Tradução: Alain de Benoist – “Monoteísmo e Totalitarismo”

Tradução por Marcílio Diniz da Silva do texto “Monothéisme et totalitarisme” presente no livro “Les idées à l’endroit” de Alain de Benoist, publicado pela Éditions Libres-Hallier, Paris, em 1979. Este texto vem após o clássico e bem mais longo “O Bolchevismo da Antiguidade” cuja tradução pretendo publicar cá também, assim que estiver pronta, e que estabelece de modo robusto as proximidades entre Comunismo e o Cristianismo. Este texto em especial, parte de uma obra publicada por Bernard-Henri Lévy. As palavras em itálico que não estiverem em língua estrangeira seguem os realces feitos pelo próprio autor.

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Em 26 de dezembro de 1977, Le Nouvel Observateur trazia na primeira página: “Abraão, o homem do ano”. Bernard-Henri Lévy pegou o trem em movimento. Seu último livro dá importante papel a Abraão, Moisés, Jacó e outros. Com uma tese de grande simplicidade, construída sobre uma única afirmação: o totalitarismo surge da erosão do monoteísmo. Para lutar contra o totalitarismo, bastaria retornar à Lei. O monoteísmo seria o eterno não, o recurso absoluto, o princípio de toda resistência. Se chama “O Testamento de Deus” (Grasset, 1979). Desculpe o pouco. Lévy, o novo Moisés, levou Javé no taquígrafo.

De lá, é o jogo do massacre. Contra o monoteísmo, existem “ídolos”. E ídolos são todas as coisas que aqui na Europa não cabem ou não se enquadram no judaico-cristianismo. Então aqui está a Europa, novamente, indiciada. Uma parte do livro é intitulada “Atenas ou Jerusalém”. Porque entre os dois, tem que escolher. Somos recuados para quando os sacerdotes monoteístas quebravam colunas de templos, estátuas eram mutiladas, Hipácia fora martirizada, se recusava a servir o imperador e abria-se as portas de Roma para os bárbaros. O “Anti-fascismo” proposto por B.-H. Lévy, pode ser visto como resumido em uma frase: “Esquecer Atenas”.

Esqueçamos pois Atenas. Molduras listradas, o milagre grego por não conformidade com o Decálogo. O teatro de Ésquilo é uma “comédia desumana”. A cidade grega, isto é bem sabido, é um modelo de “totalitarismo”. Vamos esquecer Aristóteles, esquecer os pré-socráticos, esquecer os trágicos. Vamos também esquecer Sêneca e Marco Aurélio, esses “marxistas” avant la lettre! Vamos esquecer a Antiguidade, o espírito antigo, o estoicismo. E depois, esqueçamos tudo o que se seguiu. As canções de gesta e o teatro clássico, que pregam virtudes muito pouco “noéicas”. O Renascimento, que voltou para a escola dos antigos. Os filósofos do século XVIII. Voltaire, este apóstolo da intolerância. E os românticos, esses ancestrais do nazismo. Esqueçamos a política. E o Estado. E a história. E o povo, a quem Lévy chama apenas de “plebe”. E os ideais, os quais nunca sabemos onde vão dar (“meu ideal de Estado é o Estado sem ideal”). E a felicidade, essa “ideia totalitária” (a prova, está em quando Saint-Just fala de felicidade, “é o ideal do cidadão grego que ele tem em mente”!). Suprimamos também como Stendhal, Dostoievski e até mesmo Bertolt Brecht, que pode muito bem ser um antissemita “latente” (bem prático, este “estado latente” para legislar sobre o não-dito). Suprimamos a ciência e a tecnologia. Desfaçamos as nações e as pátrias, para o benefício da Torá como “terra natal”. Decididamente, não paramos o profeta.

Qual é a utilidade de continuar a enumeração? Ele fez decididamente reforçar na nossa cabeça que o passado europeu, o passado especificamente europeu, é monstruoso. Pelo contrário, o retorno a Ur, na Caldeia, é altamente recomendado. Lévy possui a raiz exclusiva. Isto é o que lhe permite passar o passado a limpo. O que permanecerá após a passagem do Vândalo? Nada. O grau zero. Regressão absoluta. O deserto – única paisagem não muito arriscada (Renan já dizia: “O deserto é monoteísta”). E também, sem dúvida, o livro mais sectário do ano. Temperado com recurso constante aos bons e velhos métodos terroristas. Você não quer totalitarismo? Então, seja monoteísta. Troca de boas práticas: você pega meu deus único ou eu te visto como guarda de campo de concentração. Em suma: para não ser “fascista” você deve se juntar ao “Noéquismo”, este monoteísmo de entrada, à base de teologia negativa (“não blasfemar, não adorar os “ídolos”), feito para neutralizar o “pagão”. Impossível, no livro de B.-H. Lévy, sair desse dilema. Se não por um grande riso libertador. Mas Lévy não ri. Seu deus também, de resto.

