[Tradução por Marcílio Diniz “Nemetios” de um trecho de OLMSTED, Garrett. Gods of Celts and Indo-Europeans. Tazewell: 2019. Edição revisada pelo autor a partir da que foi publicada pela Innsbruck, 1994. Comentários meus aparecerão entre colchetes no texto.]
Verdade e a Investidura dos Reis.
Podemos reconstruir consideravelmente mais informação sobre a concepção de reinado Proto-Indo-Europeu (PIE) além do termo *rēgs (IEW: 854). Os votos de investidura feito pelos reis na Irlanda, Grécia e Índia são quase idênticos na expressão e substância formular e devem derivar de um protótipo comum. Em cada uma destas três regiões distantes entre si o rei tinha de personificar a verdade, justiça e o cumprimento de seus deveres específicos, caso contrário, as terras se tornariam inférteis. E cada uma destas áreas, o rei tinha de fazer um voto durante sua investidura comprometendo-se em assumir seus deveres em conformidade com a Verdade. Traços preservados no ‘Audacht Morainn’ na Irlanda e no ‘Ergai kai Hēmerai’ de Hesíodo na Grécia sugerem, na proximidade de sua formulação repetitiva, que possuem uma origem comum PIE, como já esboçado anteriormente por Watkins.
Watkins (1979: 181-98) mostrou que o ‘Audacht Morainn’ irlandês compartilha significantes paralelismos com a tradição védica e com Hesíodo. Paralelos similares com a tradição védica haviam sido apontados anteriormente por Dillon (1975). Aqui, eu tratarei primeiro da tradição Védica antes de citar do Audacht Morainn e de Hesíodo.
Lüders (1951, 1959) notou que no Rig Veda, Váruṇaḥ é o guardião da verdade. O verso védico aponta que ṛtá- “verdade, o que é direito, certo” é o poder sustentador do universo, controlado por Váruṇaḥ; também ṛtá- era visto como o real princípio gerador de vida por trás do universo (vd. Meid 1987b: 162-4). Ṛtá- “verdade” era visto como o poder mais alto e causa de todo ser. Como um “poderosa chama de luz”, a Verdade era pensada como residindo nas águas do mais alto céu (Lüders 1951: 24-25).
De acordo com o Rig Veda (I, 105, 12), “os rios fluem com a Verdade, e o sol espalha a Verdade” (ṛtám arṣanti síndhavaḥ satyáṃ tātāna sṹryo vi; Aufrecht 1877: 89). Os próprios deuses só podem agir pela Verdade. Eles são os ṛtá-jāta “nascidos da Verdade; sagrados” e ṛtá-vrídh “criados na Verdade, santos” (Dillon 1975: 127). De acordo com o Mahā-nārāyana Upaniṣad, satyá- “Verdade” é a fundação de tudo (de notar que satyá-, cujo oposto é anṛtá- “inverdade, falsidade”, substitui ṛtá- em vários usos no período pós-Védico).
Por causa da Verdade (satyena) o vento sopra, por causa da Verdade o sol brilha no céu. A Verdade é a fundação do discurso; tudo é fundado sobre a Verdade”. (Jacob 1888: ‘22, p. 23.8).
O Víṣṇu purāna aponta muito da mesma crença nos efeitos benéficos da Verdade.
Por causa da Verdade (satyena) o sol é cálido; por causa da Verdade o sol brilha; por causa da Verdade o vento sopra; por causa da Verdade a terra persevera. (VIII: 27 -30; tradução por Dillon 1975: 128).
O irlandês Audacht Morainn mostra uma preocupação similar pelo fír [PrC *wīrom] “verdade” (cognato com o latino vērum “vero, verdade”). Na Irlanda, como na Índia, através da Verdade, os inimigos são mantidos longe, as terras são férteis, e o clima segue seu curso natural. Mas o Audacht Morainn irlandês segue o mesmo padrão que Hēsíodos quando coloca a responsabilidade pela relação entre a Verdade e o bem-estar da terra diretamente nas mãos do rei.
Das duas recensões do Audacht Morainn, a recensão B é mais velha que a L. Todas as versões do manuscrito apresentam algum grau de corrupção em sua transmissão. Nas linhas escolhidas do Audacht Morainn eu busquei seguir as versões do manuscrito da recensão B de modo mais conservador do que fez Kelly (1976: 2-21) (vide Thurneysen 1917b: 90-8; Olmsted 1979a), apenas reconstruindo as formas suportadas pelos manuscritos B.
