Anotações sobre a ascese

O Cão de Culand, amarrado para manter-se de pé diante da morte certa. Cuchulainn’s Death por Stephen Reid, 1904.

Etimologia e sentido: possivelmente associada a ‘askos’ “pele de animal” (CHANTRAINE, 1968, p. 124 e BEEKS, 2010, p. 150) de etimologia obscura; verbo ‘askeō’ cujo sentido, originalmente, era de “retirar pele/lã de um animal, curti-la”, passando para “trabalhar um material cru transformando-o pelo engenho/arte”, e finalmente para “exercício, aperfeiçoamento” (em sentido atlético e em sentido religioso/moral). Daí que ‘askēsis’ seja “exercício”, entendido como regular e com propósito de aperfeiçoamento (“elevação”) e como “disciplina”.

Faremos um recorte, nestas anotações, no mundo Ocidental. A existência, especificamente, de um sentido próximo no Hinduísmo, que é um mundo a parte, aponta para uma possível herança Indo-Européia. Partiremos desta posição (que é uma evoliana, vd. “A Doutrina do Despertar”). No entanto, é possível conceber que os desenvolvimentos do Oriente e do Ocidente sejam independentes e não relacionados originalmente. Mas mesmo neste caso, se o tomarmos como fato, não se impede que se possa buscar padrões de semelhança ou identificar sentidos comuns.

No Ocidente, o Cristianismo apropriou-se de um certo conjunto de práticas ascéticas (alguns realmente próximas do judaísmo, outras apenas “populares” nos primeiros séculos da expansão cristã) e, grosso modo, as “democratizou” em termos horizontais (ao menos no discurso), apesar de que, pela própria impossibilidade natural da realização de tal intento “horizontalizante”, terminou afunilando (naturalmente) para o “clero” (monges e devotos). No entanto, certas práticas quando associadas com uma fé totalitária e epistemicamente exclusivista gerou um tipo de radical religioso “novo” – os fanatici e os parambolani, que diferentemente do “guerreiro sagrado” (e num certo sentido mesmo, no que há de mais indo-europeu no ideal do “monge-guerreiro” medieval), exerce uma atividade centrada numa dimensão baixa, iconoclasta, passional (emotiva e supersticiosa), e preocupada com um “atalho para a salvação” pessoal, com uma martirização “fácil”.

Também não trataremos do que há de “pagão”, de genuíno desenvolvimento cristão ou de herança judaica no significativo conjunto de práticas de cunho ascético do Cristianismo. Não é o nosso ponto. O que visamos é, pontuar uma possível leitura do início e compreensão da askēsis na Grécia, e daí esboçar algo sobre o restante do Ocidente Indo-Europeu.

Diremos que há duas abordagens diferentes ao se olhar para as práticas de cunho ascético: a primeira é (1) a do pressuposto de tais práticas e intentos na dimensão formativa/normativa da ação, mas que não é explicitada como tal (como uma disciplina ‘ascética’, propriamente). A segunda é (2) a que, propriamente, se identifica e se apresenta como ‘ascética’. Chamarei a primeira abordagem de informal e a segunda de formal. Em termos IEs, podemos considerar que há uma ênfase ascética informal em termos amplos, direcionado aos membros de um grupo social e mesmo com uma diferenciação trifuncional, como temos advogado alhures. Mitos específicos e narrativas apresentam regras (com sentido normativo explícito) ou modelos de ação para cada estamento social ou função, parte de sua visão de mundo e sentido geral, que como lhe explicam a origem, apontam-lhe também certa finalidade e propósito. Há muito a se colocar sobre isto, mas o principal é que esta visão básica possui diferenças significativas da proposta de soteriologia universal e destino “único” para todos os mortais, tomado como padrão em certas religiões não-IEs. Ou seja, em termos de tendência “informal” partiremos da posição de que as religiões IEs possuem uma orientação mais ou menos imersa na trifuncionalidade e na moralidade social geral.

