Tradução: Emily Lyle – Sobre a adoção de uma perspectiva dupla da Mitologia Céltica e suas raízes pré-históricas (trecho)

[Este texto e a hipótese geral apresentada no “Ten Gods” são muito frutíferos e tem gerado comentários de minha parte que estão demasiado extensos, de modo que, dentro do possível, estou considerando reuni-los num projeto maior sobre “teogonia” céltica. Daí que postamos cá mais como um chamado de atenção, um sinal, uma provocação.]

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Tradução por Marcílio Diniz do trecho inicial do capítulo 9 do livro LYLE, Emily (org.). Celtic Myth in the 21st Century: The Gods and their stories in a global perspective. Cardiff: Universy of Wales Press, 2018. Omiti as imagens e notas de rodapé, pois talvez publique posteriormente como segunda parte, coisa que estamos ponderando se fazemos ou não em vista de se tratar de material recente com direitos autorais que não está disponível gratuitamente noutras fontes.

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Tricéfalo gálico, possivelmente representando os Lugoves, achado em Reims.

Vendo a mitologia céltica através das lentes de uma cultura completamente oral

A premissa deste capítulo é que os deuses que conhecemos nas histórias foram imaginados primeiro na pré-história e que só podemos entender alguns aspectos da mitologia celta refletindo sobre ela nesse contexto. O mito nas culturas orais repousa sobre a suposição de um mundo de deuses concebido por analogia com o mundo humano [a visão tradicional, “metafísica”, é o contrário: o mundo humano que é construído a partir do modelo divino] e também sobre o continuum ontológico “que funde tudo em uma única totalidade abrangente”. Isso é bem diferente do mundo de pensamento das culturas letradas e deve ser atendido em seus próprios termos. De modo a permitir que as duas vertentes da investigação – as histórias reais encontradas nos manuscritos medievais e a matriz pré-histórica onde tudo começou – sejam reunidas, precisamos adotar a metodologia apropriada para uma compreensão do mundo oral. Pode-se dar como certo que o mundo letrado já é familiar entre os acadêmicos e não requer atenção especial.

Felizmente, essa discussão pode incentivar a investigação das raízes orais do mito, apontando soluções que já foram alcançadas e possibilidades que ainda precisam ser exploradas. O domínio celta, por meio da conservação cultural, talvez tenha retido mais do passado totalmente oral do que qualquer outra área Indo-europeia, e os estudiosos que trabalham neste campo estão em posição de iluminar, não apenas a cosmologia Indo-europeia da Era pré-axial, mas todo o complexo de um passado remoto, quando essa cosmologia interagiu com outras cosmologias.

Uma abordagem pelo mito, em vez do trabalho com a semântica de palavras isoladas, baseia-se em uma rede de inter-relações que se estende além do verbal, para se referir a lugares e tempo, e aos padrões de parentesco que operam na sociedade fundamental. É axiomático que uma sociedade na pré-história deva ter um determinado esquema organizado, mas também é sabido que uma grande variedade de esquemas poderia ter sido desenvolvida pela imaginação humana. O que temos no caso Indo-europeu é um substancial corpo de evidências em uma variedade de culturas relacionadas que permite a postulação de um esquema-fonte específico, conforme apresentado em meu livro “Ten Gods”. Espera-se que os materiais originalmente pertencessem a um reino ordenado que se fragmentaria com a passagem do tempo, de modo que não seria surpresa encontrar uma situação de caos, onde os remanescentes sobrevivem sem estarem bem ligados entre si. O valor da dupla perspectiva defendida aqui é que ela sugere pôr o universo ordenado postulado do todo cosmológico lado a lado com os textos históricos, permitindo assim a iluminação sem forçar uma modelagem.

O mito celta viajou por um bom tempo antes de encontrarmos evidências deste nos textos escritos do período cristão, e argumenta-se que não podemos considerar sensatamente o mito celta isoladamente do complexo indo-europeu do qual ele fazia parte. Como no caso dos estudos linguísticos, estamos preocupados com o sistema sincrônico e com as mudanças diacrônicas. No que diz respeito ao sistema sincrônico, uma diferença interessante da linguagem é que o mito, que consiste em histórias e é verbal em si, é, no entanto, integrado a um sistema cosmológico que se relaciona com componentes de organização social e está incorporado em um padrão espaço-temporal. Pode-se argumentar que mergulhar nos mitos nos leva mais a fundo no passado do que os estudos linguísticos, que são particularmente informativos para o período imediatamente antes da evidência linguística estar disponível na forma escrita e lançam menos luz sobre o passado mais distante, enquanto se pode postular que o mundo mítico formou o padrão. É possível prever um sistema Indo-europeu totalmente integrado, com base num estudo detalhado dos componentes relevantes dentro das várias tradições Indo-europeias, e usá-lo como um modelo contra o qual é possível comparar os elementos que aparecem no registro escrito posterior. A área celta tem um potencial especialmente forte e começarei chamando a atenção para uma contribuição crucial dos estudos irlandeses.