Apair fris
is tre fír | flaitheman
mortlithi mórslóg | no márlóchet di doínib dingabar
is tre fír | flaitheman
conat- márthúatha mármuine | -midetar
is tre fír | flaitheman
fo- síd sáime | sube
soad sádile | -sláine
is tre fír | flaitheman
at- mórcatha fri crícha | comnámat -cuirethar
is tre fír | flaitheman
cech comarba cona chlí | ina chainorba clannus
is tre fír | flaitheman
ad- manna mármesa | márfeda -mblaisiter
is tre fír | flaitheman
ad- mblechte márbóis | muínigter
is tre fír | flaitheman
ro-bbí cech etha | ardósil imbeth
is tre fír | flaitheman
do- iubla uisce | éisc ar srothaib -snáither
is tre fír | flaitheman
clanda caine | cain-tuismiter deraib dethe.Tradução:
[a fórmula goidélica: “is tre fír flaitheman”, lit. “é pela verdade do governante” recuada ao PrC ficaria *trē wīrom wlatimonos (esti), seguirei não a tradução direta do irlandês, mas a tradução do autor, apesar de discordar de algumas escolhas dele]Diga-lhe:
É pela verdade de um príncipe,
(que) grandes pragas, uma grande exército ou um grande raio são mantidos longe dos homens.
É pela verdade de um príncipe,
que ele pode controlar grandes povos e grandes riquezas.
É pela verdade de um príncipe,
que assegurar-se-á tranquilidade, paz, riqueza, prazer, e saúde.
É pela verdade de um príncipe,
(que) grandes batalhões enviados contra terras inimigas, retornam.
É pela verdade de um príncipe,
(que) cada herdeiro finca o poste de sua casa em sua legítima parte da terra.
É pela verdade de um príncipe,
(que) longos mastros de grandes florestas de pântano aumentam.
É pela verdade de um príncipe,
(que) abundantes vacas leiteiras continuam a dar leite.
É pela verdade de um príncipe,
(que) vem uma grande abundância de todo grão.
É pela verdade de um príncipe,
(que) frutos da água e peixe são pegos dos riachos.
É pela verdade de um príncipe,
(que) filhos legítimos são concebidos (?) de filhas concedidas (?)
[As interrogações no último verso são do autor; eu traduziria mais literalmente ‘clanda caine cain-tuismiter deraib dethe’ como “(que) seu belo/legítimo clã é bem engendrado, pelas (mulheres) provido”, neste caso considerando ‘cland a caine’ ao invés de ‘clanda caine’, lembrando que ‘cain’, do PrC *kanis pode ser tanto “belo”, como “justo”]
A partir do verso 25 da versão L do Audacht Morainn vai mais além e diretamente atribui as qualidades do clima, pois, à Verdade do príncipe (as linhas reconstruídas aqui foram tomadas de Thurneysen 1917b: 89; Kelly 1976: 62). Por ser repetido na Índia como na Grécia, o tema deve recuar a fase da cultura PIE.
Is tre fír | flathemon
sína caíne | cach treimsi
techtaide do-cengat | a ré
gaim cáin | cuisnech
errach tírim | gaithach
sam toirnech | frossach
fogomur tromdruchtach | toirthech
ar is gó | flathemon
do-ber sína | saíba
ancessa for túatha | clóena
co-secca talman | torad.
Tradução:
[Novamente, vou me ater a traduzir a tradução do autor e não fazer minha tradução do irlandês antigo]
Pela verdade de um príncipe,
tempo bom em cada estação
propriamente se procede em ordem:
inverno bom e congelante,
primavera seca e uivante,
verão trovejante e chuvoso,
outono pesado com neblina e frutífero.
Pela falsidade de um príncipe
vem clima perverso
e debilidade e povos miseráveis,
esgotando o fruto da terra.
A antiga poesia grega preservada nas obras atribuídas a Hēsíodos, também contem muito material antigo relacionado ao papel adequado dos príncipes assim como do decoro adequado em geral. A admoestação de não urinar nas fontes e rios (verso 755 dos ‘Trabalhos e Dias’) soa muito parecido a uma referência similar nas Leis de Manu. A lista de coisas interditas de Hēsíodos, tal como lavar-se da água de banho de uma mulher, é o núcleo essencial do Mānavadharmaśāstra. Hēsíodos, igualmente, dá dois testemunhos que são remanescentes do Audacht Morainn.
Como no Audacht Morainn, nos Ergai kai Hēmerai [“Trabalhos e Dias”] a paisagem será fértil e as mulheres conceberão filhos legítimos no domínio de um príncipe que pratica a verdadeira justiça. Como Gagarin notou, Hēsíodos também contrasta díkē “lei, justiça” e hýbris “descomedimento, má ação”, como o Audacht Morainn contrasta fír flathemon e gó flathemon [em PrC, *wīrom e *gāwā].
