Confrarias Guerreiras e Casamento entre Germânicos – Lady With a Mead Cup pt. II

[Dando continuidade à tradução de trecho da obra Lady With a Mead Cup de Michael J. Enright, da página 77 a 81]

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Kriemhilde oferece cálice com poção do amor a Siegfried, em cena do filme Die Nibelungen, 1924.

Armas e bebida atam o seguidor à comitatus; armas e bebida, eu sugiro, também atam a nova esposa à família. Esta hipótese ainda não foi inteiramente apresentada de forma comparativa mas parece inelutável uma vez vista a adoção como denominador comum entre os possíveis significados de druht. Isto pode ser checado contra o padrão de casamento em Germania 18. Aqui é dito que o pretendente traz presentes para sua prospectiva noiva na presença dos pais e parentes para julgar. Estes presentes não têm, diz Tácito, a intenção de agradar ao gosto da noiva por adornos, são sim compostos de “gado, corcéis, um escudo, uma lança,  e uma espada. Com estes presentes”, ele continua, “a mulher é desposada, e ela em retorno, traz peças de armadura para o esposo.  A isto eles contam como o laço mais forte de união, estes o seus mistérios sagrados, estes os seus deuses do casamento.”

Se a doação de armas é compreensível para os seguidores – são dadas por um líder em um ato que obviamente imita um pai presenteando com armas a um filho na chegada da maior idade – o que se pode dizer do surpreendente ato de presentear com armas a uma noiva que não pode empunhá-las? Tácito diz que elas deviam demonstrar para a noiva que ela não está imune aos perigos da guerra. O contexto certamente é correto, mas a explicação é ingênua; é de se duvidar que as mulheres germânicas precisassem ser lembradas disto. Os acadêmicos concordam neste ponto, mas não puderam oferecer uma explicação satisfatória para tal – uma condição refletida na discussão confusa de Much ainda que um excelente comentário. Contudo, sob a constituição dos presentes o quebra-cabeça é resolvido: o noivo presenteia com armas a sua noiva perante os parentes desta porque se tratava de um rito de adoção, um costume do povo que era comum tanto para a família quanto para a comitatus. O consenso cultural assegurava que uma relação sanguínea fictícia, era necessária, pelo menos, antes de ganhar admissão nos trabalhos internos, segredos, ritos e maquinações do grupo. Laços sanguíneos eram considerados tão poderosos que o único jeito pelo qual poderiam ser efetivamente rebatidos era através de uma duplicação ritualística da filiação original. A natureza do compromisso é sugerida pelos tipos de presentes trocados.

Não precisamos depender apenas de Tácito para esta conclusão, pois é certo que um presente de armas também desempenhava um papel estabelecido nos casamentos legalizados entre os Visigodos. Em seu estudo Sobre o Casamento Legalizado entre os Visigodos Espanhóis, Schutze remarcou atenção renovada à fórmula datada do quarto ano régio do Rei Sisebut (615-616) que prescreve que os presentes devem ser dados a uma nobre noiva gótica como seu morgingeba ou “presente do amanhecer”, ou seja, os presentes que devem ser entregues pelo esposo após a noite de núpcias. Estes incluíam 10 meninos, 10 meninas, 10 garanhões, e, entre outras coisas, um presente de armas. No verso aonde está descrito isto, é chamado Ordinis ut Getici est morgingeba vetusti, “parte da antiga ordem Gótica”, conforme Schutze traduz.  O nome popular Getici assim como a referência expressa a costume antigo claramente nos leva para um período anterior longínquo, de fato, de volta para a Germânia com seus cavalos e armas que o guerreiro dá a sua esposa. O leitor moderno é atingido por este exemplo surpreendente de retenção, evidência de uma forma muito especializada de continuidade. Aparentemente os Visigodos se consideraram fora de moda pois pouco mais de uma geração após, o Rei Chindasvind decretou que a arma tradicional fosse reposta pela palavra ornamenta, embora o cavalo continuasse lá em leis esponholas tardias.