A Irlanda aponta o caminho para o passado profundo

A importância da descoberta feita por Kim McCone quando ele assumiu a tríade definida por Dumézil e a colocou em um novo contexto até agora não foi totalmente apreciada. Dumézil falou da tríade de sacerdotes, guerreiros e produtores e essas divisões sociais dentro de uma sociedade não são encontradas nos estágios iniciais da cultura. Margaret Clunies Ross, no contexto dos nórdicos antigos, descartou toda a abordagem triádica duméziliana por esses motivos, mas, seguindo o trabalho de McCone, não é mais possível desconsiderar o trabalho de Dumézil dessa maneira. A descoberta de McCone da base etária da tríade fornece solidez e profundidade temporal necessária. Ele insistiu que os conceitos (as ‘funções’ de Dumézil) do sagrada, da força física, fertilidade e prosperidade estivam ligados aos três estágios da vida, homens velhos, homens jovens e homens maduros, e esses eram potencialmente distinguidos nas sociedades primitivas.

É possível estudar sociedades de classe etária na modernidade, particularmente entre os povos pastorais da África Oriental, e obter uma compreensão de como eles funcionam. Podemos ver que a tríade pode emergir como um sistema em que o grau dos homens jovens está presente, aguardando sua entrada no grau de homens maduros, e onde há um grau de homens idosos que são precedidos pelos homens maduros. No sistema que é especialmente esclarecedor para o caso Indo-europeu, há quatro classes, uma formando pela classe dos homens jovens, duas formadas por classes de homens maduros e uma formando uma classe de homens idosos. Essa base sugerida vai muito longe para explicar como podemos encontrar conjuntos de três e quatro que não são contraditórios, mas são simplesmente expressões de diferentes aspectos do todo. [Tal ênfase uma classificação “etária” tem seu valor enquanto base, sob uma perspectiva acadêmica, mas mesmo nela, insistir nisto visando “relativizar” a estamentação social histórica, talvez demonstre mais preconceitos modernos igualitaristas do que outra coisa. No plano metafísico, ou seja, “interno”, temos um valor similar que, ao invés de “enfraquecer” a tripartição, a fortalece por meio de revisões de outra ordem.]

Um sistema de faixa etária, além de ser um dos modos de organização da sociedade, estabelece categorias que podem ser aplicadas fora do contexto imediato da faixa etária. As qualidades dos estágios etários da juventude, maturidade e velhice poderiam ser abstraídas e, portanto, essas qualidades poderiam ser aplicadas em diferentes contextos, como alternâncias ou gerações [novamente, raciocínio acadêmico de “baixo pra cima”, o metafísica seria na direção oposta]. De maneira útil, elas também podem ser categorizadas por cor e, no caso indo-europeu, como Dumézil apreciou, a tríade é a de branco para homens idosos/o sagrado (a primeira função duméziliana), vermelho para homens jovens/força física (segunda função) e preto para homens maduros/fertilidade e prosperidade (terceira função). A tríade também era expressável em termos de corpo humano, como o irlandês Lugaid das Rubras Listras que tem uma cabeça como a de um de seus pais, Nar, o torso como o do seu segundo pai, Bres, e a parte inferior do corpo como a do seu terceiro pai, Lothar. Ter uma imagem como essa disponível é uma indicação de quão rico é o material celta sobrevivente em conteúdo cosmológico. Em termos do conjunto completo do panteão discutido abaixo, a tríade duméziliana ocorre duas vezes, uma vez no nível dos deuses antigos, que se aplicaria a Nar, Bres e Lothar, e novamente no nível dos jovens deuses na geração seguinte.

