Traduzido por Marcílio Diniz do livro Les idées à l’endroit. Paris: Éditions Libres-Hallier, 1979. p. 49-54. Os termos em itálico que não forem estrangeirismos são ênfases do próprio autor no texto original.
[Este texto não visa ser um compêndio de moral “iberocéltica”, longe disto. O autor parte de um certo ânimo nietzschiano e Indo-Europeu mais geral, além de resguardar idiossincrasias específicas com as quais podemos discordar abertamente. Postamos aqui mais como uma espécie de indicação útil aos correligionários no âmbito prático mais geral, mas só como indicação mesmo. Sobre nossa moralidade religiosa específica (de cunho aristocrático) nos dias de hoje é mister um texto próprio que sairá em algum momento].
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Eu não tenho muito gosto pela “moral”. Eu conheço mais a genealogia (que Nietzsche me parece ter esclarecido muito bem). Além disso, tenho a tendência a considerar que existem tantos “valores morais” quanto níveis possíveis da humanidade – o que faz um certo número. Por outro lado, acredito mais em princípios, que também podem ser regras de vida (todo devir histórico vai do mito ao princípio, tendo por base uma ideia). Em todo caso, aqui estão os meus; espero não falhar demais.
1) O homem é o partidário de Deus, seu parceiro para melhor e para pior. Todos os deuses criam em comum. Deus não está acima ou fora de nós. Não está além das nossas sensações. O importante não é acreditar em Deus. O importante é agir de tal maneira que seja possível Ele crer em nós. O encontrar e o identificar em nós, é nos desvelarmos como Ele. O corpo e a alma são um e o mesmo. Trazer de volta um ao outro, opor entre eles essas noções: é uma questão da mesma enfermidade do espírito. Um Deus que não se comporta como tal dá o direito de merecer ser repudiado; desde que aquele que o repudia tenha dado o melhor de si mesmo.
2) Não basta somente ser, ainda se deve “criado”. A criação é posterior ao nascimento; não se pode ser “criado” a não ser por si mesmo. Deste modo que se dá uma alma. Mestre Eckhart fala de “auto-criação” (Selbsrschöpfung): “Eu fui a causa de mim mesmo, onde eu quis a mim mesmo e não fui nenhum outro. Eu fui o que eu queria, e o que eu queria, fui eu” Na Edda (Hávamál, v), imagem de Odhinn: ele se sacrificou a si mesmo. Um povo funda uma cultura quando se torna causa de si mesmo – quando transforma somente a si mesmo (em sua tradição) na fonte última de uma perpétua novidade. Também o homem: encontrar em si mesmo as causas de si e os meios de uma superação de si (o chefe de Estado decadente: aquele que deriva sua autoridade de qualquer outra coisa que não si mesmo, de qualquer coisa que não seja a transcendência de seu próprio princípio).
3) A virtude não é um meio que se relaciona a qualquer fim último. Ela é em si mesma seu próprio fim – sua própria recompensa. A reconquista interior ou reconquista de si; ponto de partida de qualquer missão como de qualquer conquista. E, em primeiro lugar, o reconhecimento e a redescoberta mútua do animus e da anima. Estabelecer em si mesmo um império soberano. Ser para si mesmo o próprio objeto. Obedecer ao Mestre que há em nós, no exato momento em que mandamos no Escravo que há em nós. Procura da justa medida.
4) Ser a si mesmo não é um imperativo suficiente. Falta ainda tornar-se o que se pode ser – se construir de acordo com a ideia que se faz de si mesmo. Nunca fique satisfeito consigo mesmo. Querer mudar a si antes de mudar o mundo. Aceite o mundo como é, ao invés de nos aceitar como somos. Desenvolver dentro de nós, entre nossas potencialidades, aquelas que nos tornam especificamente humanos; e entre estas, aquelas que especificamente nos fazem nós mesmos. Uma forte vontade nos permite ser o que queremos – não importa o que éramos. A vontade tem precedência sobre todos os determinismos, mesmo o nascimento, desde que se possa desejar. E, antes de tudo, cultivar a energia interior, essa energia que “a formiga pode dar prova tanto quanto o elefante” (Stendhal) – e que torna possível ser o inverno, pelo qual a primavera retorna.
5) Fixar a própria norma – e cumpri-la. Tome a lei em si mesmo, desde que você não mude (o que não impede dar novas dimensões à perspectiva escolhida). Não desista. Não se dobre. Continue sem razões para continuar. Seja fiel às causas traídas, seja fiel àqueles que não foram. Seja fiel também àqueles que não são mais fiéis. Defenda contra todos e contra si a ideia de que o que se faz das coisas e que se gostaria de poder fazer de si mesmo.
