Um testemunho do *nītu na primeira Grande Guerra

Um termo Proto-Céltico nos lança luz sobre um estado quase extático, de “transe”, místico de fúria: *nītu. O nome ecoa nos teônimos Nētu ou Nētū (lusitano), Neitos (celtibérico) e no gaélico Néit. São famosas e eloquentes as numerosas descrições na literatura gaélica de tal estado mental peculiar que demonstra, se estendermos para os demais celtas que não nos legaram testemunho literário, a meticulosa observação e experiência em tal estado místico de violência. Estudando o Proto-Céltico, nos chama atenção a numerosa quantidade de termos para designar “batalha”, “combate” e coisas do tipo, me levando a especular – se trata de uma impressão somente, não de uma asserção com validade científica – que haja no céltico comum, talvez, mais termos para “guerra” que no latim ou no grego. Aproveitamos para trazer uma descrição que julgamos também adequada, dentro dos limites do que é possível de ser descrito, claro, de tal estado – vindo de uma fonte moderna e de um clássico da moderna literatura de guerra:

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Sentei-me ao lado de meus dois oficiais na escada de uma galeria subterrânea, esperando as 5h05, horário estipulado para o início dos preparativos ao sinal de fogo. O clima estava um pouco mais animado, já que não chovia mais, e a noite clara e estrelada prometia uma manhã seca. Passamos o tempo fumando e conversando. Às três horas da madrugada tomamos café e o cantil fez a volta na roda. De manhãzinha, a artilharia inimiga se mostrou tão vivaz que ficamos com medo de os ingleses terem farejado a caça. Algumas pilhas de munição distribuídas no terreno voaram pelos ares.
Pouco antes do início, foi divulgado o seguinte radiograma: “Sua Majestade, o imperador, e Hindeburg se deslocaram à praça de operações”. O anúncio foi recebido com aplausos.
O ponteiro seguia avançando; contamos junto os últimos minutos. Por fim, ele parou às 5h05. O furacão irrompeu.
Uma cortina de chamas se levantou nos ares, seguida de um berreiro brusco, inaudito. Um trovão alucinado, que engolia até explosões mais pesadas em seu rastro, fez a terra tremer. O urro de aniquilação gigantesco lançado pelos incontáveis canhões atrás de nós era tão terrível que até mesmo as maiores entre as batalhas às quais havíamos sobrevivido pareciam brincadeira de criança perto dele. O que não ousáramos esperar aconteceu: a artilharia inimiga ficou muda; ela havia sido jogada ao chão com um golpe daqueles. Não aguentamos esperar por mais tempo nas galerias subterrâneas. Subindo, contemplamos, admirados, a parede de fogo da altura de uma torre, levantando suas chamas acima das trincheiras inimigas, encobertas por nuvens onduladas, vermelhas de sangue.
O espetáculo foi perturbado por lágrimas nos olhos e uma queimação sensível nas mucosas. Os vapores de nossas granadas de gás, soprados de volta pelo vento contrário, envolveram-nos em um cheiro forte de amêndoas amargas. Percebi, preocupado, que alguns homens começavam a tossir e a sentir ânsias de vômito e acabaram arrancando as máscaras do rosto. Por isso, eu me esforcei em reprimir as primeiras tossidas e respirar apenas o necessário. Aos poucos, a fumaça se dissipou e depois de uma hora pudemos dispensar as máscaras.
O dia havia clareado. Atrás de nós, a zoeira monstruosa crescia cada vez mais, ainda que mal se pudesse imaginá-la aumentando. Diante de nós, havia surgido uma parede de fumaça, poeira e gás, impenetrável aos olhos. Homens que passavam correndo berravam chamados alegres a nossos ouvidos. Soldados da infantaria e da artilharia, sapadores e operadores de telefonia, prussianos e bávaros, oficiais e soldados rasos, todos se mostravam subjugados pela mais pura vontade de atacar, e já não podiam aguardar até as 9h40, horário combinado para a apresentação. Às 8h25, nossas pesadas catapultas de minas atacaram, preparadas em massa atrás das valas frontais. Víamos minas de quase 60 quilos voarem pelos ares em parábolas agudas e caírem do outro lado com explosões verdadeiramente vulcânicas. Elas explodiam uma ao lado da outra, desenhando uma corrente de crateras esguichantes.
Mesmo as leis da natureza pareciam já não ter validade. O ar cintilava como nos dias mais quentes de verão, e sua densidade cambiante fazia objetos fixos dançarem para cá e para lá. Traços de sombras passavam voando em meio às nuvens. A confusão era absoluta, e escutá-la tornara-se impossível. Percebíamos apenas e de modo bem pouco nítido que milhares de metralhadoras da retaguarda varriam o nada azul com seus enxames de chumbo.
A última hora dos preparativos se tornou mais perigosa do que as quatro anteriores, durante as quais nos movimentamos sem grandes preocupações fora das trincheiras. O inimigo conseguiu fazer com que uma bateria pesada abrisse fogo, disparando tiro após tiro em nossa vala superlotada. Para me desviar, eu me desloquei à esquerda, e dei de cara com o ajudante, tenente Heins, que me perguntou pelo tenente von Solemacher: “Ele deve assumir o batalhão imediatamente, o capitão von Brixen acaba de tombar”. Abalado com a notícia terrível, voltei e me sentei em um buraco fundo na terra. No curto caminho, eu já esquecera o fato. Movimentava-me como se estivesse dormindo, como em um sonho profundo, em meio à tempestade.
Em frente ao meu buraco na terra estava o suboficial Dujesiefken, meu acompanhante em Regniéville, que me pediu para ir à vala, prevendo que, mesmo ao menor impacto, as massas de terra sobre mim desmoronariam. Uma explosão lhe arrancou as palavras da boca; com uma perna arrancada, ele caiu ao chão. Qualquer ajuda seria vã. Saltei por cima dele, corri à direita e rastejei para dentro de um buraco de raposa, no qual dois sapadores haviam encontrado abrigo. No círculo estreito, os pesados projéteis prosseguiam em fúria. De repente, viam-se torrões negros de terra sendo projetados para fora do torvelinho de nuvens brancas, e o impacto era engolido pela confusão geral. No trechinho de vala à nossa esquerda, três homens de minha companhia foram dilacerados. Um dos últimos impactos, uma granada que não chegou a explodir, vitimou o pobre Schimidtchen, que ainda estava sentado na escada da galeria.
Eu estava em pé com Sprenger, relógio nas mãos, em frente ao meu buraco de raposa e esperava pelo grande movimento. Os restos da companhia se juntaram à nossa volta. Conseguimos distraí-los e animá-los com brincadeiras e palavras chulas. O tenente Mayer, que espiou por um instante sobre a amurada da vala, contou-me mais tarde que naquele momento pensara que estávamos todos loucos.
Às 9h10, as patrulhas de oficiais, que deveriam assegurar nossa disposição, deixaram a vala. Como as duas posições estavam mais de oitocentos metros distantes uma da outra, deveríamos nos apresentar ainda durante o bombardeio e ficar prontos na terra de ninguém, de modo que às 9:40 pudéssemos saltar à primeira linha inimiga. Sprenger e eu também subimos para as amuradas depois de alguns minutos e fomos seguidos pela companhia.
“Agora vamos mostrar do que a 7ª companhia é capaz!”
“Agora nada mais importa!”
“Vamos vingar a 7ª companhia!”
“Vamos vingar o capitão von Brixen!”
Sacamos as pistolas e passamos por cima do arame, por baixo do qual os primeiros feridos já se arrastavam de volta.
Olhei à direita e à esquerda. A linha divisória diante da vala inimiga, que amiúde era revirada na tempestade de fogo, os batalhões de ataque mantinham-se nitidamente no front, amontoados em companhias. À visão dessas massas empilhadas, o rompimento da linha inimiga me parecia garantido. Mas será que também teríamos forças para estilhaçar as reservas inglesas e aniquilá-las de vez? Eu, com certeza, esperava que assim fosse. Ali, o destino dos povos seria encaminhado; ali, tratávamos do futuro do mundo. Na época, compreendi a importância da hora e acredito que cada um de nós sentiu que o que havia de pessoal naquilo tudo começava a se diluir, e começamos a nos afastar de qualquer temor.

