[Tradução de trecho do capítulo A Origem da Deusa Vênus, da obra Pietas de H. Wagenvoort. Página 167 a 172.]

[…] é de pronto aparente quanta importância Schilling dá à etimologia da palavra venus com todas as suas variações, que ele escreve, “Vênus protetora dos jardins é tão helênica quanto Minerva protetora das oliveiras”. “Característica pungente: Varron transmitiu na mesma fórmula a herança autêntica da Vênus latina; não é como crê Wissowa, não é na fábula helênica da deusa dos jardins, mas no verbo adveneror …” logo ele passa a considerar a palavra venus e suas semelhantes, perfazendo, por meio de princípios fundamentais, duas observações gerais. Eis a primeira: “Antes de tudo as pesquisas não pretendiam fazer um estudo exaustivo das palavras da família venus: elas indicaram a aproximação principal venus, venia, venerari, venenum, negligenciando termos mais particulares como venenatum, venerium. Historiadores da Religião não se contentariam com a simples aproximação das palavras agrupadas em nome de sua similaridade etimológica: há que se estabelecer um inventário tão completo quanto possível das palavras derivadas da mesma raíz.’
“Um inventário tão completo quanto possível” – aqui eu devo fazer uma pausa, quase paralizado de espanto. Quantas centenas de vezes ao preparar este livro deve um autor ser confrontado com as palavras venustus, venustas – ainda que ocorram em passagens que ele mesmo citou. No entanto ele passa sobre elas em profundo silêncio. Porque? Eu tenho pensado e pensado sobre este fato estranho, mas nenhuma razão provável me ocorreu. Estaria ele assumindo a colocação de Latte, que comenta: ‘Venustus e suas derivações não devem ser mais velhas que o século III; a formação do nominativo (em contraste com funestus) aponta para uma data mais recente. […] Esta é uma adição de Latte ao argumento de Schilling, ao qual ele refere-se brevemente com aprovação. Parece que ele percebeu a lacuna e procurou preenchê-la por si mesmo. Mas primeiramente , se fosse esta a opinião do próprio Schilling, ele não a teria escondido de nós. Segundo, conforme veremos mais tarde, o raciocínio de Latte estava incorreto. Eu pensei em outro possível motivo para deliberada reticência mas logo descartei. As palavras venustis, venustas, e aquilo que podemos chamar de sua história semântica são menos favoráveis da forma como as vejo, para as interpretações propostas por Schilling ou ao menos para algumas delas. Mas o livro oferece instâncias de tal perspicácia, tal ingenuidade, que eu não tenho dificuldade em rejeitar esta noção menos crível. Somos deixados, então, com um enigma.
É quase generalizada a opinião, hoje em dia, de que o nome da deusa evoluiu do substantivo venus, veneris, indicativo de alguma forma de força oculta. Schilling não pensa diferente. Em pré-julgamento ele traduz o nome como ‘charme’, nodatamente – um ponto que ele repete dali em diante – uma certa qualidade mágica do mundo. Eu só posso aplaudir. Não é com frequência que a escola francesa que pelo contrário fez contribuições excepcionais para com a história da Religião Romana, pode ser persuadida de que a magia florecia em Roma, não a absurda e entediante magia que viria muito depois a invadir a Itália (assim como outros lugares) vinda do Oriente, mas simples, quase natural magia, sem muito conteúdo científico mas mesmo assim aqui e ali de certa forma carregando as sementes da ciência.
Na primeira passagem ele coloca, lidando com a palavra venerari, Schilling deriva veneror de *venes-o(r), corretamente em minha opinião, embora não fizesse nenhum mal gastar algumas palavras em apoio a esta etimologia. Pois a visão adiante posta por Wackernagel não é de forma alguma absurda. ‘Com van ‘implorar, homenagear’, ele escreve, ‘pertence o Latin venerari, que tem um pouco a ver diretamente com Venus assim como generari com genus. Ambos verbos, como e.g. também tolerare, recuperare, lamberare, parecem ser puramente deverbalia.’ Enquanto se refere ao verbo generare eu concordo. Enquanto se refere ao verbo venerari, fica imediatamente aparente porque, após longa excitação, eu penso diferente. Este verbo é traduzido por Schilling como ‘exercer a venus’, ‘praticar o charme religioso’. Mas se você perguntar como, se o verbo for assim traduzido, isto então vem, para governar um objeto no acusativo, não se tem nenhuma resposta própria. Após ele mesmo ter adicionado vários exemplos, como Plauto. ‘Nunc Venerem hanc veneremur bonam ut nos lepide adiuerit hodie’. Deos deasque veneror qui hanc urbem colunt / ut quod de mea re huc veni rite venerim‘, e assim por diante, ele procede, ‘Em todas essas expressões, somos levados a traduzir a expressão veneror ut (ne) como “eu peço pela graça de (…)”‘, e um pouco mais adiante ‘é provável que o verbo tivesse em sua origem um valor mais mágico do que reverencialista. Veneror ut: “eu utilizo o charme religioso para obter” (note que até agora o acusativo não foi explicado), “eu intenciono conseguir”, “eu procuro tornar propício”, “eu venero”: o verbo teve de traduzir as nuances sucessivas após o apelo mágico primitivo até o tom da pura oração”. Esta última é a mais correta. Mas ninguém deixará de notar que em sua tradução posterior há um preparativo para o acusativo do objeto (e.g. ‘eu busco ganhar’ sc. o deus) apenas de tal forma que a força mágica do verbo desapareça completamente. Se eu não estiver de todo errado, a origem da palavra precisa ser explicada de outra maneira.
