Druidismo na Ibéria e Iberoceltismo

Este texto parte dos pensamentos sobre o Druidismo em geral que publicamos cá e deveria ser lido após este.

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Sabemos de forma muito sólida que haviam sacerdotes entre os Celtas da Ibéria, seja pelo relato da execução de sacrifícios e augúrios, seja pelas evidências arqueológicas materiais. O que não sabemos, é, justamente, se tais sacerdotes eram tão organizados e unificados e se eram uma corporação iniciática como nas Gálias, ou seja, não sabemos se eram um “Druidismo” propriamente e menos ainda (na verdade, não conheço nada) se tinham origem ou ligação com o Druidismo galo-britânico. Ou seja, não sabemos se havia um Druidismo, nem se este era “autóctone” ou era originário do Druidismo galo-britânico.

Apesar de não haver um palavra final, cientificamente, minha posição será de que, não havia um Druidismo nos moldes galo-britânicos na Ibéria. Se havia alguma forma de “Druidismo”, era autóctone e não “unificado”.

Na Celtibéria, temos um fragmento famoso de um vaso que representa dois sacerdotes com túnicas longas (sem mangas), cintos e chapéus pontiagudos sacrificando uma ave sobre um altar. E só. Na Galécia, temos chapéus metálicos em ouro (que alguns creem ser vasos) parecidos com alguns achados nas Gálias que sabemos serem de uso sacerdotal e o registro do termo, como epíteto divino, “DVRBEDICO” que gente como eu, lê como “druídico”. Os registros na língua lusitânica possuem interpretação muito disputada para nos auxiliar em algo, mas em nenhum (mesmo considerando que praticamente todos sejam de cariz religioso) tem-se um termo que seja etimologicamente relacionado a “druida”.

Arqueologicamente, o reconhecimento de estruturas edificadas como santuários no interior dos castros avançou bastante recentemente, deixando claro que nossos ancestrais não limitavam a atividade de culto a santuários ao ar livre, mas também edificavam espaços para culto dentro das povoações. A quantidade de parafernália religiosa (vasos, recipientes, adagas ou machadinhas, etc.) indica serviço regular que, naturalmente, pressupõe um clero. Por “clero”, obviamente, podemos nos referir a operadores diversos: adivinhos ou áugures, por exemplo, “invocadores” e sacrificadores e assim por diante. Em comunidades maiores, é de se supor que houvesse maior especialização de funções; em comunidades menores e mais “isoladas”, é de se esperar uma certa concentração de funções. Se há, de fato, uma certa uniformidade cultural ou semelhança geral ao longo dos povoados tipo “castro” no ocidente da península, na Celtibéria há certas diferenças mais notáveis que talvez não nos permita tratar as coisas como válidas para todos.

Um clero “unificado” deixa mais perceptível características como: terminologia religiosa e doutrina comum, liturgia e execução de sacrifícios parecidas, concepção de santuários e leitura da geografia sagrada também similar, estrutura “panteônica” ou mesmo “panteão” unificado, etc. Por outro lado, a própria herança Indo-Européia comum encaminha uma boa parte destas coisas sem que no entanto houvesse um intercâmbio e reunião periódica de sacerdotes distribuídos por um vasto território. Obviamente, tudo isto dificulta bastante. Mas, quando comparamos com o que se tem arqueologicamente da Gália e juntamos com a ênfase que escritores romanos e gregos deram a identificação de uma corporação sacerdotal sui generis lá, considerando o quanto os romanos, por exemplo, escreveram e estiveram pela Ibéria, ficamos com a impressão de que se não relataram isto na Ibéria… é por não acharem relevante. E ficamos a pressupor que não fora revelante aos olhos romanos, por não ser algo como o gaulês e por não se diferir significativamente.

Diante disto, de minha parte, creio que não havia um Druidismo, nos moldes galo-britânicos, na Ibéria. Se houve algum tipo de organização religiosa supra-tribal entre celtibéricos, vascões, vaqueus, lusitânicos, célticos e galaicos, parece não ter deixado evidência literária ou mesmo arqueológica tão significativa, até o presente momento, pelo menos. Até pode ter havido “Druidismos” autóctones e independentes (um celtibérico e um galaico, por exemplo), com algum nível de organização hierárquica e “padronização”, além de centros religiosos (que sabemos que havia), mas mesmo nesta hipótese me parece difícil ligá-los aos Druidismos goidélico ou galo-britânico.

Apesar disto, sendo manifestação da Religião Céltica, não se poderia esperar, no plano da doutrina, posições antagônicas e totalmente diferentes do que se vê no Druidismo hibérnico e galo-britânico. É bom frisar. Me refiro muito mais a questão de organização sacerdotal. Do contrário, boa parte de nossos esforços de reconstrução poderiam ser lançados fora: dialogam e partem de evidências insulares e continentais que, justamente, cremos ser parte da RC em termos mais gerais, e não somente de uma ou outra manifestação bem específica e delimitada, geográfica e temporalmente.

