pelo contrário, entendi como a forma como a autora, uma mulher moderna e produto do seu tempo, pôde compreender e dar coesão ao conjunto de sua narrativa. Inclusive recomendo a leitura, a despeito de um ou outro erro histórico. O romance entre Aquiles e Briseida é interessante, as cenas de batalha são muito boas e lembro de ter chorado lendo o capítulo da morte de Aquiles, de longe o meu personagem favorito da Ilíada.
Alguns meses depois tive a oportunidade de ler a Ilíada e me apaixonei ainda mais pela história, aí então vieram as Olimpíadas de Atenas e Hollywood fez sua versão desta que é considerada a obra mais importante da Literatura Ocidental e da Epopéia Indo-europeia, intitulada, simplesmente, Tróia. O roteiro é tão profundo quanto o título e se alguém ainda não desperdiçou tempo de sua vida assistindo a este filme, recomendo que não o faça. É ruim demais, foi uma peleia para entrar no cinema, e outra para sair, já que naquela época ainda se fazia fila para assistir a grandes produções, e esta dura quase três horas.
Umas das mentiras que o filme conta é que Paris seria o galã que salvou a bela Helena de um casamento infeliz com um troglodita feioso, Menelau. É claro que aqui também temos uma transformação no enredo da história para agradar a audiências modernas, influenciadas por algumas décadas de feminismo, pós divórcio e antipática a sociedades históricas, por serem patriarcais. Mas, chame-me de intransigente ou não, eu me irrito quando alguém altera a história e se apropria da verdade subvertendo-a com a finalidade apenas de lucrar ou fazer propaganda política. E foi quando vi esse filme, e procurando mais livros a respeito, que eu percebi que não eram casos isolados, nossos contemporâneos estão tão alienados dos valores indo-europeus, que já não são capazes de se convencer pela narrativa da Ilíada e estão, aos poucos, a cada nova obra, alterando a história de Helena, Menelau e Paris, assim como as de outros personagens. Alterando para ressignificá-la, por que só assim são capazes de lhe atribuir sentido. Mais um de tantos sintomas da crise identitária pela qual passa a nossa civilização, e pela qual passa qualquer povo que não se identifica com seus ancestrais.
A ida de Helena para Tróia tem algumas versões diferentes, para Cypria, Helena teria sido iludida por Afrodite com presentes e magia, já para Herodoto, ela foi raptada. Esta última versão é mais aceita, pois é corroborada pela Ilíada, Odisséia e mais tarde pela Eneida. Então, Helena não abandonou o lar e a filha, ela foi levada a força por Paris, que também roubou o tesouro que ela havia recebido como dote. E isso tudo na ausência de Menelau, porque Paris é um dos covardes mais notórios da epopéia grega. Aliás, como sequestrador e violador, Paris não é bom moço nenhum, pelo contrário, é o machista estuprador que a modernidade tanto condena. Como foi que os autores norte-americanos, tão progressistas e influenciados pelo feminismo, transformaram um traste destes em galã?
Menelau convidara Paris para seu palácio para fazer um ritual que purificaria o príncipe troiano após este ter cometido um assassinato involuntário. Foi então que Afrodite que protegia Paris, e que havia prometido dar-lhe a mulher mais bela do mundo se ele votasse nela como a deusa mais bela de todas, quando da disputa contra Atena e Hera, ajudou-o a sequestrar Helena. Então Menelau regressou a seu reino e encontrou seu palácio saqueado e a esposa sequestrada pelo hóspede. Ou seja, além de covarde e violador, Paris profanou a sagrada Lei da Hospitalidade. O sujeito era o flagelo da casa real de Príamo! Uma vergonha! Com toda a razão, Menelau conclamou os aqueus para resgatar Helena e seu tesouro, e, oportunamente, destruir Tróia, a rival da Grécia no comércio marítimo. Durante 10 anos ele e os demais gregos perseguiram este objetivo. Durante 10 anos Menelau se ausentou do seu reino, do conforto do palácio e da companhia da família, para resgatar a esposa e a honra. Ele não era um troglodita insensível, era um esposo leal, e um aristos: era um dos melhores entre os heróis aqueus.
É aí então, no décimo ano de guerra, que se inicia a narrativa de Homero. E é nesta que vemos o aspecto trágico do conflito: vemos a Casa Real de Príamo, que foi perder todos os seus filhos mais aristos para as lanças e espadas aquivas, enchendo a sua cidade de viúvas e órfãos para no fim ser incendiada e escravizada. É durante esta narrativa que vemos também a tragédia de Helena, que durante dez anos esteve sob cativeiro numa cidade estrangeira, forçada a um casamento com um sequestrador e violador. Helena perdeu a infância da filha. Ela foi hostilizada pelas mulheres troianas que a culpavam pela guerra. Foram dez anos de tristeza, humilhação e solidão.
Na Ilíada, quando os exércitos estão dispostos no campo de batalha, Menelau vê Paris e o desafia para um duelo. A família real de Tróia observa o combate do alto da muralha, e Helena se aproxima do parapeito “saudosa do primeiro marido”, Menelau, nos diz Homero, e torce para que ele derrote e mate Paris. Mas este último foge do combate e, tornado invisível por Afrodite, vai para seus aposentos na segurança do palácio. É aí então que vemos um diálogo entre Helena e Paris, no qual ela o confronta e ofende de várias maneiras, lamentando que além de tudo o mais, Paris seja um covarde, que se não houvesse fugido do duelo, certamente teria sido morto por Menelau. Fica muito claro na Ilíada que Helena gostaria de estar com Menelau e não com Paris.