Por outro lado, a dimensão formal, parece ser tipicamente associada ao estamento sacerdotal/intelectual, apesar de não unicamente restrito a este. Na Grécia mesmo, a partir do séc. V antes da era cristã que veremos uma “formalização” pelas “escolas” filosóficas que cada vez mais será sedimentada. E talvez mesmo se possa recuar certo “ascetismo” filosófico a figura de Sócrates (Xenofonte, Memoralabilia I:2 e especialmente II:1) num primeiro momento. Na verdade, é bem possível que possamos, acertadamente, recuá-la a figura controversa de Pitágoras de Samos e o estabelecimento de seu Synedrion, como o fez, num certo sentido, o Neoplatonismo. No caso do Pitagorismo, por sua indissociável posição como uma “seita religiosa”, digamos, talvez isto (do foco na esfera sacerdotal/intelectual) se torne ainda mais claro, apesar da sabida religiosidade de Sócrates.

Antes que esqueça, utilizarei a terminologia de “mão direita” e “mão esquerda” mais ou menos no sentido utilizado por Julius Evola, acrescendo uma certa compreensão mais geral e simplista da “direita” como favorecendo a manutenção do *artom, da Ordem Cósmica divina, Harmonia, etc. E da “esquerda” como apressando a dissolução (para novo estabelecimento) diante do declínio da Era. Obviamente que há muito mais do que isto e que a descrição precisa do significado desta terminologia requer muto mais, dada a série de nuances e a amplitude do que está sob o escopo destes termos. Mas como faremos comentários pontuais e simples, creio que estas indicações bastam.

Em termos de panorama geral, poderíamos falar de quais escolas filosóficas ascéticas? Bem, primeiramente do Pitagorismo que, apesar de ter sido “abolido” o Synedrion, sobreviveu de maneira mais ou menos dispersa em Tarento e outras cidades próximas pelo menos até a época de Platão. A partir de Sócrates, o Platonismo (que recebe uma influência pitagórica muito grande) irá despontar como uma via; o Cinismo como outra via. Poderíamos até, num certo sentido, dizer que o Cinismo talvez seja a primeira “via de mão esquerda” filosófica na Grécia – seu ascetismo estava intrinsecamente ligado a “destruição”, “dissolução” do Eu, enquanto “fama pessoal”, “reputação”, superação da moralidade social e “decência” – tornar-se um “cão”, num certo sentido, era “morrer” para o mundo dos homens (da Política, da fama e glória públicas, etc.). O Estoicismo, cujo fundador cartaginês/fenício se tornara discípulo de um cínico (Crates de Tebas) e passara por uma espécie de “iniciação” (o famoso episódio do recipiente com sopa de lentilhas no Kerameikos), definitivamente alinhar-se-á como uma via “seca”, “de mão direita”, digamos (apesar do início “de esquerda”). Na época da hegemonia romana no Mediterrâneo, com a ascensão de um Neopitagorismo, as fronteiras com o Neoplatonismo que já eram problemáticas se tornaram ainda mais confusas, de modo que pode-se dizer que o Neoplatonismo “clássico” tem muito de Pitagorismo, mesma sua enfática projeção teúrgica.

Até onde os peripatéticos ou os céticos possuíam uma dimensão ascética formalizada (estes últimos, seria de se esperar uma via de “esquerda”) é assunto de debate. E nos parece que, quando comparados com os Neoplatônicos, Estoicos e Cínicos, parece não estarem exatamente no mesmo nível em se tratando de exigências de askēsis (pelo menos pelo que conheço). É importante lembrar que, na Antiguidade, viver uma vida filosófica era uma opção religiosa-existencial: se trata de mudar o modo de vida, muitas vezes, submeter-se uma instrução de um “mestre” ou mudar-se para as proximidades de um filósofo para como ele estudar. Era algo mais parecido com “conversões” – neste caso, a uma espécie de “modalidade”, mais rigorosa e intelectual, dentro da Religião na qual já se estava, e mesmo tinha paralelos com o tipo de vida “sacerdotal” tradicional dos devotos nos templos (e em alguns casos, como de Plutarco, entre outros, sequer havia diferença entre as coisas: se era sacerdote e filósofo de forma muito natural).