Pode-se também apontar para uma evidência dos Anglos-Saxões no qual, se as armas deixam de ser mencionadas, o conceito da esposa como seguidora do esposo certamente se faz presente. No poema OE chamado Lamento da Esposa, por exemplo, a mulher abandonada lamenta a passagem de freondscipe entre seu hlaford e ela mesma. A linguagem é aquela da cavalaria armada e podemos comparar OE com OHG aonde friunt pode significar esposo. Testemunha também a Mensagem de Esposo que se refere ao juramento pelo qual o homem irá sempre manter “pacto de companheirismo”, winetreowe, com a esposa. Similarmente o tratado tardio (século XI) Be Wifmannes Beweddunge refere-se aos presentes que o noivo deve dar à donzela em retorno pela aceitação da sua vontade – his willan geceose. Conforme Roeder pontuou,  esta frase é um terminus technicus a ser utilizado pelo homem que aceita servir a um senhor -ic… his willan geceas. Além do canal na Francia do século IX, a nobre Dhuoda sugeria algo similar ao se referir ao esposo como dominus e senior. A terminologia é aquela da vassalagem. Mesmo a tecelagem, frequentemente descrita como feminea opera, também pode ser referida pelo típico termo de vassalagem obsequium.

Tal evidência lança nova luz no insight de Walter Schlesinger de que o conceito de senhorio sobre uma confraria ajudou a construir a lei Germânica de casamento. Parece confirmar a mesma relação de que a esposa está para o esposo como o esposo está para seu senhor; ela é uma seguidora assim como ele. É preciso reconhecer, contudo, que a explicação completa é mais complexa do que esta para casamento (como Schlesinger certamente sabia) é de longe a instituição mais antiga assim como está claro que o senhor da comitatus está simplesmente imitando o pai de família ao presentear com armas o seu novo sunu. O que parece mais provável, portanto, é que ambas as transferências de armas têm lugar na família. Isto não significa que a comitatus não exercia influência, mas convém lembrar que o seguirdor original é o filho biológico. A confraria guerreira imita esta relação mas não é o modelo original; ao contrário, a sobrepujante importância do modelo é demonstrada pela imitação deste, e tal cópia volta, por sua vez, a influenciar o padrão de casamento. Considerar o denominador comum de adoção torna este modelo mais provável como também o faz a organização familiar do líder da tropa. Consequentemente, enquanto a profunda significância cultural das armas como elemento de ligação é conclusiva por estes textos, não há motivação para assumir que estes ritos de armas dissessem respeito apenas à confraria. Toda pessoa livre estava armada, assim como estava todo filho maior de idade, e assim como muitos dependentes. Então de fato, ao menos sob perspectiva simbólica, estava toda mãe de família. O exame de sepulturas por arqueologistas tem demonstrado que muitas mulheres germânicas portavam pequenas lâminas penduradas ao cinto que parecem ter sido inúteis para propósitos práticos. Estas provavelmente serviam como sinal de nascimento livre. Mais uma vez, não há necessariamente conexão com a comitatus como tal mas uma ligação inquestionável ao status. Não era a confraria mas sim a visão guerreira de mundo que determinava este simbolismo.

Eu afirmei acima que o rito de integração em questão incluía não apenas armas, mas armas e bebidas. Isto foi parcialmente baseado na interpretação de práticas históricas centradas no serviço ritual da rainha e no papel que a bebida tinha na vida da comitatus. É ainda mais intrigante, portanto, que, à luz da evidência filológica, Kuhn podia alcançar a conclusão de que druht originalmente significava “beber”. Ainda que suas ideias não tenham alcançado grande aceitação, Green admite que sua derivação “é teoricamente possível” em alguns casos e é, certamente indicativo da força de seus argumentos que 5 acadêmicos filologicamente competentes que abordaram a questão (Green, Dick, Schmidt-Weigand, von Olberg, Crozier) deram, de maneiras diferentes, lugar para a associação entre festividade e casamento. É possível aventar a possibilidade de que o elemento menos investigado em cada caso (família, casamento e comitatus) é o poder para comandar seguidores baseado na autoridade paterna. Nós já vimos que a condição da esposa é similar àquela do seguidor. Vamos agora buscar por uma maneira mais específica – para além do conceito de festividade – no qual a oferta de uma bebida intoxicante podia atuar como sinal de autoridade tanto no casamento quanto na confraria guerreira.