Venerare (-ri) em sua formação pode ser comparado com verbos como animare (i.e. ‘equipar com uma mente’, ‘transmitir uma mente’ ou ‘fazer com que cresça’), coronare, figurare, onorare, e muitas outras. Portanto venero(r) não é, como Schilling diria ‘eu exerço minha venus,’ e sim ‘eu aumento a venus do deus’, ‘eu preencho o deus com venus’. Que significa quase o mesmo a começar com mactare (mactare deos extis). Pois em tempos anteriores os romanos acreditavam que não somente o sacrifício mas também orações tinham esta função. Posteriormente, como é comum, quase todo o entendimento de tal função desapareceu. Tudo o que restou foram alguns vagos traços de memória, como entre nós algumas pessoas mais educadas têm o costume de dizer “abençoado seja”! Para aqueles que desdenham e não conhecem mais do que Plínio, o que estamos realmente dizendo, ou quando há um zumbido em nossas orelhas e dizemos brincando, como eles faziam na Roma Antiga, que alguém está falando de nós, não fazemos ideia de que em suas origens esta maneira de falar estava repleta de magia. A situação é similar, se eu não estiver enganado, quando se lê em Valerius Flaccus ‘dê vinho e oracões’ que diz-nos para fazer de nossas orações um presente para o deus junto com nosso sacrifício, ou de novo quando lemos em Virgílio ‘Iunonni fer rite preces‘, onde Sérvio Danielis coloca: ‘fer preces‘ assim como dizemos ‘sacra ferri’! Pfister resumiu a matéria corretamente: “o propósito energético da oração originalmente consiste no fato de que um ato bom está sendo feito para a divindade, cujo ser é portanto fortalecido’. Assim quando Accius escreve:
‘Te sancte venerans precibus, invicte, invoco, portenta ut populo patriae verrucent bene’
Os verbos venerans e invoco (para ambos os quais te funciona como objeto) não se repetem um ao outro. Ele poderia ter escrito ‘venerans donis‘ ou alguma frase assim. Se ele estava de fato consciente do ponto é uma questão difícil para nós decidirmos, porque não há dúvidas de que ele estava usando uma fórmula antiga e fixa.
Com o lapso de tempo o zelo pela oração de fortalecimento pela acumulação de palavras vêm a significar o mesmo, assim como o desaparecimento gradual da idéia de magia, fazendo com que venerari viesse a significar o mesmo que precari. Também é relevante que as palavras preces e precari estavam sempre em uso não apenas no diálogo natural entre duas pessoas, mas também ao se referir aos deuses. Schilling escreve: assim como veneror é reservado ao culto divino, em toda a antiguidade, o emprego de precor aparecia também no teatro de Plauto, quase exclusivamente no domínio do profano. Por conseguinte, o emprego de precari se expandia para as questões endereçadas aos deuses’. No entanto, ao contrário, me parece óbvio que a única diferença entre venerari e precari em tempos Republicanos é que venerari era apreendido como mais elevado em estilo. Portanto não é surpresa descobrir que precari era muito mais comumente usado no dia a dia do que venerari e de sete exemplos Plautinos apenas um tinha conotação religiosa. Mas o próprio Schilling adiciona fórmulas de consagração e evocação. Em ambos se lê ‘vos precor, veneror, veniam peto‘, um acordo que testemunha a tradição que permaneceu intacta desde muito cedo. E mais ‘precor veniam petens, uti quae <ego> egi ago axim verrucent bene’; ‘Te sale nata precor Venus’; ‘Iane pater, te hac strue ommovenda bonas preces precor, uti…’; ‘Deos ego omnis ut fortinassit precor’; ‘divos ture precemur’ onde precari me parece ter se construído no modelo do verbo venerari, conforme mencionei acima).
Mas se tivermos corretamente decidido que deum venerari propriamente significa ‘prover a divindade com venus, aumentar a venus da divindade’, a questão que se levanta é se esta *venus era atribuível somente a deuses ou também a homens. Parece que a segunda alternativa era aquela adotada por Schilling pois é claro que na opinião dele o sentido original do verbo era ‘operar a venus’. Eu de fato concordo com ele mas por uma razão diferente. O adjetivo venustus, ao qual já nos referimos, completamente ignorado por Schilling, é sem dúvida muito antigo. Contudo não se pode negar que adjetivos com a terminação -ustus parecem mais recentes do que aqueles com -estus (funestus, modestus, scelestus, faustus < faves-tos, iustus < ioves-tos, e assim por diante). Mas se este for o caso, também o é de que o que temos de ver aqui é uma formação sufixal que divergiu muito antes da memória humana.