A cápsula de quatro gerações e as expressões celtas da teogonia

Como os deuses são imaginados com base no mundo humano [novamente, diríamos o contrário], o panteão será organizado de acordo com as redes humanas. A principal rede em qualquer sociedade humana é a do parentesco, mas, no caso Indo-europeu, isso é complementado pela sucessão real. É uma característica marcante do sistema cosmológico Indo-europeu sua centralidade na soberania, e o foco na realeza é muito evidente no material irlandês. Argumenta-se aqui que a soberania se originou de uma fonte feminina e que uma das mudanças diacrônicas a serem levadas em conta é a da mudança para um foco patrilinear que, no entanto, não conseguiu apagar os traços do sistema matrilinear mais antigo no caso de várias histórias celtas, como, por exemplo, aquelas mencionadas por Carey no capítulo 2 [a autora, admite mais pra frente, considerar algo da hipótese questionável de Marija Gimbutas, apesar dos pesares].

É digno de nota que todo o esquema centrado na soberania bate com o bloco de quatro gerações do genuíno clã celta comum, que possui equivalentes na Grécia e na Índia e, portanto, que pode ser facilmente considerado como possuindo uma extensão Indo-europeia. Este grupo de parentesco não recebeu a atenção que merece, mas a crescente conscientização de tal relação neste período de quatro gerações para a extensão da memória comunicativa, através do trabalho de Jan Assmann e outros, provavelmente fará sua relevância no estudo de uma sociedade oral pré-histórica mais aparente. O bloco cobre a atual geração adulta e três antes dela, e se estende a primos em segundo grau. No material histórico, o grupo é patrilinear, mas uma forma matrilinear anterior deve ser posta para explicar os traços de sucessão através das mulheres.

Falando da grande extensão de tempo na pré-história humana, Robin Fox observa o uso recorrente de um padrão de duas ou quatro gerações, que mantém a cultura constante por longos períodos. A estrutura Proto-Indo-europeia evidentemente diz respeito ao mais amplo dos dois esquemas, se estendendo a quatro gerações.

Ao explorar como a realeza conseguiu se legitimar nas sociedades orais, Mary Helms apontou a necessidade de evocar uma fonte sobrenatural para reforçar a autoridade humana e considerou as duas possibilidades, que são a de uma fonte ‘externa’ no espaço ou de uma fonte ‘atrás no tempo’ através da linha de ancestrais. A sociedade em estudo evidentemente mapeou sua estrutura de descendência real até a profundidade de quatro gerações, e isso, por sua vez, formou a base humana sobre a qual o panteão foi construído.
Os mitos se baseiam em uma sólida, realidade atávica. Como Russell T. McCutcheon observa:

Os mitos… são absolutamente mundanos e atribuir-lhes um status “extraordinário” como condição prévia para estudá-los corretamente é começar nosso estudo com um erro que nos desvia de um objetivo acadêmico mais interessante e produtivo: empreender o difícil estudo dos mecanismos pelos quais sociedades criam o extraordinário a partir do cotidiano.

Em termos do extraordinário, do nível sobrenatural presente nas narrativas, os deuses vem-a-ser em quatro gerações, e o nascimento e a sucessão são ambos levados em conta nas narrativas célticas. Os humanos correspondentes no arranjo biológico são centrados no jovem ego macho, o rei. As pessoas relevantes propostas no modelo são sua avó, o pai de seu pai, seu pai, seu tio materno, seus dois irmãos, sua esposa e os dois irmãos dela. É proposto que este arranjo decimal de humanos corresponde ao panteão. A figura chave do rei no panteão céltico pode ser identificada no contexto irlandês como Lug e no galês como Lleu.

Embora muito da evidência para o mito seja medieval, Patrick Sims-Williams indica a tenra presença subtil de materiais nos séculos onde havia muito pouca informação direta, assim promovendo um canal de continuidade. Ele comenta:

É inimaginável que a língua céltica tenha existido in vacuo, sem nenhum conteúdo cultural (tal como a literatura e a religião). A facilidade de comunicação promovida pela língua comum tenderia a ajudar a espalhar e/ou manter características culturais comuns, como implícito no amplo culto de divindades como Lugus ou no fenômenos do druidismo.