Neste sentido, em se tratando da Grécia (e por decorrência da posterior Romanidade sob influência grega) poderíamos conceber o seguinte, em termos de opções ascéticas:

I. No nível sacerdotal/intelectual: A) informais: 1. serviço religioso às divindades nos templos (tradicional – via de “mão direita”), 2. culto a Dionísio (como uma via de “mão esquerda” – vd. Evola) e 3. serviço nos “Mistérios” (Orfismo, Elêusis – que apesar de certas intersecções com o culto de Dionísio, no caso de Elêusis, pode ser visto como uma via de “mão direita”). B) formais: 1. Neoplatonismo e Neopitagorismo (“via de mão direita”), 2. Cinismo (como uma via de “mão esquerda”) e Estoicismo (também “via de mão direita”).

II. No nível marcial: A) informal: a própria ênfase cultural mais abrangente do heroísmo e nos valores aristocráticos (talvez sintetizada no verso 208 do canto VI da Ilíada), além dos próprios treinamentos e alistamentos militares. B) formal: 1. o treino dos atletas (de alto desempenho, como diríamos hoje) e talvez 2. na formação de certos grupos miliares de elite no mundo grego. No geral, entre os gregos e entre os demais IEs há um direcionamento geral de “mão direita”, tanto nesta dimensão estamental quanto na terceira função, por motivos óbvios. É verdade que entre os povos germânicos e entre celtas, podemos mais facilmente conceber que houvesse alguma dimensão “à esquerda” na segunda função (que apontariam para uma violência incontrolada, “dissolutória” e extática), em grupos específicos ou para fins específicos, que pela dimensão ritual das Mannerbunden nas quais se originaria, envolveria uma dimensão “quase-formal”, digamos (dado o cariz fechado e quase esotérico de certas fratrias guerreiras). Mas é um assunto complicado e temos evidências que deixam claro que, mesmo nestas sociedades específicas, pela periculosidade geral que tal expressão específica produz, era algo contido ao mínimo necessário e relegado para fora da dimensão social regular (vd. os Fiana, por exemplo).

III. No nível produtivo: A) no nível informal: 1. a concepção geral de vida virtuosa em torno no trabalho digno e austero (em numerosas passagens e indicações, da Odisséia aos Trabalhos e Dias de Hesíodo, além de mitos diversos, obviamente na “via de mão direita”). B) no nível formal: é possível que tenhamos algumas possibilidades, mas admito disputa e contestação nestas; 1) na “guildização” e formação de corporações de ofício no caso de artesões especializados, que também envolvia uma dimensão religiosa e culto específico podendo envolver algum tipo de disciplina ou askēseis; e 2) na organização de certos grupamentos artísticos, especialmente em torno do Teatro, cujo desdobramento pode ter sim envolvido certa “disciplina” tanto entre atores, quanto entre dançarinos, etc. (de lembrar que pela relação com o culto a Dionísio, é bem possível que, ao menos uma parcela disto, especialmente no caso dos atores, manifeste uma via de “mão esquerda”, o que explicaria muito do status duvidoso desta profissão na Antiguidade). 3) a própria dimensão do sexo em seus desdobramentos mais místicos que oscilaria entre vias “aprumadas” e “tortuosas”, apesar de que estas últimas, via de regra, são esotéricas e restritas a certos grupos de “iniciados” ou que estão à margem da sociedade.

Em se tratando de fora do mundo Grecorromano e das escolas filosóficas gregas, realmente, o formalismo se torna mais difícil de ser identificado. E por isto também, vou me ater, a partir de agora, aos povos Celtas por ser meu foco de interesse religioso primário. Em 2013 proferi uma apresentação sobre meios de ascese entre os celtas (no Encontro Evoliano em João Pessoa, Paraíba), como uma espécie de resultado preliminar de uma pesquisa, e de lá pra cá algo se sedimentou enquanto outras coisas foram abandonadas. Colocarei alguns apontamentos despretensiosos e sintéticos.