6) Não tome “posse” de outros sem que primeiro tenha tomado “posse” de si: a restrição sobre si mesmo, a primeira condição do direito restringir os outros. Da mesma forma: apoiar seus contemporâneos depois de ter apoiado a si mesmo. O homem de qualidade tem em primeiro exigências cara a cara para si mesmo, o homem comum tem apenas para os outros (Confúcio). O poder deve basear-se na superioridade, não a superioridade no poder. Aqueles que dirigem têm o direito de possuir, mas aqueles que possuem não têm necessariamente o direito de dirigir. O homem de qualidade está além do despotismo: ele domina os dominadores por seus próprios caminhos. “Uma nova nobreza é necessariamente oposta a tudo o que é populacho e déspota” (Nietzsche). Quanto mais alto se sobe, mais se anda sozinho: mais se tem que confiar em si mesmo. Aqueles que estão acima são responsáveis por aqueles abaixo: eles devem responder às suas expectativas; eles têm “privilégios” apenas na medida em que podem realmente ser descarregados sobre eles – caso contrário, todas as revoltas são justas. Siga livremente aqueles que nos são superiores: orgulho de ter encontrado um Mestre (Stefan George). A contrapartida da submissão não é a dominação, mas a proteção. Temos o direito de obedecer e o dever de (se) comandar – não o inverso. Proclamar o dever de ter direitos – e o belo direito de ter deveres.
7) O mundo é uma tragédia incomensurável. Toda a existência é trágica, toda afirmação é trágica. O mundo é um caos – mas que pode ser posto em forma. O que fazemos não tem outro significado além daquele que damos. Contrapartida: tudo ressoa em tudo. Nossas ações mais minúsculas têm uma consequência nas partes mais remotas do universo. O mal não tem uma existência positiva. É apenas uma simples limitação do que devem – uma limitação da forma que os seres dão ao mundo. Uma pura e eterna negação.
8) Nós merecemos tudo o que nos acontece – individual e coletivamente. Além de um certo limite, não há chance nem acaso: nossos adversários, em última análise, nunca são mais fortes que nossas próprias fraquezas. Como resultado, não apenas aceite, mas deseje o que acontece. Desejar que ocorra quando não conseguimos impedir que ocorra. Nenhuma resignação, mas a manutenção de nossa própria liberdade. Amor fati: a única maneira de agir quando não se pode mais agir. Estoicismo: a única conduta possível quando as outras não mais são. Certifique-se que aquilo sobre o que não podemos nada não possa nada sobre nós também (Evola).
9) No princípio era a ação. As coisas grandes e fortes não têm razão de ser; é por isso que devem ser (mas tudo que é sem motivo não é necessariamente grande e forte). A ação é o mais importante, não aquilo que a empreende; a missão, não aquele que a cumpre. Contra o individualismo – pela impessoalidade ativa. O que se deve fazer não se explica em termos de motivos. A nobreza é silenciosa.
10) Honra: jamais falhar nas normas que foram estabelecidas. A imagem que se faz de si se torna verdadeira – é evidente – no instante que a ela nos conformamos. Portanto, se é uma “imagem” ou uma “realidade” não importa; os dois termos são confusos. A ideia se torna carne: é a verdadeira encarnação do Logos. Toda promessa engaja, nenhuma circunstância desengaja. Ser orgulhoso de si: o melhor meio de não dever ter vergonha dos outros.
11) O estilo é o homem. A liturgia conta mais que dogma. A beleza nunca é um mal. Melhor fazer bem coisas medíocres do que fazer mal coisas excelentes. A maneira como as coisas são feitas vale mais do que as próprias coisas. A maneira na qual se vive suas ideias vale mais do que as próprias ideias. A maneira como vivemos vale mais do que vivemos – e às vezes mais que a vida. Mais simplicidade do que maneiras, nos faz grosseiros; mais maneiras do que simplicidade, nos faz pedantes; tantas maneiras como simplicidades, tal é o homem de qualidade (Confúcio).
12) Nietzsche: “O que é nobre? – procurar as situações onde precisamos de atitudes. Abandonar a felicidade ao grande número, essa felicidade que é paz da alma, virtude, conforto, mercantilismo anglo-saxão. Procurar instintivamente as responsabilidades pesadas. Saber como fazer inimigos em todos os lugares e, na pior das hipóteses, tornar-se um de si mesmo”.
13) Passar o dever a frente das paixões; as paixões, a frente dos interesses. Realizar “boas ações” para obter a salvação, ir para o paraíso etc., ainda é servir aos seus interesses. Faça o que deve, não o que ama. Mas isso requer aprendizado: o homem precisa de regras para se construir – porque ele é maleável ao infinito. O trabalho como serviço, o dever como destino.
14) Perceber e sem cessar refazer a harmonia vivida de contingências e princípios. Certifique-se de que os atos sejam consistentes com as palavras. O homem cujas palavras excedem os atos não é mais mestre que o homem cujos atos excedem as palavras. Ser sincero não é dizer a verdade. É aderir inteiramente, sem hesitação, a tudo que se empreende.
15) Não se arrepender, mas aprender as lições. Faça todo o possível para não fazer o mal. Se tiver feito, não tente se justificar. As justificativas que se dá são um tanto fúteis diante de si mesmo. O arrependimento não vai desfazer o erro, mas para dar uma boa consciência. Retorne o bem para o bem, a justiça para o mal (se retornarmos o bem para o mal, o que faríamos para o bem – e que valor teria?).
