Por uma Ética Espiritual do Amor

Cupid Psyche Canova
Detalhe de Cupido e Psyqué de Antonio Canova

Existe no Hinduísmo a crença em Ardhanavarishvara, uma reunião em um único ser do casal Siva Sakti. De acordo com o Siva Purana, o outrora Uno, e consciência primordial, deus Siva, se dividiu criando a deusa Sakti, cujo nome pode se traduzir como ‘força’, ‘energia vital’, e também como ‘esposa’, entre outros – é da porção Sakti de Siva que advém Maya, a matéria ilusória que compõe a natureza. Ao dividir-se e criar Sakti, Siva criou o amor entre homem e mulher, ainda que primeiro tenha criado o amor fraternal quando deu origem a Vishnu e Brahma. Quando se viram, Siva Sakti se amaram e perceberam que não poderiam viver sem aquela outra parte de si mesmos.

O amor de Siva Sakti, como se vê no Siva Purana, nunca foi perfeito. Certa feita Siva Sakti não estavam com o melhor dos humores e tiveram uma briga de casal, e ela se foi. Em sua tristeza e confusão, Sakti compareceu a uma cerimônia sagrada e lá não viu ser ofertado o que era devido a Siva. Ultrajada com a humilhação de Siva, Sakti brigou também com o anfitrião da cerimônia, e acabou se auto-imolando no fogo sacrificial. Quando tomou conhecimento do ocorrido, Siva enfureceu-se e destruiu o local e todas as pessoas envolvidas na cerimônia. Depois subiu os Himalaias e sentou-se, desolado, em meditação. Ocorre que a porção Sakti de Siva corresponde à sua força vital, e agora que ela falecera, ele perdia também sua vida; Siva caiu numa espécie de coma profundo. Os outros devas decidiram interferir e procuraram pela alma de Sakti, contaram do estado de Siva e a convenceram a retornar à vida. Sakti renasceu então como a deusa Parvati, filha do deus das montanhas do Himalaia, e ao tornar-se adulta, buscou Siva nas montanhas e diante dele executou várias penitências, até despertá-lo. Siva a reconheceu e os dois se casaram.

Em função deste mito, muitos hindus dizem que a esposa de um homem é sua Sakti, e ainda, que a esposa de um homem é sua fonte de poder. Sob esta luz eu defendo neste texto que o amor é, para além de um sentimento, uma realidade espiritual, portanto, eterno, mas que se materializa também no mundo mortal, ainda que este, uma vez que é Maya, seja ilusão passageira.

O conceito de Amor Platônico que se desenvolveu no Ocidente tem alguma semelhança com aquele de Ardhanavarishvara, no sentido de crer na complementaridade entre duas almas que seriam uma só em origem. Mas guarda também algumas diferenças. Ardhanavarishvara não idealiza o parceiro e o relacionamento. Ao contrário, Siva Sakti nos fala de falhas bem mortais: 1 – No mundo mortal há expectativas, demoras, confusão, tristeza, e tomamos atitudes impensadas para evitar a dor. 2 – Se nem mesmo a divindade que é a consciência universal e origem de tudo o que existe pode evitar problemas conjugais e a confusão do amor, como poderíamos nós viver e amar sem cometer erros e sem sofrer?

Para Platão existem 3 formas de amar, Philia, Ágape e Éros. Este último é aquele que faz com que duas pessoas de sexos diferentes se amem, se desejem e se unam gerando um terceiro ser: uma criança. É uma forma deveras natural de pensar o amor, pois tem como finalidade a procriação. Mas não nos esqueçamos de que Éros é um deus, e dos mais antigos. Com efeito a obra da qual este conceito foi extraído, O Banquete, se trata de uma homenagem ao deus e tentativa de compreender e definir uma ética para este sentimento.