Tudo isso não é muito novo. Em 1852, o padre Gaume, que havia denunciado “paganismo na educação” com tanta ardor que havia sido chamado à ordem pelo bispo Dupanloup de Orléans, citou o Talmud como justificativa: “Amaldiçoado seja o homem que ensina a seu filho a ciência dos gregos”. Mais recentemente, apareceu entre os filósofos da Escola de Frankfurt o mesmo pânico ante a razão de Estado manifesta antes pelo profetismo bíblico, o mesmo “sonho do incondicionado” (Ernst Bloch), a mesma expectativa messiânica do advento de um “Reino” igualitário, onde “todos os exaltados serão humilhados” (Isaías II, 12), o mesmo desejo de “não pertencer” (nicht mitzumachen, disse Horkheimer), a mesma condenação da “audácia” que os homens manifestam cada vez que exclamam: “Façamos um nome!” (na’assé lanou chëm, Gen. XI, 4). B.-H. Levy provavelmente não negaria essas palavras e termina com o ensaio de Ernst Bloch dedicado a Thomas Münzer (Julliard, 1964): “Vivemos já suficiente a história do mundo, já sabemos o suficiente, temos muito, muitas formas muito conhecidas, cidades, obras, fantasmagorias, obstáculos nascidos da cultura”.

Como Horkheimer, como Ernst Bloch, como Lévinas, como René Girard, assim como é para B.-H. Levy, se trata da menor “audácia” possível, do menor ideal, da menor política, do menor poder, do menor Estado. A menor história possível. O que ele está esperando é o cumprimento da história, o fim de qualquer adversidade (esta “adversidade” à qual corresponde o Gegenständlichkeit hegeliano), a afirmação definitiva da identidade do sujeito e do objeto, uma justiça desencarnada, a paz universal, o desaparecimento das fronteiras. O nascimento de uma sociedade homogênea. onde “o lobo habitará com o cordeiro, e a pantera se deitará com o cabrito” (Isaías, XI, 6).

O inconveniente desta tese é que ela não é somente falsa, mas tão contrária à realidade que é levada aos limites do embuste.

No “paganismo”, os deuses são feitos à imagem dos homens. A diversidade dos deuses é a projeção idealizada e harmoniosa da diversidade dos homens, o reconhecimento e a consagração dessa diversidade. Os povos são diferentes, os deuses são diferentes. Eles não se excluem mutuamente. Houve até mesmo, em Atenas ou Roma, um “altar ao deus desconhecido”. O politeísmo exalta a forma, a beleza. Ele dá à luz a Arte, a reflexão livre, a tolerância. A própria noção de liberdade é uma invenção europeia. Em Roma, a forma legal é a irmã gêmea da liberdade. Os gregos primeiro se definiram como homens livres. E o patriotismo brota dessa nova ideia: na defesa da cidade, defendemos um bem comum, uma liberdade comum. “Livre em nossa vida pública, não examinamos com curiosidade suspeita a conduta privada de nossos concidadãos”, diz Tucídides em seu discurso a Péricles, “não os censuramos por viver como quiserem, mas somos respeitosos da ordem pública: obedecemos aos nossos magistrados e às nossas leis, especialmente aquelas que, por não serem escritas, têm por objeto a proteção dos fracos”. Isso é o que B.-H. Levy chama de “totalitarismo”.

O monoteísmo é bem diferente. Envolve a desvalorização do Outro para o benefício do Completo Outro (o ganz andere do qual Rudolf Otto fala). É por causa de sua “ousadia” que a humanidade caiu, que entrou na história. Na Bíblia, essa “ousadia” é constantemente condenada, por envergonhar Javé. Onde o politeísmo institui uma diversidade funcional de relações, o monoteísmo consagra a caráter único da relação entre o Criador e sua criatura. O Antigo Testamento é inteiramente posto sob o signo do Único, da redução da diversidade. O monoteísmo postula, em princípio, a exclusividade de um deus em relação aos outros, uma verdade que rejeita todas as outras opiniões como erros em absoluto. A negação da “idolatria”, a tradição do deserto, a tradição do templo vazio, não é outra senão essa desvalorização da diversidade.

