O propósito de Marte é ser Áristos

Ares de Alkamenes, 420 a.C.

Marte é o homem, aquilo que metade do planeta é, ou deveria ser. Detestado pelos covardes, temido pelos fracos e celebrado nas culturas Indo-eurpeias. Marte como ação e força capaz de subverter ou de manter a Ordem, é sempre o primeiro alvo dos tiranos, seja no intuito de subjugar, seja no de instrumentalizar. Por isso precisa estar sempre em relação próxima com a Areté e o Dharma. Deve seguir códigos sátvicos, ou seja, códigos solares, criados pelos melhores dos homens. E quem seriam os melhores dos homens?

A raiz i.e. *arya- gerou no sânscrito a palavra arya “nobre”, e no grego antigo áristos. De acordo com Junito de Souza Brandão, “agathós, em grego, significa bom, notável, “ábil para qualquer fim superior”, o superlativo para agathós é áristos, o mais notável, o mais valente, e o verbo daí formado é aristeúein, “comportar-se como o primeiro”. Pois bem, areté pertence à mesma família etimológica de áristos e aristeúein, e significa por conseguinte, a “excelência”, a “superioridade”, que se revelam particularmente no campo de batalha e nas assembleias, através da arte da palavra. De áristos com o verbo kratein, o que tem poder, o que pode governar, mandar, formou-se a palavra portuguesa: aristocracia, o governo dos melhores, que se diferencia da democracia, o governo, o poder do demos, o povo”. O apogeu de um guerreiro é ser um áristos, um arya. E a Ordem celeste em si mesma expressa o código de conduta para que Marte pavimente sua aristia, os feitos pelos quais merece a glória.

Áries, o 1º signo e 1ª Casa do zodíaco, é como entramos neste mundo. Ele é o instinto primordial de procriação, é o ato sexual, a fecundação e o nascimento. É o sangue, a dor, os gritos e o impulso através do qual todos nascemos. Ao contrário do Sol, Marte não nos concede uma alma, a força que anima e dá vida. Na verdade, Marte é o grande aliado do Sol. O que ele fornece é a carne, o sangue e o sêmen para que a vida mortal se faça. É impulso, energia, ímpeto de conquista, coragem, o guerreiro e a bandeira. Marte é a masculinidade em seu estado puro, e precisa ser gerenciado com cuidado porque, uma vez iniciada, a linha que separa a violência dhármica da gratuita é tênue. Assim como Ares é o pai de Pathos e Phobos na tradição grega, Marte é Thamas: raiva, apego e medo na cultura Hindu. Nesta última ele também é Kartikeya, o general dos deuses que nasceu dentro de uma montanha e de imediato pôs-se a destruí-la com seu fogo. Marte é a seta, a arma, o metal e a perfuração. No corpo ele é a cabeça, a parte pela qual nascemos, a que primeiro vê a luz do dia.

Na técnica do Vastu a direção de Marte é a mesma de Yama, deus dos mortos: o Sul, aonde habitam os Pitrs, ancestrais. Antes de Plutão, a religião romana cultuava Marte como deus vinculado ao mundo dos mortos. Os altares mais antigos a Marte em Roma ficavam sob a terra, e existe um no qual está representado como esposo de Proserpina. De fato, a terra, tudo o que está nela e abaixo dela pertencem a Marte. O território, os minérios, o rebanho, os povos e seus sangues, pertencem a Marte. De cada mulher que dá à luz e tem seu sangue e placenta descartados, de cada homem, kshatrya ou não, que verte sangue em campo de batalha defendendo ou conquistando um território, de cada vivente que morre e na terra é sepultado, Marte recebe estes fluidos corpóreos como tributo. É assim que ele concede a terra a uma determinada família, tribo, pólis ou nação que ali, geração após geração, viveu, guerreou, trabalhou e morreu, gerando o direito sagrado de possuí-la e o dever, igualmente sagrado, de defendê-la.