“Esta oposição tem um aspecto geral, nomeadamente o do contraste entre a observação e a violação das normas da sociedade, e um aspecto mais específico se referindo a observação ou violação das regras para a operação correta do processo legal.”(Gagarin 1986: 47).
Nos Ergai kai Hēmerai a prosperidade de toda uma sociedade depende da observância do príncipe da díkē.
Nem fome nem desastre assombram aos homens justos
mas alegremente, cuidam dos campos que são tudo o que cuidam.
A terra os sustenta em abundância, e nas montanhas o carvalho produz bolotas
no topo e abelhas no meio.
Suas ovelhas lanosas estão carregadas de pelos;
suas mulheres têm filhos como seus pais.
Eles florescem continuamente com coisas boas
e não viajam em navios, porque a terra que dá grãos os produz frutos.[Novamente, se trata de uma tradução da tradução do autor, que a propósito, translitera o texto original grego:]
(Oudé pot’ ithydíkēsi met’ andrási limòs opēdei
oud’ átē, thalíēs dè memēlóta érga némontai
toisi phérei mèn gaia polýn bíon, oúresi dè drys
akrē mén te phérei balánous, méssē dè melíssas,
eiropókoi d’ óies mallois katabebríthasin
tíktousin dè gynaikes eiōkóta tékna goneusin
thállousin d’agathoisi diamperés, oud’ epì nēōn
níssontai, karpòn dè phérei zeídōros ároura.)Mas para aqueles que praticam violência e atos cruéis o que enxerga longe Zeús, filho de Krónos, ordena uma punição. Por vezes mesmo uma cidade inteira sofre pelas ações de um homem mal que peca e delineia ações presunçosas, e o filho de Krónos traz grandes problemas sobre o povo, fome e praga juntos, de modo que os homens pereçam, as mulheres não concebam crianças, e suas casas se tornem poucas, pelo antagonismo do Olímpio Zeús. E novamente noutro momento, o filho de Krónos ou destrói um amplo exército, ou seus muros, ou ainda faz afundar seus navios no mar. (Evelyn-White 1914: 19-21, ll. 230-37, 238-47).
O príncipe “sábio no coração” da Theogonia de Hēsíodos, que “estabelece sentenças com juízos verdadeiros”, é quase idêntico ao príncipe justo do Morand, que “sorri para a justiça quando a ouve e a exalta quando a vê”. Hēsíodos nota que quando seu príncipe sábio “atravessa uma assembleia, eles o saúdam como a um deus com reverência gentil”. Que é o príncipe justo do Morand, “a quem os vivos… iluminaram com bênçãos”.
Outras linhas do Ergai kai Hēmerai de Hēsíodos encontram paralelos na tradição irlandesa. Aqui, como nos Dez mandamentos da tradição hebraica, Hēsíodos admoesta o que não deve ser feito. O irlandês Cath Maige Tuired preserva as mesmas admoestações negativas na visão sobre a era de caos vindoura. No Cath Maige Tuired irlandês as falsidades do homem trazem toda sorte de ruindades. Novamente a visão é quase idêntica aquela de Hēsíodos. Ao final da Cath Maige Tuired (167), Mórrígan ou Badb prediz os males que se levantarão no estágio final do mundo. Esta profecia não só é muito próxima da que é dada por Hēsíodos nos Ergai kai Hēmerai mas também com o que está contido na Völuspá dos Eddas [e com certa passagem da tradição hindu, como já apontamos cá].
Ni accus bith | nom-beo baid
sam cin blatha | beti bai cin blichda
mna cin feli | fir gan gail
gabala can righ | rinna ulcha
il moigi | beola bron
feda cin mes | muir can toradh
tuir bain b[e]thine | i-mmet moel
rátha fás | a forgnam
locha diersit[er] | dinn atrifit[er]
linn lines | sech[m]il[fad]ar
flathie faoilti | fria holc
ilach imgnath | gnuse ul[a]
incrada do credb[a]d | gluind
ili imairecc catha | toebh fri ech
delceta imda dala | braith m[a]c flaithi
forbuid bron | sen saobretha
brec fásach | mbrithiom[an]
briathiomh cech fer | foglaid cech mac
ragaid mac | i lligie a ath[ar]
ragaid ath[ar] | a lligi a mac
cliamain cach | a brat[har]
ni sia nech mnai | a ssatigh
gignit[er] cenmair | olc
aimser immera | mac a ath[air]
imera ingen | [a máthair].
(Stokes 1891a: 110; Thurneysen 1918a: 406).Tradução:
[Novamente, vamos nos ater a tradução do autor – já trouxemos esta profecia escatológica irlandesa, e um comentário mais profundo dela, é algo a ser feito]Eu não verei um mundo que será agradável a mim.