16) Jamais perdoar; muito esquecer. Jamais odiar; frequentemente desprezar. Sentimentos plebeus: ódio, ressentimento, suscetibilidade, vaidade, avareza. O ódio é o oposto do desprezo, o rancor é o oposto do esquecimento, a suscetibilidade e a vaidade são o oposto do orgulho, a avareza é o oposto da riqueza. De todos esses sentimentos, o ressentimento é o mais desprezível. Nietzsche: “Próximo é o tempo do mais desprezível dos homens, aquele que não é mais capaz de desprezar a si mesmo”
17) Contra o utilitarismo. Existem homens como exércitos. As tropas que, para lutar bem, precisam saber por que estão lutando, já são tropas medíocres. Há mais baixas ainda: as tropas que precisam ser convencidas de que sua causa é a correta. E ainda mais baixa: aqueles que lutam apenas quando estão em condições de vencer. Quando se deve fazer qualquer coisa, se ocupa apenas de um modo secundário de saber se a ação pode ou não pode ser coroada com sucesso. A máxima do Taciturno continua sendo a chave da gravura de Dürer, “O Cavaleiro, a morte eu diabo”. Mas não é suficiente para empreender sem ter certeza da vitória, é preciso ainda empreender, mesmo quando se tem a certeza de falhar – porque é certo falhar: para permanecer fiel às normas que se adotou e ainda a única maneira honrosa de se terminar. Pense no “soldado de Pompéia” (Spengler). E também no exemplo de Regulus. Querer fazer como o adversário sob o pretexto de que ter sido bem sucedido, é tornar-se o adversário – não ser diferente dele. Há baixeza assim que se pergunta “até que ponto?”, “quanto vai custar?”, “o que nos obriga a fazer isto?”. Tentar conservar a todo preço uma vida que perderemos de qualquer maneira – apólogo de cães vivos e de leões mortos. Eis um belo absurdo.
18) A virtude como vício só pode ser um apanágio de uma elite. Eles exigem a mesma capacidade de domínio de si; pertencem menos a “moral” que à pura vontade. A liberdade de fazer algo anda de mãos dadas com a liberdade cara a cara de qualquer coisa. Em outros termos, desejamos somente as coisas as quais nos sentimos também capazes de renunciar. Julius Evola: “te permites fazer algo na medida na qual podes também te abster de fazê-lo (…) estás autorizado a querer algo – e obtê-lo – na medida da tua capacidade de te abster”.
19) Não procure convencer, procure, ao invés, despertar. A vida tem significado no que é mais que a vida – mas não no Além da vida. O que é mais do que a vida não se expressa em (e através de) palavras, mas se sente por vezes. Dê preferência a alma sobre o espírito, a vida sobre a razão, a imagem sobre o conceito.
20) O lirismo pode servir como regra “moral”, na condição que seja posta como relação essencial da existência, não a relação de homem para o homem, mas do homem para o universo (a única maneira de se juntar ao mundo de cima é se construir por analogia com ele). Os grandes chefes de Estado são aqueles graças aos quais as pessoas podem se pensar liricamente.
21) O presente atualiza todo o passado, potencializa todos os futuros. Aceitar o presente, pela jubilosa suposição do instante, é poder desfrutar ao mesmo tempo de todos os instantes. Passado, presente e futuro são três perspectivas, igualmente atuais, dadas a todo momento do devir histórico. Quebrar definitivamente a concepção linear da história. Tudo o que fazemos compromete o que já veio da mesma maneira que (novamente) virá.
22) Objetivo da vida: colocar o que for importante entre si e a morte. A época como a sociedade pode nos impedir. Dois caminhos para a sociedade enlouquecer: exigir demais, não propor o suficiente. Pode ser, de acordo com os homens, exatamente o mesmo.
23) Solidão. Saber ser parte da estrela polar: aquela que permanece no lugar quando os outros continuam a girar. A paz está no centro do movimento (Jünger) – no eixo da roda. Cultivar em si mesmo o que um homem de qualidade conserva, imutável, em todas as situações: o jen confuciano, purusha dos Aryas, a humanitas dos Romanos – o núcleo interno do ser.
24) Não há piedade mais verdadeira que a piedade filial, estendida aos antepassados, da linhagem e do povo. Jesus afirmando que José não é seu verdadeiro pai – que ele é o filho de um Deus único, o irmão de todos os homens – é onde começa o processo de negação da paternidade. Nossos ancestrais que partiram não estão espiritualmente mortos nem passaram para outro mundo. Eles estão do nosso lado, em uma multidão invisível e farfalhante. Eles nos cercam enquanto sua memória é perpetuada por seus descendentes. Por isso se justifica o culto aos ancestrais – e o dever de fazer com que seu nome seja respeitado.
25) Todos os homens de qualidades são irmãos, não importa a raça, o país e a época.
(Julho de 1977)