Enquanto regente da morte, Marte é o senhor da Casa 8, signo de Escorpião, aonde fazemos o sacrifício último e descemos ao Reino dos Ancestrais, também este erigido com o tributo de sangue vertido até as profundezas daqueles que já viveram e morreram em um dado território. Em oposição direta a Escorpião está Touro, a terra e suas riquezas, o axis que demonstra para onde Marte sempre mira, seu objetivo de conquista e manutenção. Não à toa, Touro é uma constelação de Vênus. De fato, em oposição direta a todo signo de Marte, fica um de Vênus, sobre o qual lança seu 7º aspecto, o de conquista. Em oposição a Áries está Libra, aonde Vênus rege as relações sociais e matrimoniais, a justiça e a diplomacia. O 8º aspecto de Marte é sobre aquilo que quer destruir, matar, e seu 4º aspecto é sobre o lar, a família, a genos, aquilo que quer proteger.

Para Marte o Sol é o líder, o rei, ou o pai a quem jura lealdade e segue no campo de batalha, acatando as ordens pela manutenção da ordem social. No Sol, os homens podem confiar, pois lhes dá energia e direção. O Sol é o coração que bombeia, Marte é o sangue que corre nas nossas veias, e assim se produz a energia que movimenta o corpo. O Sol é o rei, o chefe dos nobres, que obteve a exaltação máxima no campo de batalha. É portanto o maior dos áristos, aquele que tem a conduta na qual Marte deve mirar-se. O Sol é Aryaman, o nobre que mantém a coesão social e o propósito Sattva das ações dos guerreiros. E por ser Thamas, Marte precisa estar sob a influência do Sol. Mas quando no mapa de um homem Marte está em conjunção ao Sol ou no signo de Leão precisa cuidar com os excessos. Marte em Leão é a honradez, a bravura e o compromisso para com o rei e a pátria, a busca pela glória. Este homem quer ser cantado pelos bardos. Mas é também aonde se sente cólera! Lembre-se de Aquiles na Ilíada: ele alcançou a glória imorredoura dizimando o exército troiano, mas também a fama de ter deixado seus irmãos gregos perecerem nas mãos dos troianos durante dias por orgulho ferido.

Mercúrio é a criança, é imaturo. A relação de Marte com ele deve ser a de um mestre para com um discípulo. Ensine-o as artes marciais, assim como lógica, mecânica, etc. O homem que tem Marte em conjunção a Mercúrio tem que se habituar a ponderar antes de falar e a distinguir suas palavras para não ser desnecessariamente agressivo. Assim também quando Marte está em Gêmeos há uma tendência à irresponsabilidade no que tange ao discurso, você fala sem pensar e cria brigas desnecessárias. É o oposto do que um áristos deve ser em assembleia. Mas quando está em Virgem, Marte está no campo de batalha, está sempre alerta. Este Marte edifica sua saúde e constrói seu corpo para ser ele mesmo uma arma de guerra. Marte não pode se deixar influenciar pela leveza e as brincadeiras de Mercúrio. Deve impor respeito, inspirar admiração, tê-lo como seu discípulo ou irmão mais novo, criar as novas gerações de guerreiros e alistá-los no momento apropriado.

Júpiter também é Sattva. Ele é o guru, seu professor, líder espiritual, aquele que auxilia a não permitir que os instintos destrutivos desvirtuem o caminho da luta dhármica, do propósito elevado e da conduta virtuosa. Júpiter escreve as leis e textos sagrados, ele traduz a realidade divina, a Ordem cósmica, em palavras e ensinamentos mortais. Somente conhecimentos e filosofias enraizadas na Ordem previnem que Marte seja instrumentalizado por tiranos. Quando o mestre fala Marte deve escutar e deixar-se inspirar. Ele é tão importante quanto o Sol. De fato, Marte, Sol e Júpiter são os 3 Grahas de fogo e donos naturais das casas Trikonas, aonde o Dharma se produz na personalidade e no destino de um indivíduo. Marte é o 1º deste estágio, o Sol é o 2º, e Júpiter é o 3º, a ascese. Por isso Júpiter é o futuro do Marte que transcende a matéria. Quando em Sagitário Marte só entra em guerras por causas dignas, para defender a retidão, a justiça e a fé. Mas tem também o desafio de manter-se razoável e evitar o radicalismo. Neste signo ele pode também se radicalizar e, por crer que suas convicções são a única verdade, pode desumanizar os outros e cometer crimes de guerra. Em Peixes, Marte é o artista marcial e o brahmacharya, vai optar por uma vida de austeridades e meditação, celibato antes do casamento e fidelidade depois dele. Este Marte já lutou demais em outros tempos, e agora está carregado de sabedoria para alcançar o estágio de Júpiter.