A romanização, pelo menos na Galécia, parece não ter mudado muito certa estrutura de poder religioso e político, apesar da instalação das estruturas políticas romanas, de modo a haver quem (A. Peña Graña, apesar de sua corriqueira confusão conceitual e “viajadas” de pouco rigor metodológico) especule que certas organizações do Alto Medievo (da época da invasão sueva da Galécia) sejam uma continuidade de uma organização céltica pré-romana, mudando-se somente a religião: antes druidas locais, agora bispos católicos… Mas mesmo num modelo bem generoso e especulativo assim, um sujeito como este citado, não parece crer que haja uma relação causal entre o “Druidismo” da Galécia e o galo-britânico. Além de que, não se explica como a chegada dos Suevos, que dominara politicamente a Galécia, não alteraria nada. A proposta de continuidade de organização político religiosa do sr. Graña ou pressupõe que a invasão Sueva, bem sucedida militarmente, se rendera a um modelo anterior e não alterou nada ou simplesmente ignora a chegada Sueva.

Se de fato haveria alguma continuidade céltica com as organizações políticas do Alto Medievo (e as fontes literárias também não são lá tão abundantes), sem que os germanos alterassem muita coisa, e a utilizássemos por engenharia reversa para traçar uma visão geral de como as coisas estavam organizadas (em termos de território, política e religião) no tempo da conquista romana, anda sim não teríamos um quadro que aponte para uma “unificação” do clero pré-cristão. Mais uma vez, creio eu, veríamos “Druidismos” locais, aparentados ou semelhantes por serem RC, lógico, mas diferenciados.

Haviam sacerdotes, muito possivelmente especializações destes e podemos supor, talvez, até collegia iniciáticos, mas não me parece que fora como na Gália, Britânia ou mesmo na Irlanda do séc. V, de modo algum. Neste aspecto, em termos de atividade sacerdotal altamente organizada, a atividade sacerdotal dos celtas da Ibéria talvez se aparentassem mais com as tribos germânicas, ou com os romanos mesmo, dos tempos arcaicos, antes da “padronização”.

A Romanização e a Cristianização.

Se esta perspectiva estiver correta, a proibição do Druidismo afetou muito pouco (ou quase nada) o que acontecia religiosamente na Ibéria. Neste sentido, a RC da Ibéria, por pressões externas de prestígio social, apesar da reiterada afirmação identitária do uso litúrgico na língua nativa e do culto aos deuses locais mesmo por parte de elites romanizadas, com os séculos seguintes romanizou mais e com a vinda dos Suevos, ficamos de imaginar que algo também fora acrescido ou resgatado.

Na época do bispo cristão Martinho de Braga (séc. VI), como se sabe, havia uma continuidade da prática religiosa antiga na franja atlântica da Ibéria. De fato, é perfeitamente defensável dizer que houve continuidade religiosa até o séc. VI e VII (se formos mais generosos, até o VIII). Neste caso, talvez não tenhamos, estritamente, Religião Céltica, mas uma religião de base popular celta que incorporara e sincretizara elementos romanos e germânicos. Estes últimos, reavivariam os elementos comuns (como o olhar religioso para certos animais e árvores) da Celticidade que foram  abandonados ou diminuídos com a Romanitas e trariam coisas novas. Além de que, em termos “oficiais”, as autoridades suevas eram cristãs arianas.

E sob uma perspectiva interna, na época do culturicida (haja neologismo!) católico citado, esta religião sincrética era pujante e viva: o mesmo despendeu inúmeros esforços para acabar com a tradição dos hinos “pagãos” galaicos (as *dawnās, como as chamamos), cujo poder e tradição era tanto que até mesmo os cristãos os utilizavam nos missais da época (talvez os priscilianistas não vissem problemas com isto, ficamos a especular) dentro de suas igrejas (!), não logrando muito êxito, apesar de ser tido como responsável pelo fortalecimento dos cantos monofônicos na Galécia.

Num contexto como este, de intensificação da repressão e guerra “religiosa”, não é de se esperar que sacerdotes “pagãos” fossem claramente identificados num corpo organizado, hierárquico e fechado. Creio que, nestas circunstância, o “sacerdócio” era uma função executada por alguns sujeitos mais zelosos, mas que talvez não fosse assumida de forma “integral”, muito menos organizada em termo “institucionais”.