Entre romanos o deus do amor que equivale a Éros se chama Cupido e é filho de Vênus e Marte, ou seja, o resultado entre setimento e impulso sexual: Paixão. Faz-se pertinente lembrar que a palavra paixão tem a mesma origem de patologia: pathos, e que pertence à esfera do deus Marte. Cupido é representado como um menino alado e portando arco-e-flechas com os quais fere os mortais, fazendo surgir entre eles a paixão e suas dores. É uma visão do amor como algo perigoso, uma vez que pode resultar em felicidade ou desgraça, quando não é possível realizá-lo. Este amor pode ser visto como uma travessura divina para com os mortais.

A ideia do amor como uma doença está também presente na Mitologia Gaélica. Em Tochmairch Étainn o cunhado de Étainn se apaixona por ela em função  de um encanto posto pelo deus Mídhir. O rapaz fica acamado entre a vida e a morte, desesperançoso por amar a esposa do irmão. Também no conto Echtra Condla, o príncipe Conla, filho de Conn das Cem Batalhas, cai no encanto de uma Dama do Sîd e não pode mais dormir nem comer nada além de uma maçã mágica dada-lhe por ela. Conla acaba por segui-la no mar em direção ao Outro-Mundo aonde os dois vivem juntos pela eternidade. Em Aislinge Oenguso, o deus Oengus cai doente de amor por uma dama que vê em seus sonhos mas não conhece, e só se recupera quando toma conhecimento de quem ela é e aonde vive.

Esta ideia atravessa os séculos e se cristaliza novamente nos romamces de cavalaria, que têm nos personagens de Tristão e Isolda o mais ilustre e renarrado exemplo. Tristão e Isolda não são capazes de esquecer um ao outro, mesmo quando escolhem separar-se pelo bem do reino e para salvar suas almas. Eles acabam por morrer de tristeza, Tristão se acreditando não mais amado por ela, e Isolda por não ter podido chegar a tempo de salvá-lo.

O problema do amor – chame-o de Éros ou Cupido, ou apenas de sentimento, como preferir – é que pertencendo à  eternidade e se pondo na esfera da  temporalidade, se deturpa e se complica. Em suma, na matéria o amor perpassa a carne, faz surgir o desejo em indivíduos que já estão imersos na ilusão desta realidade passageira, e portanto, falsa. Indivíduos pressionados pela necessidade de permanecer vivos, de manter intactos os corpos que lhes foram dados para portar as almas eternas nas missões que são suas vidas, como cría Platão.

Ao nascer os mortais são confrontados com as necessidades do corpo para mantê-lo vivo: comer, beber, vestir-se, abrigar-se. E com a consequência de não as suprir: dor e morte. Sabendo que precisam trabalhar e acumular para garantir o sustento seu e das pessoas amadas, muitos caem na ilusão de desperdiçar seu breve tempo de vida focados em acumular e conquistar bens materiais para aplacar a insegurança, o medo da morte e da dor. Esta é a ilusão da matéria.

A vida é a maior das ilusões da matéria, pois ela é tão breve quanto o corpo, ao passo que a alma é eterna. Depois desta existe a ilusão da identidade, que se fundamenta naquilo que também é finito ainda que atravesse gerações, como heranças, títulos honoríficos, tribos ou cidades. E existe ainda a ilusão de que se posicionando e aos outros nestas identidades temporais, se é e se possui qualquer coisa. Afinal, há certas pessoas amadas sem as quais não podemos nem nos imaginar vivos, e por elas é que mais nos aplicamos a acumular e a manter as identidades. Isto quer dizer que das necessidades e do medo de não aplacá-las, nasce a ilusão da posse do espaço, da terra, da moeda e até mesmo da posse de outras pessoas.

Em razão destas necessidades críam-se também expectativas em relação às pessoas amadas, e quando elas não se realizam, se transformam em dor. Na verdade, como se vê, o que machuca são as expectativas, e não o amor. É a seta de Cupido, herança de seu afiado e violento pai que nos fere, e não o sentimento, herança de sua mãe.

Cria-se todo um círculo social no qual posicionam-se os bens materiais e as pessoas em papeis que lhes atribuem significado perante os indivíduos e o coletivo. Fazem-se então os costumes e as leis para assegurar estes papeis, e a segurança e tranquilidade para continuar acumulando e protegendo não só a si mesmos e às pessoas amadas, mas às gerações por vir.