Helena, seja uma das vítimas do conflito entre Grécia e Tróia, ou das ilusões de Afrodite, é também símbolo de sua nação violada e aviltada, que busca reparação através da guerra. É certo que para uma audiência moderna ela é uma personagem excessivamente submissa: no fim da briga citada acima, Paris manda Helena calar-se, despir-se e deitar-se, e como a outrora rainha é agora uma cativa, ela obedece. Mas é injusto reabilitar a personagem para os dias atuais transformando-a numa adúltera, fútil e egoísta, que abandona filhos e deveres por luxúria. Isto não é reabilitar, é denegrir.
Se o leitor acha que o caso de Helena é algo difícil de se convencer por ser um enredo de um passado distante, violento e patriarcal, deixe-me tentar colocar em um exemplo contemporâneo: É como se nossa sociedade culpasse as vítimas de estupro e sequestro de terem provocado o crime contra elas perpetrado. Bem se sabe que há ainda hoje casos como estes, chocantes, em que se descobre depois de anos que um psicopata mantinha em cativeiro uma ou várias mulheres dadas como desaparecidas. Todos já vimos histórias assim nos jornais e telejornais.
Imagine se o filme O Quarto de Jack afirmasse que a mãe de Jack foi para o cativeiro por livre e espontânea vontade, e que o seu sequestrador é na verdade um galã que a salvou de uma rotina escolar opressora. Seria absurdo. Um ultraje, não é? Mas é isso que as narrativas modernas fazem com Helena a Dourada, e por consequência ao perfil da mulher grega, e, mais tarde, da mulher ocidental, a quem ela representou por muitos séculos – aparentemente não representa mais.
[Acho que prefiro nem saber a quem foi dado esse privilégio hoje em dia.]
A impressão que fica, é de que estas releituras contemporâneas estão dizendo: Mulher ocidental, você é forte e liberada, doravante não precisa mais se responsabilizar com a família que funda e a palavra dada no momento em que se casa. Mas é uma contradição em termos, já que a constância e a responsabilidade são sinais de força interior. Quero crer que é só impressão minha, mas fato é que hoje em dia tanto homens quanto mulheres rompem relacionamentos e casamentos com excessiva frequência. Talvez ainda não tenhamos nos adaptado à liberdade, estejamos aprendendo a lidar com ela.
Bom. A guerra chega ao fim. Os troianos são vendidos como escravos e a estirpe de Príamo é varrida da face da terra, graças à inconsequência e egocentrismo de Paris. Este sim não respeitava nada que era sagrado, nem matrimônio, nem hospitalidade, nem a vontade de mulheres ou ninfas. Mas por fim ele é morto em combate e Helena regressa a seu país e a sua família. No entanto, antes ela ainda será novamente violada por Deífobo, outro filho de Príamo, e ainda será desprezada por seu próprio povo. Quando os gregos tomam Tróia, eles estão tão amargurados pela guerra que também culpam a Helena e desejam matá-la. Ela é por fim poupada por Menelau que a restitui como rainha de Esparta, e aí sim, ela é reabilitada!
Na Odisséia veremos outros dez anos depois de findada a guerra, Telêmaco, em busca de Odisseu, visitar a côrte de Menelau e encontrar Helena sentada ao trono, adornada de honrarias. Ela lamenta o destino dos que pereceram na guerra e relembra os heróis do passado. Homero nos conta que Helena lamentou a morte de Heitor em Tróia, enlouqueceu durante os dez anos de guerra, atazanou os guerreiros aquivos dentro do cavalo de madeira, imitando as vozes de suas esposas que eles não viam a dez anos. Por toda a sua vida ela ainda viria a se lamentar, mesmo depois de voltar a si e reencontrar o caminho de casa. Ainda que a tragédia da Ilíada seja uma para nunca mais se esquecer, nem mesmo cerca de 3000 anos depois, ela tem um final feliz para Helena.
Ela termina seus dias como rainha, idosa, feliz e respeitada. Restituída a seu lugar de direito e a seu papel social. Nós as mulheres ocidentais, que um dia nos miramos em heroínas como Helena, Penélope ou Pentesiléia, no entanto, estamos hoje desconstruídas. Nossa situação de modo geral melhorou muito na segunda metade do século passado. Do ponto de vista jurídico nos livramos de opressões judaico-cristãs, conquistamos autonomia e estamos resgatando o respeito devido às mulheres indo-europeias, em especial as das regiões mais setentrionais. Mas também perdemos muito neste processo, estamos desorientadas, aculturadas e alienadas pelos ideais do Universalismo.
Mas eu sou uma pessoa otimista e quero crer que uma nova jornada de resgate simbólico da dourada Helena já se iniciou, que ela, em muitas outras mulheres, está regressando e se reabilitando. E no processo de retomada das glórias antigas, que infelizmente será doloroso e provavelmente violento, veremos regressar também muitos aristos.