Se no século VI, nossos ancestrais rogavam a Reus ou a Jove (e estes com características do Ðonar germânico), não fica, exatamente claro. Sabemos pela peculiaridade de certos cultos do catolicismo popular que, por exemplo, o culto a Návia e a Bandu devem ter sobrevivido até estes dias (atestadamente o culto a Endovélico permaneceu até o séc. V), talvez com teônimos já não tão enfatizados e centrados nos epítetos (que passarão aos supostos “santos” católicos). É bem possível que nesta época, já não haja muito de língua litúrgica (se pensarmos na situação galo-romana do séc. VI, VII e mesmo IX, com o glossário de Endlicher, veremos que houve alguma continuidade). E aqui abri-se a brecha para uma questão metafísica sobre as Divindades, “sincretismos” e os “porquês”.

De minha parte, creio que a mentalidade de “tradução” das elites romanas tenha se espalhado pelo povão, e não fora concebido como um problema, ou que os nativos, eles próprios, realizassem um processo parecido, tornando “normal” combinações e substituições de teônimos. Filosoficamente, se concebermos (imaginem que escrevo sob uma influência neoplatônica) monádicamente a divindade, sendo seu “centro” sua essência, temos uma possibilidade, aparentemente, infinita de referências ao centro como são os pontos no diâmetro de um círculo. Por favor, antes que algum imbecil venha cá azurrar, não estou dizendo de modo algum que os nossos ancestrais viram deste jeito, apenas compartilho uma especulação simples. Sem contar que, após gerações onde se rogasse a um “santo”, teríamos trocado o “centro” (e isto deixaria o processo de conversão cristã mais blasfemo e macabro, digamos), mantendo os raios (epítetos) e ficaria difícil de explicar como as Divindades simplesmente deixariam isto acontecer (ao menos que subscrevêssemos a uma teologia policêntrica, real fundamento das noções de trindade que os cristãos tentaram copiar, onde o “santo” seria um centro diferente mas ainda parte). De fato, é algo misterioso e que requer meditação profunda.

Faz tempo que creio que uma parte considerável dos “milagres” reportados a “santos” na Era Medieval, teriam como agentes os Deuses Antigos, mas por outro lado, a repetição e prevalecimento do discurso cristianizado nestes eventos nos dão a entender que talvez as divindades não se preocupem com quem “leva o crédito”. Enfim, paremos tais especulações por aqui, pois nos levaria demasiado longe.

Renascimento e Diferenças.

Como disse que na Ibéria não teria havido Druidismo galo-britânico ou goidélico, ou seja, os “Druidismos”, como geralmente concebidos, talvez alguém conclua que direi não ser válido surgirem grupos de Druidismo em Portugal, Espanha ou nos países gerados por eles nos dias de hoje. De modo algum diria isto. Primeiro por ser o Druidismo moderno, algo diverso. E inclusive, algo que, partindo de uma base étnica, poderia perfeitamente tornar-se “global” (mais ou menos como os Hare Krishna). Segundo, exatamente por esta base étnica, ser algo possível aos povos que a herdaram. No entanto, para ser franco, esperaria um Druidismo “galego”, um “celtibérico”, renascido, e não uma simples “cópia” estrangeira. Neste sentido, considero que o pessoal da IDG vai bem, por exemplo.

Resumindo, pelo “sacerdocentrismo”, o Druidismo pode ser entendido como universalizável ou como uma maneira de organização própria do clero especializado de uma fé étnica celta. Neste sentido, é que, uma vez mais, considero os reconstrucionismos divergentes (ou seja, nós cá no Iberoceltismo!): possuem uma base e um horizonte étnico. Isto não significa que politicamente seja chauvinista, mas apenas que se atem a um horizonte diferente: que sob a perspectiva “diplomática”, digamos, é mais restrito, mas que sob a perspectiva propriamente cultural, é mais holístico.

Estamos mirando não apenas a via do sacerdote, em sua encantadora senda. Miramos a via cotidiana dos campesinos, artesãos, donas de casa, etc. Miramos a via do guerreiro. O culto doméstico, as práticas populares do dia-a-dia e assim por diante. Miramos a ampla e holística base da RC, resumidamente. E por esta amplitude etnicamente centrada, que penso que a continuidade histórica sincretizada não deveria ser inteiramente excluída por nós; neste caso, eu entendo que aqueles que optam por uma prática Hispano-Romana estão justificados como uma via válida e possível. E diria o mesmo de uma abordagem centrada no séc. V: de uma fé popular hispano-romana com influências germânicas. E pelo menos para mim fica claro que não estamos falando de “Druidismo” mais.

Para encerrar, é importante frisar que é perfeitamente possível a uma pessoa que decida trilhar a via sacerdotal, ser instruída e iniciada em uma corrente druídica (de um Druidismo galego, digamos) e ao mesmo tempo continuar iberoceltista, inclusive oficiando certos ritos para o restante da comunidade. Não há conflito nem problema nisto, exatamente por entendermos o Druidismo como uma via possível para o sacerdócio. Mas não a consideramos a única possibilidade, sequer a preferencial para alguns, nem consideramos este via como sinônimo da RC como um todo.

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