O monoteísmo, por fim, justifica moralmente a eliminação do Outro. “Destruireis todos os lugares em que as nações que haveis de subjugar serviram aos seus deuses. Quebrareis os seus altares, quebrareis suas colunas, destruireis as estátuas de seus deuses” (Deut. XII, 2-3). É que “Jeová é um Deus ciumento que pune os crimes dos pais nos filhos até a terceira e quarta gerações” (Êxodo XX, 5). Na Bíblia, o adversário é tanto “passado no fio espada” (Josué V, 21), quanto “exterminado” (Isaías XIV, 30). “Quem não quiser obedecer à autoridade do sacerdote que serve a Jeová, morrerá” (Deut XVII, 12). É isso que B.-H. Lévy chama uma boa cura contra o totalitarismo? Certamente, não é só isso que há na Bíblia. Há também páginas admiráveis. Ainda assim, não devemos negar o óbvio. Nenhum texto do “paganismo” contém passagens ou prescrições morais que impliquem que o massacre pode ser moralmente justificado – ao mesmo tempo em que cria as condições para o desenvolvimento dessa boa consciência que, a serviço da repressão, a torna ainda mais implacável.

“A intolerância e o fanatismo característicos dos profetas e missionários das três religiões monoteístas”, escreve Eliade Mireea, “têm o seu modelo e justificação no exemplo de Javé” (História das crenças religiosas, Vol. I, Payot). “A sociedade pagã”, diz Louis Rougier, “ignorou a intolerância religiosa, porque as antigas religiões, excluindo o judaísmo, e depois o cristianismo, eram politeístas. Em princípio, qualquer religião politeísta é tolerante, como postula a existência de muitos deuses, ela admite em si mesmo a legitimidade de vários cultos (…) A intolerância religiosa foi presente sobretudo nas sociedades monoteístas, que não admitem a outros deuses que não o seu, e que tendem a fundir o poder civil e político com o poder religioso nas mãos de uma casta sacerdotal” (Le Genie de l’Occident, Laffont, 1969).

Que os totalitarismos modernos representam tantas transposições políticas seculares do monoteísmo religioso já foi demonstrado, não uma, mas cem vezes. Karl Marx – de quem Lévy, na verdade, toma seus leitores por tolos, denuncia o “paganismo” – escreve a si mesmo que o comunismo é chamado a “realizar de maneira profana o fundo humano do cristianismo”. E é Erich Fromm, descrevendo a sociedade sem classes como um avatar da ideia messiânica, que observa que “o conceito hegeliano-marxista de alienação faz sua primeira aparição no conceito bíblico de idolatria” (Vous serez comme les dieux, Complexe, Bruxelas, 1975).

Muito confuso e bastante ruidoso, fundamentalmente invertebrado, esmaltado de erros históricos em quase todas as páginas, o livro de B.-H. Levy, no entanto, é um sintoma. É, de fato, um dos sinais que nos permite ver uma mudança radical na natureza do debate ideológico contemporâneo. Ontem nos confrontamos com instituições, poder, fascismo, marxismo. E agora vemos que o monoteísmo e o politeísmo são debatidos – enfatizando, de ambos os lados, que essa é uma discussão verdadeiramente essencial, um fato novo que não deve ser subestimado. Lévy escreve, por exemplo: “Atenas ou Jerusalém? O dilema está lá, monumental, inevitável”, ele pelo menos tem o mérito de esclarecer o debate. Também vamos dizer que isso acontece exatamente no terreno onde outras correntes de pensamento – aquelas que ele ataca, precisamente – sustentam elas também que este debate se estabeleça. Esse debate já está estabelecido há algum tempo, o tema estava no ar, e não é coincidência que, à direita e à esquerda, mas transcendendo todas as famílias político-ideológicas tradicionais, de agora em diante, haja um número crescente de posições e esboços de agrupamentos inesperados.

No movimento em direção a Lévy, temos Julia Kristeva, que, na revista Art Press International (março de 1979), questiona seriamente o significado profundo de um certo feminismo. Sua opinião é que a MLF – revelação terrível – seria bastante contra o patriarcado. Mas o patriarcado é a Bíblia. E a Bíblia é monoteísmo. Ruptura? Dificilmente. Nem uma coisa nem outra, a Kristeva escolhe as Escrituras contra uma reivindicação feminina às sugestões do naturalismo “fascista”. De volta à tenda. Vamos pensar em comprar-lhe um xador.