Diferentemente dos gregos, temos uma literatura pequeníssima sobre celtas e sobre seus mais proeminentes e famosos sacerdotes, pelo menos da Gália e Ilhas Britânicas, os Druidas, listados também como espécies de filósofos, e sobre os quais temos menos literatura ainda. E como estes, diferentemente dos filósofos gregos, não escreveram livros expondo suas doutrinas e concepções, nosso acesso a tal conhecimento se dá somente de uma forma aproximada. Mas mesmo com todas as dificuldades inerentes a tal aproximação, podemos elencar alguns pontos.

• Em se tratando de celtas continentais, sabemos que filósofos gregos identificaram no modo de vida dos interioranos da Ibéria uma disposição “lacônica” (leia-se “espartana”), quase estoica, vista conscientemente como forma de “endurecimento” e fortalecimento para a guerra e a vida. Dos celtas da Ibéria, é bom notar, temos mais informações de suas elites guerreiras e do povo sob sua liderança, a quem os romanos enfrentaram, do que dos demais estamentos (especialmente do “sacerdotal”) de suas comunidades.
• Ainda em se tratando dos continentais, sabemos do cuidado gaulês anti-obesidade, assim como com a preocupação com a educação dos jovens; da existência da “corporação” druídica com suas regras e treinamento rígido, que envolvia, também, por parte do estudante, uma mudança de vida e uma mudança mesmo de residência para o local de instrução, seja por compadrio ou outra forma, além da relação “mestre-discípulo” e de “escola” (numa perspectiva tradicional). Apesar das evidências que temos do Druidismo gaulês e britânico serem possivelmente unificados, nada impede de conceber que, nalgum nível, houvesse “escolas” internas que poderiam diferir em algo na sua “disciplina”.
• Entre o que sabemos oriundo das paragens insulares (que na Antiguidade eram zonas periféricas do mundo Céltico), da Irlanda se sobressai de longe o corpus literarium: de lá nos vem ciclos épicos, mitos e muitas outras informações importantes. Em alguns casos, justamente pela fragmentariedade da informação continental, fica difícil pontuar o que é “céltico” (em termos de pan-céltico) do que é “hibérnico” somente. Em todo caso, vemos que o Druidismo irlandês também fora bem organizado (apesar de não sabermos se era completamente unificado entre si e menos provavelmente unificado com o Druidismo da Gália e Britânia), possuía um sistema de treinamento muito rigoroso, iniciático, com aspectos “esotéricos”, também envolvendo um sistema de compadrio. Curiosamente, a vida monástica cristã (inclusive em suas versões mais “radicais”) obteve uma expansão demasiado rápida que talvez não se explique somente pela mensagem cristã, mas antes por uma espécie de “terreno” mais ou menos preparado por certas práticas do Druidismo irlandês. Também de lá que nos vem toda a informação sobre o prestígio de certos sujeitos das classes produtivas (artesãos especializados), da sobrevivência de mannerbunden célticas e de algo de sua composição e meios de operação, do ambiente cultural aristocrático da nobreza, etc.
• Das corporações bárdicas galesas, sabemos de igual organização, treinamento e aperfeiçoamento, pressupondo tanto a relação mestre-discípulo como um certo nível de “unidade” que sobreviveu e se adaptou a nova fé cristã ao longo do Medievo.

No quadro geral, ao compararmos as informações que dispomos em linhas amplas, há expressiva conformidade e “homogeneidade” especialmente no tocante a secunda função, e mesmo em certo aspecto da primeira (apesar de não ter havido aparente “druidismo” na Ibéria com o nível de organização e unificação como o que houve entre a Gália e Britânia, ou mesmo na Irlanda). Em relação a terceira função há vestígios diversos que apontam para, por exemplo, existências de corporações de ofício (“guildas”), mas pouco se avança além disto.

