[Tradução por Marcílio Diniz ‘Nemetios’ das páginas 12 a 18 do livro ORLIN, Eric M. Temples, Religion and Politics in the Roman Republic. Boston/Leiden: Brill, 2002. Omitimos as notas de rodapé e inserimos comentários nossos no texto entre chaves]
Alguns estudiosos se contentam em esboçar a existência de deuses estrangeiros em Roma sem fazerem qualquer tentativa de explicar sua presença. A maioria, no entanto, tem procurado maneiras de explicar a tendência romana de adicionar deuses novos ao seu panteão. Georg Wissowa, o primeiro grande estudioso da Religião Romana, arguiu que este fenômeno fora parte integral do sistema religioso romano. Nesta visão, a chave para a tolerância do politeísmo, como praticado pelos romanos, era não ofender nenhuma reivindicação legal divina. Ele propôs que o crescimento da hegemonia de Roma a pôs em contato com outros deuses e fez suas existências conhecidas aos romanos, os romanos tinha de fazer um esforço para propiciar tais deuses em adição a seus próprios. Estes deuses tinham “direito” a culto tanto quanto os deuses romanos tinham; de modo a evitar uma brecha na pax deum, os romanos dedicaram templos a deuses estrangeiros e aceitaram seus cultos em Roma. Alguns casos parecem bater com esta teoria, mas o argumento incorre em significante dificuldade. Os romanos não reconheciam a reivindicação divina em qualquer deus que encontrassem, mas ao invés, estes eram escolhidos a entrarem no círculo religioso. Alan Watson mais recentemente propôs uma sumarização mais apta das opões que os romanos encaravam quando diante de um culto estrangeiro:
Um de duas respostas oficiais era possível. Ou a religião ou ritual estrangeiro era aceito pelo estado e incorporado como parte da religião oficial, ou a prática estrangeira ou a própria religião estrangeira era declarada criminosa, independentemente dos excessos associados com ela. Ambas as posições mostram uma longa história em Roma. O que era aceito dependia da época e da natureza da religião.
O simples fato de encontrar um culto estrangeiro não era razão suficiente para o introduzi-lo em Roma. A resposta de Watson muda o foco para a determinação da natureza da religião permitida em Roma e para os momentos que demandaram sua introdução. Esta linha de análise completa, por sua vez, não toma nota das deidades não-estrangeiras a quem foram dedicados templos em Roma durante a República, e estas, de fato, são mais numerosas que as deidades estrangeiras. Qualquer tentativa de explicar a introdução de novos cultos em Roma precisa explicar todos os novos deuses, e não somente os estrangeiros.
Muitos estudiosos acreditam que os Romanos introduziram novos cultos a partir do sentimento de insegurança, de que seus próprios deuses não era mais suficientes. W. W. Fowler, em sue clássico ‘Religious Experience of the Roman People’, escreveu que a história da Religião Romana durante a República era:
Da gradual descoberta da inadequação de sua antiga e formalizada religião em dar conta do que nós poderíamos chamar de experiência religiosa; pois com as dificuldades e perigos enfrentados pelo povo romano em seu extraordinário avanço sobre o mundo, e com as novas ideias de religião e moralidade que surgiram com o curso de seu contato com outros povos.
Esta teoria é similar a de Wissowa no que envolve o contato com os deuses estrangeiros, mas põe ênfase na noção de que tal contato revelava fraqueza no sistema religioso romano. Esta linha de interpretação tem influenciado poderosamente discussões sobre a Religião Romana. Trinta e cinco anos depois, J. Bayet escreveu numa pegada similar que:
Se cada ação individual mostrava a necessidade de se referir a uma energia sobrenatural, as emergências sociais e coletivas – sempre as mesmas, guerras, pragas, fomes, terremotos; e sempre insuficientemente esconjuradas – requeriam o recurso a novas divindades, cuja nova força propiciava as rotinas religiosas mais antigas.
Tanto Fowler quanto Bayet, e outros também, argumentam a partir da suposição de que os romanos introduziam novos deuses de uma posição de fraqueza, a partir da qual os novos deuses significavam o fortalecimento de um sistema religioso que constantemente se tornava decrépito. O tom moral evidente em tais análises, que vê o desenvolvimento da Religião Romana como uma degradação de um estado puro e primitivo, toma parte em uma visão progressista que explica a ascensão da Cristandade como uma resposta a uma necessidade espiritual que a Religião Romana não mais supria; tal posição não tem mais como ser sustentada.