Uma vez que é masculinidade em seu estado puro, Marte tem dificuldade para lidar com o feminino, oscila entre incompreensão e atração. Vênus e a Lua são portanto o seu 2º maior desafio, porque acordam seus instintos de conquista e reprodução – e metade do mundo é feito de mulheres, não falta desafio. Marte deve ter respeito por elas e por si mesmo. Preservar-se e a elas também. A conquista como uma brincadeira, uma diversão, cabe a Mercúrio, o menino, não a Marte, muito menos a um áristos. Quando Marte conquista Vênus ela o desposa e se torna para ele o equivalente à Vitória, e a Honra, deusas com as quais ele se casa na Grécia e em Roma respectivamente. Mas é quando age como um menino irresponsável para com a Lua e Vênus que a Honra dá as costas para Marte. Nos signos da Lua Marte vai se pôr a serviço da Rainha, é comum entre estes homens a obsessão pela defesa do lar, da família e da nação. O que Marte mais gosta de fazer em câncer é de prender criminoso. Mas como a linha é tênue, este posicionamento também cria criminosos. Vênus também é Guru, quando em seu signo, ele faz dela a sua inspiração e é sensível às causas femininas. Em Libra ele é um diplomata, um estudioso das leis, luta por justiça; em Touro se preocupa com a defesa do território e suas riquezas, e tende ao Sobrevivencialismo.

Finalmente, a mais difícil das relações de Marte é aonde está a sua maior façanha, sua glória e exaltação. Saturno é seu maior antagonista, em termos astrológico, seu Graha inimigo. Marte é juventude e ímpeto sexual, Saturno é idoso e estéril. Enquanto Saturno impõe limites, tempo e barreiras, Marte é a impaciência e o pé na porta. Saturno é demos, o povo, Marte quer edificar-se como áristos. Esta relação é sempre dura, áspera e dolorosa, mas nesta conjunção ou no primeiro signo de Saturno, Capricórnio, Marte aprende a servir e se torna soldado. Em Capricórnio, Saturno ensina que para cumprir seu Dharma Marte deve ir à luta, em sentido literal. E é marchando sobre o cadáver do inimigo que Marte obtém sua exaltação. Já em Aquário tudo se inverte, Marte é um civil, membro da plebe, e se torna o revolucionário. O desafio deste Marte no estágio em que estamos da Kalyuga é sair do ambiente virtual e ir às vias de fato, extrapolar a construção do discurso de contestação que legitima a violência e empregá-la. Porque, verdade seja dita, sem violência, sem violação do status quo, não há revolução.

É fundamental que Marte compreenda que enquanto idoso, Saturno é um sábio. Às vezes, é um velho guerreiro que ao invés de morrer em batalha alcançando as esferas superiores no pós-vida, viveu para tornar-se frágil, lento e dependente. Na tradição hindu Saturno é Shani, ele pôde escolher um dádiva divina, e a que escolheu foi a de ser temido por todos, a consequência é que ele mesmo vive com medo. O sentimento que Marte mais evita e despreza é o medo, mesmo em um inimigo. E o que Marte mais teme, é tornar-se Saturno, privado de uma morte gloriosa e relegado à decrepitude. Vê-se, então, que Saturno é o maior inimigo de Marte por ser também o pior de seus medos. É também por isso que na Casa de Saturno, ele encontra sua exaltação, uma vez que aí enfrenta o seu maior desafio. Ao superar o medo, e abaixar as armas para aprender com a sabedoria do ancião, Marte descobre seus limites, os deveres e desenvolve disciplina, que leva à excelência e à própria Areté, e por conseguinte, pavimenta o caminho para a sua aristia pessoal.

Em suma, a dinâmica da Ordem celeste implica que todo guerreiro precisa antes de mais nada de crenças, de um código que conduza à Areté. Sem o qual o guerreiro é um potencial desperdiçado, correndo mesmo o risco de tornar-se um antagonista da Ordem. É este código que vai guiá-lo em seu segundo passo: escolher um rei a servir. O conjunto de crenças também auxilia o guerreiro a escapar das distrações infantis, a equilibrar sua conduta para com as mulheres, e lhe dá forças para superar o medo, vencer a guerra e construir sua aristia.

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