Anotações sobre a queda do Império Romano

Enquanto termino a leitura do “A chegada das trevas: como os cristãos destruíram o mundo clássico” de Catherine Nixey, lançado em português pela Ed. Desassossego em Porto Salvo, 2018, tradução de “The Darkening of the Age”, me veio a mente o registro de umas rápidas considerações que talvez sejam úteis para mais gente.

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1. Sobre o livro em si.

O livro vale a compra e a recomendo sem reservas. Bem escrito, repleto de referências mas sem se tornar um tratado academicamente enfadonho nem truncado, a autora possui a escrita fluida de uma jornalista mantendo sempre uma prosa agradável. O material do livro, assim como a diagramação geral, por parte da editora, também é de boa qualidade, apesar de ter dado a impressão de haverem traduzido nas pressas (as referências às obras clássicas e medievais não foram traduzidas, assim como se registrou aqui e ali deslizes de digitação que escaparam de quem revisou o texto).

O conteúdo do livro é mais impactante para quem desconhece por completo a literatura relativa ao processo de cristianização e do final do Império Romano. Para quem já conhece, suponho que seja não apenas o meu caso, mas de muitos leitores cá, o livro tem a vantagem de acrescer uma ou outra referência desconhecida assim como a vantagem da sistematização de informações e reescrita num nível ao mesmo tempo palatável para leigos e suficiente para os mais exigentes. Em termos mais ideológicos, a autora se esforça no início para deixar claro o seu respeito pelo Cristianismo recente e traz a tona o importante serviço de questionar o viés cripto-cristão de muito da literatura moderna sobre o tema. Ela decide, efetivamente, não explorar as consequências, digamos, “políticas” (coisa que um texto como o “Bolchevismo da Antiguidade” de Alain de Benoist, faz bem) do processo, nem se envolve numa análise genealógica do milenarismo/messianismo e suas consequências. Neste sentido, o texto é um ótimo complemento ao já referido texto de Benoist e mesmo sem ser um texto conhecido pela autora, a julgar pelas referências, e sem que a mesma buscasse elucidar vislumbres “políticos”, a mesma termina oferecendo vários pontos de apoio (especialmente nos capítulos, 13, 14 e 15) ao já referido texto do filósofo francês.

Em termos negativos, o texto, no meu ver, exagera em repetir certo eco presente em acadêmicos modernos, de projetar o ateísmo e agnosticismo moderno como se fosse algo muito comum na Antiguidade, e em especial, no mundo Romano. Tomam uma interpretação ateísta militante do De Rerum Natura de Lucrécio como metro para medir o restante da sociedade romana. Isto me parece simplista e a autora mesmo parece não ser capaz de imaginar outro ponto de partida para a compreensão de uma crítica tão significativa (e justa) como a de Celso ao cristianismo. E ficamos a imaginar que teria ainda mais dificuldade para compreender a de Porfírio, sujeito acentuadamente religioso. Nisto, para quem viu o filme “Ágora” sobre a filósofa Hipácia de Alexandria, meio que repete aquela atmosfera do filme onde os filósofos do baixo império são retratados quase que como cientistas modernos ateus…

Mas, no geral, como já anunciamos, o livro merece o investimento e o recomendamos não apenas aos politeístas de hoje para que ampliem seu arcabouço de saberes sobre o período, mas para todo e qualquer interessado no tema e na história do Ocidente em geral.

2. Sobre uma literatura de fomento “anticristã”.

De minha parte convergiu a tradução do texto do Benoist já referido (“o Bolchevismo da Antiguidade”) com a leitura do texto da Nixey e por isto mesmo se acentuou o aspecto crítico ao avanço do cristianismo durante o baixo Império romano. E com esta acentuação, vem a questão de qual seria a utilidade de publicizar uma tal literatura hoje e para um público tão seleto.

No meu caso, especificamente, vejo uma utilidade propedêutica. Não se trata, absolutamente, de uma incitação ao anticristianismo militante nem mesmo a uma espécie de “revanchismo” rancoroso. Por mais que compreenda o eco que tal literatura pode ter na revolta adolescente contra o cristianismo, considero que a maturação das ideias levará, naturalmente, ao reconhecimento de que se trata, antes, de um período da história do cristianismo, que não deve ser esquecido, é fato, mas que não deve, também, ser focado de modo a nos tornar cegos para outros perigos mais iminentes e igualmente, ou até mais, danosos vindos do deserto árabe em nossos dias. Para não falar do “neo-bolchevismo”, do “neo-monasticismo” de sinistra, dos novifanatici internos a sabotarem ativamente as tradições coletivas.