Em termos tradicionais, as evidências da epigrafia e literatura combinadas, em linhas gerais, confirmam o cariz IE comum da disciplina guerreira, digamos, e pelas evidências da Ibéria (os bandos de Latrones a viver nas montanhas, como chamados pelos romanos) e da Irlanda (Fiana), de mesmo de certo aspecto da segunda função com alguma noção delimitada de “mão esquerda”, digamos. Talvez o principal mecanismo de inovador em termos conceituais para a discussão da askēsis, quando comparamos com a cultura greco-romana, seja a noção de *gessī ou *gessyā (em irlandês ‘géis‘ ou ‘geas‘), geralmente traduzido como “proibição” ou “tabu”. Etimologicamente o termo significa “aquilo que é tomado” ou “aquilo que é aceito”, possuindo uma possível relação com o verbo *gan-d-o- “tomar, ocupar um lugar” ou com o termo para “penhor, caução” *geystlos, cuja etimologia podemos associar ao PIE *gʰeydʰ– “desejar, almejar, esperar por” (MATASOVIĆ, 2009, p. 158). Há, decididamente, uma dimensão consciente e mesmo voluntarista na tomada de *gessyās, e nisto mesmo temos uma forma de “disciplina”, de askēsis: a sua observância é um mecanismo de aperfeiçoamento da mente sobre o corpo, digamos, uma expressão e treino da “vontade” aristocrática do domínio de si. Daí a primazia da observação rigorosa destes – especialmente por parte dos “nobres” e guerreiros – por sobre o conteúdo que, não raro, possui utilidade ou pertinência incompreensível ou inútil.

A própria natureza aparentemente contraditória da ação pela não-ação (observação de uma proibição autoimposta ou imposta por outrem), por si só se assemelha a uma das mais populares disciplinas ascéticas: a da abstenção. Tanto que, não me pareceria inadequado, de forma alguma, traduzir *gessī por “abstenção voluntária” num certo sentido. E como tal, não possui como finalidade o objeto ou ação a qual a pessoa se abstém, mas antes, o fortalecimento de uma dimensão interior, digamos, em si mesma, na qual a abstenção é um meio, de aumentar e aperfeiçoar poder e força espiritual. O próprio ato de acatar uma tal *gessī meio que pressupõe, se olharmos com cuidado as ocorrências disto na literatura mítica e épica irlandesa, certa relação que, se não é de “mestre-discípulo” explícita, trás, implicitamente, certo fundo de aperfeiçoamento e superação de si (mesmo que seja a contragosto ou com intento de “limitar” ou “barrar” aquele que recebe, por parte de quem imputou tal *gessī – como Arianrhod, impôs a seu filho Lleu, no galês Mabinogi, neste caso, como se trata de uma “condição” imposta pela própria mãe, o termo galês é tynged, “destino, fado”, em Proto-Céltico *tonketos, cuja superação por parte de Lleu requereu o auxílio do tio Gwydion, ao mesmo tempo que demonstra sua natureza nobre e sobre-humana por superar tais limites).

E hoje? O que faremos?

Há uma compreensão inadequada, especialmente entre neopagãos, de que “disciplina ascética” é algo restrito ou confinado a certas formas de Cristianismo. Este tipo de compreensão, infelizmente, é fruto da ignorância geral sobre como as religiões antigas operavam, somada a uma adoção positiva da caricatura maldosa que o próprio cristianismo fez dos “paganismos”. As pessoas acham que decisões “radicais”, como a de deixar a “vida comum” para ir para um “mosteiro” ou “templo” são coisas de fanáticos cristãos. Isto é um erro. Até mesmo certas práticas de abstinência (de comidas, sexo, etc.) são associadas somente ao fundamentalismo cristão. Já apontamos uma chave de compreensão importante: entre as fés IEs, não há uma “democratização igualitária”, universalmente válida para todos, de certas demandas e requisições de cunho ascético. Este ponto por si só, já é, no meu entender, bem útil e digno de maior reflexão. O primeiro passo importante é livrar-se do preconceito e do ranço anti ascético, compreendendo que não é algo compatível, da mesma forma, com a natureza de todos. O segundo passo, no meu entendimento, será a compreensão de que isto será uma certa opção para “poucos”, e pela parte “sacerdotal” de nossa natureza, mesmo que nela predomine o aspecto guerreiro ou produtivo.