Um dos principais problemas com esta visão reside no fato de que a tendência a absorver novos cultos é inerente a Religião Romana e presente desde o começo. Os romanos romanos não possuíam nenhum culto que poderiam chamar de verdadeiramente seu, exceto, talvez, pelo dos Penates que Enéas supostamente trouxe consigo da fuga de Troia. Todos os outros cultos, incluindo o da Tríade Capitolina, de Júpiter, Juno e Minerva, que jaziam no coração da religião estatal, fora tomado de povos vizinhos. Mesmo se fizermos concessões para considerar os Etruscos como sendo parte do poder dominante na Roma primitiva, não contando as divindades etruscas como estrangeiras, o primeiro século da República viu a introdução de dois cultos que eram gregos na origem: o de Castor e Pólux que receberam um templo em 494 e o de Apolo que recebeu um templo em 431 [a.e.c]. O culto de Hércules, que de acordo com Lívio era celebrado com rito grego, aparentemente remonta a um tempo mais antigo ainda; para a fundação da Ara Máxima associada ao rei arcadiano Evandro, supostamente contemporâneo de Enéas. Em vistas destes breves exemplos, não se pode manter que a introdução de deuses novos ou estrangeiros seja um fenômeno posterior que indique uma crescente deficiência do sistema religioso romano. Ao contrário, este processo deve ser considerado um sinal de saúde, uma indicação de que a Religião Romana está funcionando normalmente.
Um estudo mais recente de J. A. North enfatizou que em muitos casos deveríamos ver a introdução de novos cultos como um sinal de força, não de fraqueza. A aquisição de novos cultos parelha com a aquisição de poder e de terra; assim como Roma fora fortalecida pela aquisição de novos territórios e cidadãos, também seria fortalecida pela aquisição de novos deuses ao panteão. Ao invés de ser algo feito para renovar uma religião moribunda, a adição de novos deuses funcionava como uma demonstração consciente do poder crescente de Roma. O estabelecimento de um culto estrangeiro em Roma servia como uma marca da dominação romana do país de origem da deidade; mesmo suas divindades tinham sido trazidas para Roma. Por exemplo, a evocatio de Juno Rainha em 369 [a.e.c.], quando os romanos instalaram a Juno dos Veii em um novo templo na colina Aventina, pôs o selo final na erradicação romana dos Veii. A captura da deidade e seu estabelecimento em Roma servia como símbolo para a sujeição do povo a quem a deusa devia supostamente proteger: a dominação de Roma estava tão completa que ela havia se apropriado dos deuses dos Veii. É significativo que as duas cidades, além dos Veii, a quem mais frequentemente se pensa ter ocorrido uma evocatio são Volsinii e Cartago, ambas inimigas mortais de Roma, subjugadas e completamente destruídas somente depois de uma longa e árdua querela. De maneira similar mas de um modo menos belicoso, o erguimento de um tempo a Diana em Roma, atribuído a Sérvio Túlio, indubitavelmente significou o simbolismo da transferência do poder na Liga Latina de Arícia para Roma. A recebida destes deuses em Roma era um sinal da força romana em absorvê-los, e as comunidades às quais protegiam, na esfera romana.
Ambas as abordagens, o modelo da “fraqueza” e o da “força”, possuem alguma validade, uma vez que ambas possuem exemplos que as recomendam. Ainda que ambas sejam seletivas em somente explicar um número limitado de cultos, e em seus esforços de construir um modelo coeso, ambas deixam de lado o núcleo da Religião Romana como os romanos mesmo via. A essência da Religião Romana era manter a pax deum, o favor dos Deuses [que, grosso modo, no restante do mundo Indo-Europeu, corresponde ao alinhamento a ṙtā, ao Dharma, a defesa da “Árvore do Mundo” como chamamos cá, etc.]. As descrições de Lívio dos ritos religiosos mostram claramente que a manutenção da pax deum era essencial para o crescimento do estado romano, e em diversas ocasiões esta ligação é feita explicitamente. Por exemplo, quando os romanos estavam para embarcar na guerra contra Perseu, o Senado decretou que “os prodígios devem ser expiados e a paz dos deuses colhida por meio de preces” [“prodigia expiari pacemque deum peti precationibus” in. Liv. 42.2.3]. Todo rito e ritual na religião romana era dirigido para assegurar este favor, incluindo a famosa necessidade romana pela performance pontilhista destes ritos e rituais. A passagem mais famosa sobre a execução apropriada dos rituais vem de Plínio, o Velho:
Vemos que os magistrados mais elevados focam-se com precações fixas e não deixam uma palavra sequer ser omitida ou deixada fora de lugar; um leitor primeiro dita, outro é apontado guardião para manter vigilância, outro é apontando para ordenar estrito silêncio, e um flautista toca, de modo que nada mais é ouvido.