É bom lembrar que, no frigir dos ovos, o Catolicismo Popular é nosso “aliado”: sua própria existência, em muitos casos, consiste numa ininterrupta continuidade que remonta as religiões indo-europeias pré-cristãs. É um erro crasso atacar o catolicismo popular. E mesmo o Catolicismo Oficial de hoje, não é o do séc. VI, é importante reconhecer. Quanto mais se conhece, mais se vê que, mesmo na estrutura oficial eclesiástica, com o passar dos séculos, uma coisa ou outra nossa foi “incorporada”. Se é verdade que, para os católicos tradicionalistas e ultramontanos, um concílio Vaticano II é uma espécie de mácula, para os não católicos que sofreram, historicamente, pressões e violências oriundas da postura “dura” do Catolicismo, é algo positivo no sentido de que, em tese, diminui-se a pressão pastoral e expansionista.

Boa parte de nossos ancestrais recentes foram católicos, nossos pais e avós. Chega a soar quase impiedoso, quando acrescemos tal “detalhe” ao histórico de nossos ancestrais e de nossa cultura ao longo da história da formação deste país; não faz sentido o ataque sistemático e ofensivo. E de modo algum é isto que desejamos. Além de que, ao olharmos os perigos que assaltam o presente, veremos que tal enfraquecimento do elemento católico popular (e mais amplamente “cristão”) também representará um ataque a certos bastiões que preservam valores dos quais compartilhamos e com os quais concordamos: Família, Fidelidade, Ordem, Virtude, Responsabilidade, etc. Muitos destes valores, em origem nada “cristãos”, materializaram-se pela força do atavismo Indo-europeu que, no nosso ver, deve ser preservado, independente do rótulo que tenha assumido de tempos em tempos.

Considerado isto, creio que tenha ficado claro que não se trata de fomentar qualquer anticristianismo de metaleiro adolescente. Agora, devemos esquecer os crimes? Não. Devemos formar nossos filhos ignorantes dos excessos e das terríveis e monstruosas ações de cristãos contra as fés tradicionais Indo-europeias? Também não. Neste sentido do não esquecer, de servir como informação introdutória e como um resgate de uma memória histórica esquecida, obliterada pelos “vencedores”, que tal literatura nos é útil hoje. Para nos ajudar a compreender melhor nossa posição e fragilidades e, por isto mesmo, nos “vacinar”, tanto no reconhecimento de novas ameaças, agora sob estandartes diferentes, como no ressurgimento de velhas. E claro, se a partir disto alguém decide, como diz o povo, “bater em burro morto” é uma opção de cada um; o que advogo cá é que, não é estrategicamente importante agora (talvez seja mais um desperdício de energia), nem muito menos que seja nosso objetivo ao divulgar tal literatura.

3. O que se pode aprender de lições ao se estudar a queda do Império Romano?

Muita coisa, e pra ser franco, não tenho ambição nenhuma de fornecer uma resposta totalizante, definitiva e profunda, se é que alguém consegue elaborar uma tal resposta. Muitas variáveis: literaturas, as próprias descobertas arqueológicas que emergem, os diversos ângulos de abordagem dos diversos problemas, por onde se olha, se vê que se trata de um tema amplíssimo por si só. Daí que listarei coisas simples, mais a título de notas a serem melhoradas.

1. Incompreensão da natureza revolucionária e fanática (supersticiosa) do radicalismo abraâmico é um problema, especialmente quando operam dentro da visão do martírio: a repressão pela força não pode ser feita sem que igualmente se recorra a medidas “contrarrevolucionárias” no nível doutrinário; do contrário, só se tenderá a reforçar a “lógica” do “martírio”. Na prática, isto significa não apenas apoiar as contenções internas de tal fanatismo perigoso, mas elaborar contenções externas robustas, sob a forma de doutrinas contrárias bem fundamentadas.

2. Neste sentido, a percepção dos “inimigos” não pode se resumir a detecção e monitoramento dos grupos externos e internos, mas mesmo de certas “doutrinas” com poder provado de mobilização subversiva. Por mais que sejamos tolerantes e permitamos o espalhamento de certas doutrinas, é mais inteligente permiti-lo quando dispormos de meios eficazes de barrarmos ou dificultarmos as ações instigadas por tais doutrinas.

3. Por mais que seja importante a defesa dos marcos legais e jurídicos que assegurem a tolerância religiosa, a excessiva confiança no aparato legal e político (no “Estado”, digamos) para contenção de um credo expansionista e totalitário, é um erro crasso e ingênuo. Faz tempo que venho dizendo isso (aparentemente, só), de diversas formas, desde o tempo do blog Parahyba Pagã. Em última instância, não podemos abrir mão do recurso a força para nos defendermos e nisto, mais do que antes, é necessário o fortalecimento da dimensão guerreira de nossas fés: uma centena de politeísta greco-romanos e Kemetistas treinados e dispostos, teriam evitado a derrubada do templo de Sérapis, pela horda dos parabalani cristãos em Alexandria. O enfraquecimento da dimensão guerreira acarreta num enfraquecimento do poder defensivo e reativo necessário em tempos de ameças. Será necessário um poder muito maior, por parte do ofensor, para conter uma série de sujeitos dispostos e treinados, que o diga Carlos, o Merovíngio, que precisou de todo um exército “imperial” para por abaixo meia dúzia de santuários “rústicos” (de madeira) dos saxões pagãos resolutos, séculos depois. Descuidar da espada? Jamais.