Aparentemente, o fenômeno do druidismo foi responsável pela retenção excepcionalmente forte no período de letramento de materiais que tiveram um lugar natural na cultura oral [e que, também poderíamos considerar, onde o Druidismo não teve vez como sistema integrado e “internacional”, como parece ter sido o caso do Druidismo Galo-Britônico, como na Ibéria, talvez isto tenha consequências em diferenças sutis na interpretação do “panteão”]. A figura bem representada do jovem rei Lugus está clara e centralmente presente na tradição irlandesa e galesa. Como Lugaid das Rubras Listras, ele sucede a seu avô Eochaid Feidleach após a rebelião de seus três pais; como Lug, ele se torna o terceiro rei, seguindo positivamente o primeiro rei, Núada, e antagonicamente o segundo rei, Bres; e como Lleu. ele é um rei na terceira geração de machos no Quarto Ramo dos Mabinogi.

A afirmação acima diz respeito às três gerações de machos que, de acordo com o modelo, são precedidas por uma fêmea, e vale a pena fazer uma pausa e considerar a adaptação necessária à apresentação da deusa primordial quando as histórias são contadas em termos humanos. Não há uma afirmação clara de que os membros do panteão descendem de uma única deusa, mas Anu é chamada a mãe dos deuses. Essa afirmação ocorre isoladamente e os nascimentos a partir dela não são detalhados. De acordo com o modelo, a deusa primeva é a primeira a sós e dá à luz a um homem, o ‘primeiro rei’, que se torna seu consorte [a autora assume este ponto com uma segurança impressionante, que de minha parte não parece justificada, além de que ela parece ignorar por completo os relatos de forças primordiais antagônicas, perpétuas e “impessoais” presentes em diversos mitos originários Indo-europeus, como a oposição entre o “Gelo” e o “Fogo” entre os nórdicos, que parece ter sido, entre os Celtas a julgar por um comentário de Estrabão, entre “Água” e “Fogo”]. A deusa dá à luz novamente neste momento aos dois filhos do primeiro rei (esta é a geração de Nar, Bres e Lothar, dos quais Nar é entendido aqui como um duplo de Eochaid Feidleach, o primeiro rei). Na fase final, ela dá à luz ao jovem rei e a outros cinco nesta geração. O nascimento de Lugaid das Rubras Listras é apresentado isoladamente, mas no Quarto Ramo dos Mabinogi temos um conjunto completo de seis, incluindo, inclusive, os nascimentos dos gêmeos, Lleu e Dylan, e da tríade masculina, composta por Hyddwn, Hychdwn e Bleiddwn, bem como a criação de uma mulher, Blodeuwedd, como esposa e rainha para Lleu.

A capacidade da deusa primeva de dar à luz repetidamente ao longo de várias gerações não pode ser espelhada em histórias sobre humanos; portanto, as histórias tratarão da realidade humana e incluirão um nome de deusa na geração imediatamente anterior a do dos deuses jovens, como no nome de Clothru, a mãe de Lugaid das Rubras Listras. O fato das histórias serem contadas em termos humanos pode ser visto como responsável pela perda de uma conexão direta com Anu.

Resumindo: antes que uma maior consciência do tempo histórico fosse possível através da escrita, as pessoas viviam em grande parte dentro de um mundo temporal atado a um período relativamente curto, que geralmente não passava de quatro gerações [que se pensarmos em termos calêndricos, corresponderia a 4 ou 5 ciclos metônicos, que formariam o “século” básico, digamos]. O bloco de quatro gerações pode ser acessado através da memória comunicativa, que obviamente tinha o poder de reforçá-lo. A injeção da soberania na mistura, e a necessidade sentida de legitimar a autoridade da realeza por apoio sobrenatural, levaram ao entendimento de que a profundidade temporal incluía ancestrais dinásticos, que transmitiam autoridade sobrenatural ao rei. Não é inadequado estabelecer uma conexão com a mais conhecido de todas as teogonias, a Teogonia de Hesíodo, e ver as quatro gerações como aquelas de (1) Ge (terra e mulher); (2) seu filho Urano (firmamento); (3) seu filho Cronos; e (4) o filho de Cronos, Zeus. Claramente, Zeus é entendido como uma figura culminante e, como foi indicado, isso também pode ser dito de Lugus. Embora o padrão completo não esteja disponível em nenhuma história celta, podemos propor como a linha de nascimento e sucessão: (1) Anu (mulher); (2) Eochaid Feidleach/Nar/Núada (cabeça, firmamento, primeiro rei); (3) Bres (parte superior do corpo, céu, segundo rei); (4) Lugaid das Rubras Listras/Lug (totalidade tripla, terceiro rei). Um elemento importante presente tanto nos materiais gregos quanto nos celtas é a oposição entre Cronus/Bres e seu antecessor e sucessor.

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