Qualquer estudioso que investigar seriamente os ritos de bebida dos germânicos irá rapidamente se impressionar com a maneira pela qual as mulheres estão frequentemente ligadas à bebida em todas as fontes.  Este padrão é tão comum e internamente consistente que é impossível ignorar. Poetas dos germânicos nórdicos, por exemplo, frequentemente referem-se a uma mulher dando-lhe o nome de uma deusa, Freya, Gefion, Hlokl, etc., e então acrescentam, o cálice, chifre, taça, ou cerveja, hidromel, vinho e afins. Embora seja verdadeiro dizer que este é um dispositivo poético, é mais importante notar que a incidência da utilização (assim como as muitas referências casuais) é tão alta que reflete uma atitude profundamente sedimentada, um padrão de pensamento que reside no cerne básico de uma cultura. Colocando de maneira simples, o conceito geral de “mulher” é repetidamente associado ao conceito geral de servir bebida e de “contrato de serviço”. Este ato que parece mais profundamente expressar e encapsular as noções relacionadas de serviço e contrato é a apresentação da bebida que também aparece na literatura como uma poderosa metáfora para o estabelecimento ritual de status relativo no mundo Germânico. Tamanha ênfase vai naturalmente se mostrar em uma variedade de formas. Einarsson (entre outros) demonstrou que proferir juramentos sobre a bebida era uma prática prevalecente e que o ato de beber era um meio de “acrescentar peso e autoridade à palavra dada”. Não surpreende que exemplos se espalhem pelas fontes. O que surpreende, contudo, é que não somente mulheres servissem a bebida mas fossem também comumente o objeto do juramento. Assim na saga de Jomsvikings, quando os homens começaram a fazer votos sobre a bebida, Vagn jurou “matar Thorkel Leira e ir para a cama com a filha dele Ingeborg sem o consentimento da família dela”.

Em Lay of Helgi Hjorvard’s Son, Hedin diz a seu irmão que:

“No cálice sagrado

No salão de banquete

A vossa noiva escolhi para mim,

A filha de reis.”

Em Hervarar Saga:

“Em um Yule Bolm Angantyr jurou sobre o cálice de Bragi, conforme era de costume, que haveria de tomar a filha de Yngvi… rei de Uppsalir, Ingibjorg seu nome, a mais bela e sábia donzela entre os falantes de dinamarquês, ou do contrário tombar [em batalha].”

Em Landnámabók:

“Naquela festa Holmstein jurou que haveria de casar-se com Helga, a filha de Orn, ou com nenhuma outra mulher.”

Em Svarfdoela saga:

“Klaufi tomado pelo parceiro de bebida – jurou que iria para a cama com Yngvildr fogrkinn (belas bochechas) contra a vontade de Ljótólfr godi.”

Estes trechos são selecionados de fontes de datas variadas, claro então, é justo questionar se a prática descrita é realmente frequente. A resposta é encontrada no poema Málsháttakvaedi  na Edda de Snorri aonde se afirma que “as damas são escolhidas sobre a cerveja”. Em outras palavras este é o método pelo qual o voto de procurar uma determinada mulher é normalmente expresso. Estes são apenas exemplos das numerosas formas nas quais a associação mulher/bebida afetava o raciocínio dos guerreiros. Uma mulher, então, pode ser referida pelo nome da bebida, geralmente serve a bebida, às vezes estimula o juramento, frequentemente é o assunto destes juramentos e, conforme veremos, está também ligada ao seu parceiro pelo mesmo ato de servir bebida.

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