4. A atitude passiva, por vezes registrada, em que muitos politeístas assistiam a destruição de seus templos e estátuas, especialmente nos grandes centros urbanos, é algo a ser compreendido para não ser repetido. Aconteceu, seja pela crença tradicional de que a vingança caberia mais a própria divindade do que aos seus cultores (o que penso que fosse a maioria dos casos), seja pela inação geral ante o impacto sombrio de tais espetáculos blasfemos da imundície iconoclasta cristã. Seja por qual motivo, primeiro devemos considerar, no meu ver, a própria natureza das “massas”: o povão, tenderá a inércia e sua ação dependerá de um “convocação” bem feita, do contrário, assistirão lamentando, amedrontados. O conhecimento sobre sua própria herança e produção estética e cultural, também terá seu valor, pois mesmo quando faltar a fé, propriamente, sobrará ao menos o apreço intelectual pela cultura. E daí poderá vir, com mais facilidade, um sentimento identitário de pertença, que impelirá a (re)ação. Por isto, me parece razoável que consideremos o “identitarismo” multicultural do Império, por si mesmo, como tendo suas reticências, pois se é verdade que multiculturalismo do Império não se comparava ao de nossa época, pela própria dimensão de intertradutibilidade espiritual, digamos, que terminou por favorecer uma atitude religiosa sincrética, mas que – até onde saiba – não se opunha ao Tradicional e o matinha em certa medida; também é verdade que fora composto por sobre um processo de desenraizamento migratório, onde nas grandes cidades do Império, até 90% dos que viviam lá eram “imigrantes”, que somado a uma situação de “fragilidade social” criou um terreno fértil para o fanaticismo apátrida e neólatra. Forjarmos hoje, ou confiarmos cegamente num identitarismo para uma sociedade multicultural laica (sem tal eixo verticalizante de uma Religião e uma atitude Indo-europeia que permita intertradutibilidade teológica) não será, pois, garantia certa de “sucesso” contra uma religião expansionista e totalitária.

5. Conseguirmos, com o tempo, infundir um ressurgimento Indo-Europeu pulsante, vigoroso e positivo, pelo próprio poder irradiador dos nossos deuses, nos fortalecerá. O desafio de uma continuidade desta pulsão pelas gerações (da adequada paideia, correta formação integral) deverá já ser vislumbrado. Manter-se saudável, cultivar um bom sistema imunológico, para rapidamente nos recuperarmos, já que não temos garantias de que nunca seremos inoculados pela doença dos desertos palestinos.

Sim, também há mais algo importante: quando olhamos para tal episódio histórico multissecular (da queda do Império Romano), pela oposição aos métodos e doutrinas do cristianismo nascente, damo-nos todos por garantido ao lado do Imperium. No entanto, é bom lembrar que talvez alguns creiam que a própria constituição de um tal Imperium tenha sido um erro, não apenas pelo erro político do expansionismo imperial romano, que terminou por extinguir religiões e culturas independentes aculturando-as (entre os que se identificam com as culturas celtas, não raro, tal posição ecoa rápido), mas um erro por ter centralizado as decisões legais e políticas numa rede funcional que, uma vez tomado o “centro” desta rede (Constantino, o vil, ao ter se convertido ao cristianismo), mais fácil se dispôs dos mecanismo jurídicos, políticos e orçamentários eficientíssimos para se perseguir, pressionar e converter “pagãos” por todo o Império, de modo ainda mais eficiente.

Ou seja, alguns talvez digam que, no fim, a lição a ser aprendida deva ser “não haver Impérios” (‘Imperia non sunto’, imperativamente, ou numa formulação subjuntiva ‘non sint Imperia’): talvez nem tanto por uma recusa a grandeza e a glória, mas por um medo de sua usurpação e subversão por parte de um grupo fanaticamente obstinado e intolerante. Mas aí se trata de algo mais para o futuro e menos para a compreensão do passado, pois ficamos com um mero exercício imaginativo pouco fecundo no mundo real. Como teria sido o Ocidente sem o Império Romano? Por exemplo, nossos ancestrais hispânicos, como teriam se desenvolvido? Teríamos mais registros e literatura religiosa deles hoje? É um grande mistério saber e brigar contra o que passou (“o que passou, passou”, pois, diz o dito popular), neste sentido, além de inútil, pode gerar certo modo esquizofrênico de ser que não nos interessa muito. E mais, teríamos como saber se realmente a ausência de um Império teria de fato impedido a ascensão do cristianismo ou apenas teria “retardado”? Ou seja, nesta opção, abrimos as portas da especulação interminável de poucos efeitos práticos para nossa situação hoje e, por isso, não me parece uma opção sensata insistir em tais devaneios.

Bem, paro por aqui. Haveria mais a comentar, mas são notas que visam a brevidade.

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