Destes costumes deriva um outro conceito: Honra. Que acumula quem cumpre com seus papeis, perde quem os negligencia, e que, após a morte, posiciona os finados também no esquema mental criado para compreender o que está além da matéria: o espiritual. Então vive-se também a vida na matéria em função de alcançar uma ilusão projetada sobre a verdade espiritual – os sistemas religiosos -, que os mortais não são capazes de apreender perfeitamente por estarem imersos na matéria. Esta verdade é a eternidade.

Se o leitor se perguntar neste ponto do texto se o que quero dizer é que a honra e os bens materiais não importam, eu respondo: Ao contrário. Uma vez que a honra, os costumes, leis, as identidades e os bens materiais são produzidos no intuito de assegurar a sobrevivência e a paz das pessoas que amamos, então é imperativo mantê-los. O oposto seria um ato de desamor. E a negação do amor é a negação de uma das poucas coisas que acredito serem reais, assim como os deuses, a eternidade e a verdade – o que quer que seja isso tudo!

Então mesmo que o contrato social seja uma ilusão circunscrita na matéria, e o amor seja a realidade livre da matéria, é aqui em Maya que estamos agora, no material mundo dos vivos, e certamente os deuses não nos puseram nele para fingirmos estar em outra esfera, ou viver de luz e desconstrucionismo, por exemplo. Então o amor que está em acordo com o contrato social deve ser formalizado e vivido com honradez, seguindo os costumes e as leis. Este é o caso em que o amor pode se aplicar a uma ética temporal.

Mas quando o amor se encontra em desacordo com o contrato social ele se torna facilmente em doença, e as pessoas conscientes reconhecerão cedo que ele pode levar a danos emocionais e na esfera material. Muitas vezes espírito e matéria não conseguem se mesclar, é o caso deste amor. E infelizmente, enquanto encarnados, o contrato social precisa de nós mais do que o amor, que afinal é imortal. Então se o sentimento for mesmo amor e não paixão, não se acabará com o tempo. O que acabará são o desejo e as expectativas, mas a admiração e o sentimento permanecerão. A Numen de Marte se desfaz com o tempo e a de Vênus perdura para além dele.

Em todo caso, se o sentimento for amor ou paixão, doerá evitá-lo, mas se for apenas paixão, a cura será completa, o tempo o consumirá. Se, no entanto, o sentimento for real ao invés de ser findado, a tentativa de destruí-lo acabará por destruir a quem ama, como fez a Tristão e Isolda.

A cura neste caso é render-se ao sentimento aceitando-o. Admitir que é real e deixar que exista. A dor cessará de qualquer forma quando o tempo consumir o desejo e as expectativas. E nós somos apenas mortais, não somos capazes de matar um deus, então não lutemos contra ele.

É possível amar sem as necessidades da matéria, da carne. Amar sabendo que o amor sem estas é uma bênção eterna, um dom divino, uma estrela a mais no céu iluminando o destino e só os que amam podem enxergá-la. Pois ainda que sós e separados na matéria, em dúvida ou iludidos, estão ligados em espírito os que se reconhecem.

Trata-se de tranformar veneno em antídoto. Extrair o excesso que causa dor e destruição, e tomar a porção que cura. A palavra ‘veneno’, assim como ‘veneração’ vêm ambas da mesma raíz de ‘Vênus’, o que sugere que desde tempos imemoriais o amor tem tido o poder de destruir ou nutrir, matar ou imortalizar. Então que se evite o veneno e que se deleite em veneração. Dê-se a Ágape e Philia aquele que ama um amor verdadeiro mas impossível de se acordar com o contrato social. E que prefira o amor asceta enquanto Éros não possa se materializar. A veneração não nutre apenas aos deuses, mas a quem ora por eles também, na medida que aproxima a Numen de si. Por isso, orar pelas pessoas amadas nutre-as e também a quem ama e ora por elas.

Uma opinião sobre “Por uma Ética Espiritual do Amor

  1. Mais uma vez um artigo interessantíssimo!!

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