Se um erro acontecesse durante a performance de um ritual, então toda a cerimônia era repetida em sua integralidade, uma prática conhecida como instauratio. O propósito da instauratio era assegurar que os deuses estivessem satisfeitos com as oferendas romanas; Cicero diz explicitamente que “as mentes dos deuses imortais se satisfazem pela instauratio dos jogos” [“mentes deorum immortalium ludorum instauratione placantur” in Cic. HR 11.23]. Assim, a introdução de cultos novos e a construção de novos templos devem ter respondido a este desejo de alguma forma e servido para manter a pax deum.
Um importante elemento da religião Romana a se ter em mente é que a maioria das ações realizadas pelos romanos para cultivar a pax deum eram capazes de serem interpretadas de duas ou mais maneiras. Mais comumente, ações religiosas serviam ou como um penhor por ajuda no futuro ou como uma expressão de graças por benefícios passados. A supplicatio é um exemplo deste fenômeno particularmente bom, uma vez que em algumas ocasiões este ritual era declarado como uma forma de ganhar o favor dos deuses durante uma situação ameaçadora, enquanto que noutras era declarado como uma ação de graças seguindo uma grande vitória. Para tomar um exemplo antigo, em 463 [a.e.c.] o Senado ordenou o povo a suplicar aos deuses por causa da peste, enquanto que em 449 [a.e.c.] as supplicationes foram decretadas pelo Senado para celebrar a vitória sobre os Sabinos. O voto de um novo templo similarmente poderia marcar um apelo por uma ajuda em um momento crítico, ou poderia expressar gratidão pela resolução bem sucedida de uma crise militar ou civil. Isto é particularmente verdadeiro em relação aos templos construídos seguindo o voto de um general na batalha, pois tais templos serviam a ambos os propósitos; mesmo se o tempo tivesse sido prometido durante um momento crítico na batalha, não seria construído até depois da crise já ter passado, de modo que a construção e a dedicação serviria como oferenda de gratidão pública para o deus que havia respondido ao apelo. Esta natureza dual das ações realizadas para preservar a pax deum desempenha um papel crucial no entendimento das situações nas quais novos templos eram prometidos.
Intimamente relacionado com a crença romana na pax deum está a crença deles de que eram o povo mais religioso do mundo. Cícero escreve “se desejamos nos comparar com os povos externos, veremos que nas demais coisas somos iguais ou mesmo inferiores, mas na religião, que é o culto aos deuses, somos muito superiores” [Cic. ND 2.3.8]. Ele expressa um sentimento similar em mais passagens: “na piedade e religião superamos todas as gentes” [“pietate ac religione omnes gentes superavimus” Cic. HR 9.19]. Nem estava Cícero só nesta crença; outros autores romanos de Virgílio a Lívio evidenciam a crença que Roma devia sua grandeza ao seu cultivo superior do favor dos deuses. Parte deste cultivo superior dos deuses pode ser visto no número de templos em Roma: ter o maior número de templos é uma indicação de ser o povo religiosissimi. Em termos gerais, isto pode ajudar a explicar a inerente tendência romana de introduzir novos cultos, ainda que isto concorra com as mesmas críticas que a teoria de Wissowa; se mais significa melhor, então por que os romanos não introduziram ainda mais deuses? Por que descriminar então? Há outros fatores em ação, e nossa tarefa é delineá-los.
A maneira de começar a atacar este problema é focar nas situações nas quais os novos templos eram prometidos, porque o voto invariavelmente significava a construção de um novo templo. Já foi notado que o voto era o momento crítico para a obtenção do favor dos deuses. Naquele momento, o contrato entre os deuses e os romanos era criado, ou seja, se os deuses agissem de um modo específico, os romanos executariam o ritual específico. A execução real do rito viria após os deuses haverem vindo em socorro. O cumprimento do voto, portanto, não não ajudava a obter a assistência do deus numa emergência, mas era necessário para manter boas relações com a divindade após o fato. A questão do quanto o voto de um magistrado punha o Senado na obrigação de cumpri-lo será tratado no capítulo 2; aqui estaremos preocupados em quais circunstâncias levaram os romanos a prometerem novos templos. Um fato irá rapidamente se tornar evidente: templos eram prometidos sob uma variedade de condições, mas o mesmo conjunto de condições em momentos diferentes não necessariamente produziram o mesmo resultado, ou seja, a construção de um novo templo. Este estado de coisas reflete a flexibilidade da Religião Romana e uma vez mais ilustra a relação íntima entre Religião e Política em Roma.