Ao se aproximar do Iberoceltismo, desde um bom tempo, há, por vezes, uma certa confusão: se tomamos a Hispania no séc. V ou VI da era comum (cristã) se verá um certo panorama geral: apesar de uns 5 séculos de Romanitas há a persistência e mesmo força de certos cultos nativos (pré-romanos: o de Endovélico na Lusitânia, ou o de Berobreu na Galécia, por exemplo), a chegada dos germânicos recém cristianizados (e por isto mesmo, muito pouco cristianizados), além da presença crescente das facciosas seitas cristãs. Inclusive, é bom lembrar, que em se tratando de Cristianismo o Catolicismo só “triunfou” depois do séc. VII: lutou pesado contra o Priscilianismo (que parecia resguardar parecenças com o Pelagianismo, fazendo alguns crerem que trouxesse algum substrato “céltico”, “pagão”) se aliando ao Arianismo (de longe a seita mais forte no séc. V), e depois se voltando contra este último até “extirpá-lo” de vez.
Daí que nós, herdeiros distantes, ao nos voltarmos para as crenças dos tempos pré-cristãos, buscando atarmo-nos novamente a Tradição Indo-Europeia ancestral, podemos fazê-lo de nossa herança hispânica, pelo menos, de 3 diferentes formas no meu ver. A primeira é a que tratamos cá: focando-nos no “Celtismo” pré-romano ou “para-romano”. Há os grandes grupos etno-culturais (celtibéricos, lusitanos e vetões, galaicos, astures e cantabros, vaqueos, túrdulo-celto-carpetanos, além dos propriamente aquitanos/vascões, ibéricos e turdetanos, estes últimos, culturalmente mais influenciados pelos cartagineses e gregos) que em maior ou menor grau, passaram por um processo de romanização intenso – afinal, estou cá, agora, escrevendo na língua romana (modificada no tempo e no espaço, como diria meu professor de latim)!
Talvez por isto mesmo, há uma outra tendência muito forte – especialmente pelo contexto geral de fragmentação acentuada do corpus theologicum et mythologicum de tais povos – de que a saída mais “adequada” seja, não propriamente buscar resgatar a “perdida” e “inacessível” herança pré-romana, mas ao invés, adotar o culto à romana. Neste caso, teríamos a terminologia religiosa, parafernália, vestimenta, língua, etc. Romanas – mas adotaríamos certos cultos, epítetos ou teônimos “nativos”. Aqui se pressupõe uma solução “econômica” e “ortoprática” (afinal, estaríamos, num certo sentido, continuando algo que já fora feito antes), a interpretatio romana guiaria o caminho e iniciativas como a Nova Roma são bons exemplos.
Posso dizer, pelos anos nesta senda, que estas duas abordagens são predominantes, em diferentes maneiras e sob diferentes, e independentes, pontos de partida. Muda-se rótulos, palavras e construções, mas estas diretivas alicerçantes permanecem. No primeiro caso, tenta-se “preencher as lacunas” com o Celtismo ou Druidismo mais amplo (onde é comum uma abordagem hibernocêntrica, apesar de não ser a única) ou com os referenciais IE mais gerais (eu próprio, cada vez mais tenho vindo para esta última e mais geral opção). No segundo caso, meio que se “elimina” o problema das lacunas: adota-se a religião romana e se traz o que há de fragmento nativo mais relevante para a mesma. Cada uma destas possibilidades possui dificuldades e desafios específicos, prós e contras e, no meu ver hoje, são ambas opções válidas, especialmente quando se considera a “equação pessoal” do chamado atávico particular. Mas, em tese, há uma outra possibilidade que, ao menos no Brasil, é muito pouco explorada: a da busca pela “germanidade” emigrada para a Ibéria, ou seja, a opção da possibilidade (suevo-)visigótica.
Se pode dizer, assim penso, que ao menos desde o séc. VI (da era comum) que as elites governantes ao longo da Ibéria, especialmente do centro e norte, são germânicas (incluindo as casas reais posteriores). Suevos e Visigodos já adentraram a península “cristãos” (arianos), mas como já pontuamos, este cristianismo era superficial. Uma olhada num livro clássico (ao final indicaremos alguns) ou em trabalhos acadêmicos nesta temática mostrará como muitas práticas religiosas e a própria mentalidade “pagã” terão permanecido por um bom tempo Medievo adentro. Daí que num país como o Brasil, os interessados em Ásatrú, especialmente se não possuem ascendência alemã (mais comum no sul do país) ou escandinava, o fariam a maneira “suevo-visigótica”, mas não é isso que parece acontecer. E há uma série de fatores para que seja assim: influência cultural midiática norte-americana, ignorância sobre a história da Península Ibérica, etc. Afinal, literatura acadêmica existe (no mínimo, num nível suficiente), o idioma gótico fora preservado em parte (tendo até um alfabeto próprio!) e com o que fora “preservado”, aliado ao recurso ao corpus mythologicum escandinavo, permitiria melhor separar o que seria germânico do que não seria (inclusive auxiliando a identificar o que por ventura seria céltico, ou ainda uma cumulação ou reforço indo-europeu comum) no tapete folclórico que recebemos e sobre o qual há um trabalho etnográfico que pode servir de base.