Em termos tradicionais, os politeístas contemporâneos que almejam uma vida ascética carecem de um elemento importante abundante na Antiguidade: a existência de templos e de corpo sacerdotal com serviço regular e estabelecido desde “sempre”, digamos. E mesmo que decida seguir numa senda filosófica, cuja literatura é abundante e disponível, será muito difícil, ou mesmo impossível, replicar o mecanismo tradicional de “mestre-discípulo” pelo menos se olhar para a Filosofia como estudada nas Universidades contemporâneas dominadas pelo ranço marxista e pelo fanatismo dos que se acham “progressistas”. Mesmo que alguém procure as maiores autoridades acadêmicas de seu país em Neoplatonismo ou Estoicismo, terá uma profunda decepção de constatar que, muito possivelmente, o entendimento de filosofia destes sujeitos será muito distante do de seus respectivos objetos de estudo. Quando não serão ateus ou cristãos, ou pior, marxistas, poderão ainda sim manter uma nível de separação considerável entre o estudo profissional e a prática/engajamento pessoal.

Isto, claro, em se tratando de Hellenismos e de uma prática “formal”, digamos. A resposta que Zenão de Cítio (o fundador do Estoicismo) obteve do Oráculo de Apolo, especialmente em tempos onde os referenciais são ainda mais difíceis, ainda é válida (ele se dirigiu ao famoso Oráculo de Delfos para pedir orientação “existencial”). De fato, é possível recorrer aos “mortos” (as obras escritas dos filósofos antigos), talvez mesmo driblando o “mediador”, mas a adoção de uma “vida filosófica”, de uma vida “contemplativa” e da correspondente askēsis requer uma “conversão” real, uma mudança de vida significativa. Sob a perspectiva tradicional também não faz sentido um “estoicismo” ou “neoplatonismo” que não seja próximo do helenismo religioso, do Hellenismos, ao menos no nível de “família religiosa” (indo-europeia). A ideia de destacar certos sistemas de suas matrizes civilizacionais é mais um risco que uma vantagem (quem duvidar que olhe o calibre e naipe dos “praticantes de Yoga” das grandes cidades nos países ocidentais) num ambiente tão “antitradicional” quanto certos contextos e locais de nossa época.

Mas vamos lá, a opção ascética de “vida filosófica” neoplatônica, estoica e talvez mesmo cínica (apesar do risco de ser preso) estão abertas e são vias possíveis. Tradicionalmente, implicarão uma conversão ao Hellenismos, num nível ou noutro. A devoção a uma divindade específica e seu serviço poderão sim serem resgatados no futuro: erguendo-se templos, redescobrindo-se bosques, onde houver fé genuína e piedade santa, ou mesmo onde o poder de um deus manifestar-se-á, as coisas normalizar-se-ão. Isto, obviamente, é válido também para os caminhos célticos. Mas estes, diferentemente das paragens greco-romanas, não possuem uma literatura filosófica minimamente preservada que permita um mergulho direto nos textos. O mergulho literário dos celtas será “tortuoso”, “curvo”, repleto de enigmas, ambiguidades (na verdade, “triguidades”!) e voltas, com os enlaçados e curvas da estética La Tèniana. As antigas corporações druídicas se foram e o trabalho de sua renovação e renascimento é árduo e estará em “progresso” por um tempo ainda, além de não estar imune a desvios ou ataques de embusteiros e charlatões. No nosso caso, do Iberoceltismo, assumimos a posição pragmática de ver na possibilidade moderna um novo *banssus, um novo costume, que apesar de ser novo, e fruto de nossa gestação, digamos, e de que por isto mesmo, não reivindicar continuidade material estrita, é uma possibilidade alicerçada em certos vislumbres perenes. Daí a via trifuncional e as propostas específicas que cremos harmonizadas com o que sabemos do passado e com o que vemos, até onde nos é possível, do Eterno.

Referências dos dicionários citados no texto:

CHANTRAINE, Pierre. Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Paris: Éditions Klincksieck, 1968.
BEEKS, Robert. Etymological dictionary of Greek. Vol. I e II. Leiden/Boston: Brill, 2010.
MATASOVIĆ, Ranko. Etymological dictionary of Proto-Celtic. Leiden/Boston: Brill, 2009.

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