Pensamentos de Fim de Inverno

Créditos da imagem: (http://ironageportugal.blogspot.com/2013/02/espada-de-antenas-tipo-alcacer-do-sal.html?m=1)

O clima mudou bruscamente aqui no Sul, um dia estávamos com mínimas próximas de zero, dois dias depois, com máximas próximas de 30. Agora no meu quintal a macieira e a laranjeira já estão florindo e as noites são cheias de insetos. Mas eu não entrei no clima da Primavera, para mim ainda há considerações cinzentas que eu gostaria de dividir com o leitor.

Deixe-me começar assim: Quem disse que os mortais nascemos para ser felizes?

Provavelmente só nascemos para viver com nossos fardos, buscando cada qual cumprir seus 12 trabalhos, e, em nossa medida diminuta e insignificância sermos, ao menos, heróis de nós mesmos, cumprir com nossa missão pessoal, que os deuses confiam, têm a intensidade da nossa capacidade.

Diz a acepção moderna que “tudo é mais belo porque estamos condenados”, há quem sugira que os deuses nos invejem. Eu duvido. Mas é possível que o brilho da combustão breve dos nossos sentimentos em um espaço tão limitado e irrisório de tempo, como é a existência mortal, chame, de alguma forma, a atenção, por vezes a piedade ou a admiração dos deuses cuja Numen compõe as motivações das nossas ações, dores, alegrias e medos.

Nós nascemos para morrer, quanto a isso não há dúvidas. E junto com a morte a única certeza na vida é a de respirar, e até isso dói quando é feito pela primeira vez, e na dor de nossas mães nascemos. Fato é que se vivermos um pouco já podemos portar em nossos ombros algumas responsabilidades, e se vivermos um pouco mais, fazemos escolhas que envolvem os nossos destinos e o de outras pessoas, às vezes inocentes, com ombros pequenos demais para ser justo permitirmos que dividam conosco as consequências de nossas escolhas.

Se o fardo dos superiores é ter de suportar os inferiores, o que define a nobreza é a disposição daquele que, se percebendo superior, dispõe-se a ajudar a carregar os fardos dos mais fracos, ou pelo menos a abdicar de suas ambições  e realizações pessoais para guiar aqueles que necessitam. O custo pessoal da nobreza de caráter é alto, por isso mesmo tem valor. Podemos passar anos, décadas de nossas vidas, achando que não, achando que para nós estes trabalhos são facilmente realizáveis, e somos mais fortes e virtuosos do que a maioria das pessoas. Mas calma, dê tempo ao Senhor do Tempo, e ele vai caucular, como faz com o destino de todos os mortais, uma maneira de mostrar que você é só mais um, falível, breve, perecível, frágil e vulnerável, que nasceu somente para cometer o mínimo de erros possíveis, e executar sozinho seus próprios trabalhos, sem nenhuma recompensa além de, na melhor das expectativas, não carregar nos ombros, após a morte, um novo fardo: o arrependimento.

Se, todavia, a experiência de viver puder ser, para você, a oportunidade de exercer alguma forma de bravura, de aceitar algumas pedras a mais nas suas costas, e tentar e conseguir erguer-se de novo e continuar caminhando, é possível que o resultado final seja o forjamento de um espírito nobre, em ridícula mas verdadeira medida, heróico. Um heroísmo humilde. E não tenha dúvidas, em algum momento, seu calcanhar vai faltar, você vai conhecer suas fraquezas. Se você sobreviver, espere mais um pouco, que em outra oportunidade seus joelhos vão inflamar, ou sua coluna vai entortar, e aí então você vai largar o fardo e fazer a passagem final. Para toda geração de folhas haverá um inverno.

Outro dia comentava com alguém que o meu fascínio pela Ilíada está na glória imorredoura, construída ao longo de toda uma existência, mas culminada no ato de agarrar Kairós pelos cabelos no momento da própria morte. Será que nós, joguetes de Kronos, podemos agarrar Kairós, o momento oportuno? É uma ambição muito mortal pensar que, já que somos invariavelmente condenados, nossa existência pode ser dedicada a imprimir na história de nossa gente um exemplo ou melhoria e, fazer de nossa miséria, a nossa morte, um momento excelso no qual não somos somente pequenos heróis ou anti-heróis de nós mesmos, mas heróis para toda a árvore da qual viemos e para a qual retornaremos – a árvore que contempla as folhas que vieram antes de nós, em primaveras passadas, e que contemplará, em primaveras futuras, se fizermos de nossos fardos a sobrevivência e segurança dela, outras folhas por vir.

O que fazer com o pouco tempo que nos é dado? Ser feliz é ainda mais difícil do que ser valente, então esqueça. A perecibilidade de nossas curtas existências só faz sentido se nos vemos de fora e contemplamos a árvore completa, se reconhecemos a história dos nossos ancestrais como parte integrante do destino que nos coube, e este como parte definidora do destino dos que ainda não brotaram. O que fazer de realmente significativo se não procurar ser útil, em vida, à saúde e segurança da árvore? É uma constatação espiritual e ao mesmo tempo prática, e neste sentido, material, da vida e do curto tempo de que dispomos. Diz-se que a mesma quantidade de energia que se gasta cultivando a auto-comiseração, é a que se pode gastar edificando a fortaleza interior. Acreditando nisto, urge reconhecer o inverno que está sempre à espreita de cada um de nós, e do conjunto de nós, a nossa gente. Quanto antes admitirmos o inverno da nossa civilização, antes seremos capazes de zelar por ela. Urge também vigiar ao momento oportuno, para não desperdiçar o curto tempo que nos é dado, e lançar as bases para uma nova primavera.

Todo desenvolvimento pessoal é ao mesmo tempo familiar e tribal. Em tempos de dificuldade toda ascese deve levar consigo a árvore, a sua genos. Todos nós precisamos indagar o que os deuses esperam de nós, e como nos cabe contribuir com a Ordem, seja lutando, carregando água, elevando o moral e o espírito, ou como for. E eu quero crer, porque sou uma pessoa de fé, que no presente já há entre nós muitos Aristos Akhâion. Quero crer no retorno do “Once and Future King”, do “Dom Sebastião”, que muitos de nós somos como espadas outrora sacrificadas e depositadas no leito de rios e lagos, mas que temos sido resgatadas e aqui colocadas com a missão de enfrentar tempestades fortíssimas que agridem a árvore sagrada.

Eu oro ao Deus Tronante, ao Herói Divino e ao Deus da Guerra que estejam do nosso lado e nos guiem como fizeram com os nossos ancestrais, que nos dêem clareza para apaziguar as ambições pessoais e colocar o bem coletivo acima do individual, e dêem forças aos Aristos para que sejam vitoriosos, e das mais profundas raízes continue vindo aquilo que nos caracteriza, e a árvore sobreviva à tempestade, porque, receio, está cada vez mais perto o momento em que a guerra e a morte cairão sobre os nossos ombros.

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