Um exemplo, a título de curiosidade, reside mesmo na peça agressiva e anti-tradicional do De Correctione Rusticorum do maldoso e fanático cristão húngaro Martinho da Panônia. Lá ele relata, chocado, que o povo continuava a guardar a quinta-feira, abstendo-se de trabalhar neste dia, enquanto parecia não guardar o domingo (como os cristãos fazem). A persistência desta prática pode tanto ter origem “romana” (apesar de não tão forte noutras partes do que foi território romano, o que no meu ver, depõe contra), como poderia ser uma prática germânica, fusionada à tapeçaria sincrética do “paganismo” (de comum fundo e herança Indo-Europeu) do séc. VI e VII. Apesar de, pessoalmente, observar este costume faz anos, faz igual quantidade de anos que suspeito que seja algo mais germânico e adaptado a semana romana do que algo céltico propriamente. Bem, é só um apontamento e um exemplo tímido das possibilidades.
Em tese, é possível sim uma germanismo “iberocêntrico”: suevo-visigótico, utilizando o alfabeto e o idioma gótico (reconstruído quando necessário), um corpo de práticas gerado a partir da herança comum IE, das sobrevivências atestadas e/ou folclóricas e da literatura escandinava ou saxã (quando necessário), sem contar nas referências e heranças presentes nos códices legais (p. ex. Codex Euricianus) e organização militar do passado. Na Espanha me recordo que havia um projeto num blog, o Rueda Solar, creio, que mirava a algo deste resgate visigótico. Há, obviamente, a Comunidad Odinista de España, inclusive, reconhecida legalmente desde os anos 80, creio, que talvez já tenha alguma diretiva nesta direção e que, por desconhecer, eu não estou apto a falar que seria um caminho para os brasileiros de herança hispânica majoritária.
No entanto, gostaria de encerrar este pitaco de buscar algo do “gótico” (em gótico algo 𐌰𐌽𐍃𐌿𐍄𐍂𐌹𐌲𐌲𐍅𐍃 /ansutriggws/ “leal aos deuses”; a título de curiosidade Ásatrú, em gótico parece que seria algo como 𐌰𐌽𐍃𐌿𐍄𐍂𐌰𐌿𐍃𐍄𐌹 /ansutrausti/ vd. LEHMANN, 1986, p. 346-347 e KROONEN, 2013, p. 522-523), especialmente direcionado aos colegas e amigos de fé germânica, com uma sugestão simples de uma bibliografia que creio ser relevante, na minha leiguice do assunto, para os que por ventura se interessarem:
- CHRISTENSEN, Arne Søby. Cassiodorus, Jordanes and the History of the Goths: Studies in a Migration Myth. Copenhagen: Museum Tusculanum Press, 2002.
- COLLINS, Roger. Law, Culture, and Regionalism in Early Medieval Spain. Great Yarmouth: Variorum, 1992.
- _____. Visigothic Spain, 409–711. Oxford: Blackwell Publishing, 2004.
- HEATHER, Peter. The Goths. Oxford, UK: Blackwell Publishers, 1998.
- JIMÉNEZ, Javier Martínez; DIEGO, Isaac Sastre de; GARCÍA, Carlos Tejerizo. The Iberian Peninsula between 300 and 850. An Archaeological Perspective. Late Antique and Early Medieval Iberia 6. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2018.
- KROONEN, Guus. Etymological dictionary of Proto-Germanic. Leiden/Boston: Brill, 2013.
- LEHMANN, Winfred P. A Gothic etymological dictionary. Leiden: Brill, 1986.
- MCKENNA, S. Paganism and pagan survivals in Spain up to the fall of the Visigothic Kingdom. Washington: 1938.
- SIVAN, Hagith. “On Foederati, Hospitalitas, and the Settlement of the Goths in A.D. 418“. American Journal of Philology. 108 (4): 1987. p. 759–772.
- THOMPSON, E. A. The Goths in Spain. Oxford: Clarendon Press, 1969.
- TODD, Malcolm. The Early Germans. Oxford: Oxford University Press, 2000.
- WOLFRAM, Herwig. History of the Goths. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1988.