O oposto é David L. Miller, professor de história das religiões na Universidade Americana de Siracusa. Ele também fez sua escolha – mas uma escolha oposta. Denunciando no fascismo “a pior forma de monoteísmo”, desafiando o monoteísta Gleichschaltung, ele se pronunciou em prol de um “novo politeísmo”. O surgimento de uma nova sensibilidade religiosa de tipo polifônico parece-lhe relacionado ao enfraquecimento geral do pensamento monocêntrico. A erosão do monoteísmo, diz ele, está afinal na lógica do fim do antropocentrismo, do heliocentrismo, do monogenismo, do etnocentrismo. H. Richard Niebuhr (Radical Monotheism and Western Culture, 1943) definiu os deuses como “centros de valor”. Ou, o mundo atual é policêntrico, polissêmico, multiforme, polimórfico. É o mundo do renascimento das identidades coletivas e da afirmação do pluralismo. “Múltiplos esquemas do politeísmo”, escreve Miller, “permitem, em um mundo pluralista, um movimento significativo. Eles dão a oportunidade libertadora de afirmar a pluralidade radical do eu, que fora raramente vista em razão do sentimento de culpabilidade atrelada as consequências insidiosas da unilateralidade monoteísta” (Le Nouveau Polythéisme. Renaissance des dieux et des déesses, Imago, 1979).

Miller não hesita em propor “remitologizar o pensamento ocidental, não para abandonar a lógica e a razão, mas para descobrir eventuais histórias vitalizantes encolhidas sob nossas ideias e nas profundezas de nosso raciocínio”. Não se trata de recriar cultos bizarros ou seitas absurdas, mas, como Heidegger já havia tentado fazer, reintegrar o tempo ao Ser para assegurar que o Ser seja sempre compreendido relação com uma presença neste mundo, como um Ser-Aí (Dasein). É necessário, diz Miller, desintegrar o pensamento do logos e trazê-lo de volta ao lado do mythos, “para que as abstrações sejam carregadas de um substrato estético, e que as ideias sejam reinvestidas com paixão”.

No Le Stade du respir (Minuit, 1978), um jovem filósofo francês, Jean-Louis Tristani, opõe o sistema invariável da Torá monoteísta ao sistema da lex latina e do nomos grego, que, antecipadamente, admitem a pluralidade de normas, também apela ao politeísmo como fonte de toda liberdade: “Pode-se supor que o par Torá/nomos fornece a oposição que, em um primeiro passo, ordenaria as diferentes culturas em um eixo que vai da servidão à liberdade. A religião mosaica constituiria, por assim dizer, o grau zero de liberdade, enquanto o nomos grego dá origem às condições de formação de tal sistema”.

Fato significativo, Jean-Louis Tristani e David L. Miller citam, como ponto de partida para sua reflexão, o mesmo aforismo de Nietzsche (“A grande vantagem do politeísmo”, §143, na Gaia Ciência): “Tal deus determinado não fora a negação ou a blasfêmia de outro deus. Pela primeira vez, nós honramos o direito dos indivíduos. A liberdade que reconhecemos em tal deus contra outros deuses, acabamos dando a nós mesmos. O monoteísmo talvez tenha sido, até agora, o maior perigo para a humanidade”.

Já faz tempo que o monoteísmo não é mais interpretado como a “continuação” ou como a “culminação” do politeísmo. É que além da dualidade do Um e do Múltiplo, eles envolvem ambos, sistemas de valores diferentes. “O politeísmo é um conceito qualitativo, não um conceito quantitativo”, diz Paul Tillich (Théologie systematique, Planète, 1969). O deus do monoteísmo é mortal. Ele morre quando não acreditamos mais nele. Mas os deuses e deusas do “paganismo” são imortais, porque o que eles representam nunca perece, no máximo, adormece. Há todas as razões para acreditar que, apesar das contorções intelectuais dos nabis das drugstores, que, entre as escolas de pensamento as mais diferentes, um desejo será chamado com mais e mais frequência a surgir, para restaurar a própria dimensão polifônica da melodia do mundo. B.-H. Lévy pode muito bem continuar (não sem razão) a se dizer de “esquerda” – se agita para ficar do lado bom do palanque – sua esquerda se encontrará para ele um dia ou outro ao lado da extrema-direita reacionária (um espetáculo divertido). Por outro lado, as correntes hoje separadas se encontrarão associadas algum dia – na frente. Vamos poder escolher seu lado.

(Abril de 1979)

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