A atmosfera era estranha, superaquecida por uma tensão extrema. Oficiais estavam em pé, eretos, e trocavam nervosas palavras de brincadeira. Vi Solemacher, cercado por seu pequeno estado-maior, de sobretudo, como se fosse um caçador que espera pela caça tangida em um dia frio, com um cachimbo de comprimento mediado e fornilho verde nas mãos. Acenamos fraternalmente um ao outro. Muitas vezes, a trajetória de uma mina era demasiado curta, lançava um esguicho da altura de uma torre e cobria de terra os que esperavam, sem que algum deles nem sequer fizesse menção de baixar a cabeça. O troar da batalha havia se tornado tão terrível que ninguém mais estava em perfeito juízo.
Três minutos antes do ataque, Vinke acenou para mim com um cantil cheio. Eu tomei um grande gole. Era como se estivesse engolindo água. Agora só faltava o charuto da ofensiva. Por três vezes, a pressão do ar apagou o palito de fósforo.

O grande momento havia chegado. O rolo compressor do fogo se adiantou às primeiras valas. Nós avançamos.

A ira se ergueu feito uma tempestade. Milhares já deviam ter tombado. Isso estava no ar; ainda que o fogo continuasse, tudo parecia ficar tranquilo, como se perdesse a força imponente. A terra de ninguém estava lotada de soldados atacando, que caminhavam isolados, em tropas ou agrupados ao léu, todos em direção à cortina de fogo. Eles não corriam e tampouco buscavam proteção quando os mastros altos como torres se lentavam no meio deles. Pesada, mas ininterruptamente, avançavam para a linha inimiga. Parecia que a vulnerabilidade estava suspensa. Ao mesmo tempo, em meio às massas que se levantaram, tudo era solitário; as unidades se misturavam. Eu perdera as minhas de vista; elas se dissolveram como uma onda na rebentação. Apenas Vinke e um soldado que servia havia apenas um ano, chamado Haake, estavam ao meu lado. A mão direita envolvia firmemente o coldre da pistola, a esquerda segurava um cajado de bambu. Eu ainda vestia o longo sobretudo, apesar de sentir que estava quente, e, respeitando o regulamente, as luvas. Ao avançar, uma fúria ancestral tomou conta de nós. Um desejo supremo de matar deu asas a nossos passos. A raiva me arrancou lágrimas amargas.

A vontade monstruosa de aniquilar que pesava sobre o campo de batalha adensava-se nos cérebros e os mergulhava em um neblina vermelha. Nós gritávamos, soluçando e balbuciando, fragmentos de frases uns aos outros, e um espectador desavisado poderia acreditar que estávamos tomados por excesso de ventura. (trecho de “Tempestades de Aço” de Ernst Jünger. Tradução de Marcelo Backers. São Paulo: Cosac Naify, 2013).

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