Verão sem flores, gado sem leite,
mulheres sem modéstia, homens sem valor,
conquistas sem um rei, lanças (nas mãos dos) barbados,
muitos escravos da boca do ventre,
matas sem mastros, mar sem produção,
doces mulheres recorrerão a uma multidão de cretinos,
a construção de fortes vazios,
lagos abandonados, fortalezas excedidas,
muitas linhagens extintas,
nobres satisfeitos pelo mal,
muitas extravagâncias diante da tumba,
desfeitas que corroem o suporte,
muitos conflitos de batalhas, tributo aos cavalos,
crimes a cada encontro, traição de nobres juramentos,
regras falsas dos juízes,
todo homem um traidor, todo garoto um ladrão,
o filho entrará na cama do pai,
o pai entrará na cama do filho,
todos serão cunhados de seu irmão,
toda mulher insaciável,
a satisfação virá do mal,
uma época em que o filho enganará o pai,
e filha enganará a mãe.
Diferindo pouco da descrição de Mórrígan do mundo vindouro, é a descrição da Idade do Ferro de Hēsíodos:
O pai não concordará com seus filhos, nem os filhos com seu pai, nem hóspede com seu anfitrião, nem camarada com camarada; nem será irmão querido ao irmão como antes. Os homens desonrarão seus pais enquanto estes envelhecem rápido e os magoarão, repreendendo-os com palavras amargas; cruéis eles não conhecerão o temor aos deuses. Não pagarão seus pais de idade o custo de sua nutrição, pelo que deveria ser o certo, e um homem saqueará a cidade do outro. Não haverá favor para o homem que observa seu juramento ou para o justo ou para o bom; mas ao invés os homens louvarão os que fazem mal e o trato violento. A força será o direito e a reverência cessará de existir; e o corrupto machucará o homem digno, falando falsas palavras contra ele, e jurará sobre eles. Inveja, boca imunda, deleite na maldade, com cara carrancuda, demorará com os miseráveis, um e todos. E Aidṓ e Némesis (“reverência e a justa indignação” [eu traduziria como Pudor e Compensação]), com suas doces formas enroladas em mantos alvos, irão do largo caminho e abandonarão a humanidade para juntarem-se a companhia dos deuses imortais; tristezas amargas serão deixadas para os mortais, e não haverá ajuda contra o mal. (Hēsíodos: Erga kai Hēmerai: ll. 181-201; Evelyn-White 1914: 16-17).
[Em português, para quem se interessou pelo ‘Trabalhos e Dias’ de Hesíodo, recomendo a tradução de Alessandro Rolim de Moura, publicada pela Segesta de Curitiba, além de que é uma edição bilíngue. A tradução deste autor do trecho citado pelo Olmsted é: “Nem o pai será concorde com os filhos, nem os filhos com o pai, nem hóspede com anfitrião, nem companheiro com companheiro; nem um irmão será querido, tal como era antes. Desprezarão os pais logo que envelheçam, e vão repreendê-los proferindo duras palavras, os cruéis, ignorando a vingança divina; e nem mesmo dariam aos velhos pais retorno pelo alimento que tiveram na infância. O direito da força: um saqueará do outro a cidade. Nenhum apreço haverá por quem é fiel aos juramentos, pelo justo ou pelo bom: antes o malfeitor e o homem-violência {em grego: ὕβριν ἀνέρα, que eu traduziria como “homem transgressor”} honrarão. A sentença estará na força; reverência não existirá. O cobarde fará mal ao homem de maior valor com discursos tortuosos, e a seguir dirá “juro”. A inveja todos os humanos miseráveis acompanhará, voz dissonante, face odiosa, comprazendo-se no mal. Será então que, da terra de largos caminhos, partindo para o Olimpo, a bela tez a cobrir com véus brancos, irão ter com a tribo dos imortais, deixando os humanos, Reverência e Indignação. E ficarão para trás dores amargas para os humanos perecíveis: não haverá defesa contra o mal.]
Assim também, na tradição islandesa, a Voluspá, por meio mais reduzido, trata do mesmo tema, que é o equivalente ao Kali Yuga da tradição hindu posterior.
Irmãos lutarão até o fim sangrento,
e os filhos da irmã trairão os seus;
ai do mundo com tanta devassidão:
(era do machado, era da espada, desbotado serão os escudos,
era do vento, era do lobo, ante a ruína do mundo;)
A lança de nenhum homem poupará o outro.
(Voluspá: ‘45; Hollander 1962: 9; Kuhn 1962: 10-11).
Uma opinião sobre “Tradução: Garrett Olmsted – “A Verdade e a Investidura dos Reis””