Sobre Indra e sua Justiça

De uns dias para cá começo a duvidar de que a Ordem, nos moldes como a identificamos e almejamos, exista. Por Ordem o leitor antigo sabe que me refiro a Rta, o próprio Cosmos, universo ordenado. E isto significa que estou duvidando de uma premissa das fés Indo-Europeias, de algo basilar deste conjunto de crenças. Obviamente não estou duvidando que o universo, a matéria, existam, somente que seja possível alcançar e estabelecer uma ordem: simétrica, perfeita. Porque me parece que invariavelmente a injustiça, o feio, o erro, o Caos, acabam por nos encurralar em alguma esquina. Não importa o quanto nos esforcemos para manter a Rta, seja através do Rito ou Aretê – mantendo uma conduta ordenada, que nada mais é do que a repetição, seguir uma tradição. Parece-me que em dados momentos, dentre as opções, não existe uma perfeita, simétrica, bela e ordenada. Me pego questionando se há ocasiões em que a única coisa a se fazer é escolher a menos feia das opções.

Como diz a inscrição de Delos “das coisas a mais nobre é a mais justa”, mas esta frase implica que há várias coisas justas, várias opções justas, e a opção por uma justiça, necessariamente, exclui a outra. De modo que a justiça nunca é perfeita, e portanto, não pode ser simétrica, inteiramente boa.

A alguns meses ocupa minha mente um mito védico em especial, aquele que se refere a como Indra derrotou o outrora Rei dos Devas, e criador da Rta: Varuna. O deus que colocou Surya (Sol) e Meena (Lua) em seu curso, estabeleceu o tempo e a noção de virtude, e se ocupa de verificar, punir e recompensar os mortais por segui-la ou não. Há várias versões de como este mito se deu, eu nem conheço todas, nem tenho aqui a intenção de cobri-las, por isso vou me ater às informações encontradas nos Rig Vedas.

De acordo com esta obra, um certo dragão de nome Vritra, pertencente à raça dos Asuras – que está para os Devas como Titãs para Olimpianos e Fomores para Tuathá dé Dannan – incorrendo em um hábito típico de dragões, fome e ganância, engoliu por completo a deusa Appas, também conhecida como Apah ou Varuni, pois é esposa de Varuna. Ocorre que Appas nada mais é do que Água, toda a água do mundo. O dragão a engoliu e manteve presa em sua barriga dando início a desertificação da Terra: Devas, mortais, animais, vegetais, toda a criação de Brahma estava sob risco de extinção. O Caos tomava o seu lugar.

Como a manutenção da Ordem, da moral e os bons costumes, eram afazeres do rei, os Devas acorreram a solicitar que Varuna a restabelecesse. No entanto, incapaz de demover ou de vencer o dragão, Varuna aliou-se a ele, e passou a contra-argumentar com os Devas que Vritra, coitadinho, tinha o direito de saciar sua sede retendo Appas dentro de si. Indra, que era então jovem* e sem força, ingeriu Soma (néctar da Lua que concede a imortalidade) por três vezes até tornar-se grande e forte o suficiente para derrotar o dragão. Armado então com o seu raio, duelou contra ele e o venceu. Abriu sua barriga e libertou Appas, que jorrou violentamente para reocupar os espaços dos sete rios primordiais. Por fim, Indra destronou Varuna e atirou-o nas profundezas do Oceano, condenando-o a reinar entre seus caros Asuras.

indra e vritra
Na imagem a arma utilizada por Indra é um arco-e-flecha porque as celebrações deste duelo ocorrem no mês de Ashadha que se inicia no Solstício de Verão do calendário Hindu, quando o Sol está em oposição às estrelas de Kaus Borealis e Kaus Australis que se situam no arco-e-flecha da constelação de Sagitário, e que por sua vez marcam o Solstício de Inverno nesta cultura.

Uma das coisas que Indra nos ensina é que não se pode adiar e apaziguar, ser diplomático e consensual sempre: há momentos em que só a ação e a ruptura surtem efeito. Outra das coisas que ensina é que o que faz um líder não é a sabedoria e a graça, ou a manutenção do pré-estabelecido, é a capacidade de resolver problemas, ter iniciativa e coragem. E outra lição inegável é que nada nunca mais volta a ser como era antes: a Ordem nunca volta a se estabelecer nos moldes de antes, em perfeição. Não se mata um dragão sem espirrar sangue, fogo e destruição: a justiça não é bela. A justiça é intempestiva como o raio de Indra, é feia, pois sempre impõe alguma violência e restrição a quem desequilibrou o universo, e sempre leva, lava e destrói algo em seu curso, como as corredeiras dos rios.

A justiça não pode ser inteiramente justa, porque não é simétrica. Alguém sempre sai prejudicado, e é por isso que a Ordem parece apenas um horizonte a se buscar. Como se tentássemos pegar o Cosmos e encaixá-lo numa fôrma, mas sempre haverão algumas arestas, sobras e rugas: será que existe mesmo uma fôrma para conter tudo nas proporções adequadas? Ou será que pretender a uma Ordem intocável, plena de beleza, para evitar a violência, a reforma e a ruptura, como Varuna fez, é hipocrisia e covardia?

Em uma abordagem micro-cósmica, toda sociedade, todo tempo, e todo indivíduo, tem um dragão próprio a enfrentar. O nome dele é Rahu, o Senhor da Kalyuga, outro Asura, que foi decapitado por Mohini, uma avatar de Vishnu, e condenado a vagar pela Via Láctea em busca de seu corpo. Na tentativa, persegue ao Sol e à Lua, e quando os engole, ocorrem os eclipses, e a desgraça se espalha em maior ou menor escala, mais para uns que para outros. E não tem jeito, todos vão ter que enfrentar o seu dragão em algum momento de seu destino, ou ignorar o problema até perder o controle e falhar.

Esconder-se para sempre no castelo, cuidar de muralhas e provisões somente, não é uma opção válida. O dragão está lá fora na floresta e ele não vai sumir por conta própria, não importa o quão virtuosa seja a sua rotina, e ordenado seja seu castelo; o destino está lá fora e ele precisa ser vencido ou vai engolir o micro-cosmo. E na hora que o indivíduo sai de seu castelo para desafiar o dragão em sua caverna, o combate é feio, barulhento, violento, a fuligem do fogo que o dragão cospe turva e confunde os sentidos e a razão. O micro-cosmo é posto em cheque e transformado, ainda que se saia vitorioso, no fim o indivíduo contempla dor e destruição.

Para terminar, não só de gula e ganância se fazem os dragões, eles são mestres, sábios, inventores e conhecedores de variadas técnicas e truques, e quando se adentra a caverna e o intima, o prelúdio do duelo consiste em ouvir a lição que o dragão também tem a ensinar, sobre a feiura ignorada no indivíduo e em todo macro ou micro-cosmo, entre elas a hipocrisia e covardia.

*Não fica claro nos Devas se Indra era um infante quando Vritra engoliu Appas, ou se ele só nasceu após este evento.

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