Tradução: Alain de Benoist – “A Civilização Céltica”

Trecho do livro “Nova Direita, Nova Cultura: antologia crítica das ideias contemporâneas” (Vu de Droite: anthologie critique des idées contemporaines) do filósofo francês Alain de Benoist. Trazemos cá a tradução João Salvador Pacheco de Amorim, conforme publicada pela Edições Afrodite, Lisboa em 1981. Comentários nossos aparecerão entre colchetes.

A civilização céltica

“Se a excelência das raças devesse ser apreciada pela pureza do seu sangue e a inviolabilidade do seu carácter, nenhuma, é necessário confessá-lo, poderia disputar em nobreza aos restos ainda subsistentes da raça céltica”. Tal é a opinião de Ernest Renan.

Estes “restos da raça céltica” continuam a despertar a atenção de vários investigadores. Jean-Jacques Hatt, conservador do Museu Arqueológico de Estrasburgo, deu à estampa um estudo intitulado Celtes et Gallo-Romains. O jovem arqueólogo Guy Rachet publica ensaios sobre La Gaule Celtique e La Gaule Romaine. À revista Nouvelle École consagra dois números especiais à civilização céltica. Jacques Harmand, mestre de conferência na Faculdade de Letras de Clermont-Ferrand publica, ele também, uma obra sobre Os Celtas (ed. Fernand Nathan). E o surrealista bretão Jean Markale, de 43 anos, professor de letras em Paris, autor de Celtes et la Civilization Celtique (Payot, 1969) coloca ao alcance do público francês, com L’Épopée Celtique d’Iriande e L’Épopée Celtique de Bretagne bastantes textos de que ele apresenta, aliás, uma interpretação altamente contestável, mas que não eram traduzidos desde d’Arbois de Jubainville (L’Épopée Celtique en Irlande, 1892) e Georges Dottin. (L’Épopée Irlandaise, 1925).

Originários da Boémia e da Turíngia

Para os Antigos, os celtas eram homens que vinham do frio. “Aqueles que estão para lá da Ibéria”, escreve Aristóteles, “vivem num clima tão frio que o burro, lá, não sobrevive”.

“Dos habitantes da Gália”, diz o historiador latino Amiano Marcelino (séc. IV) formarem eles «um povo chamado Celtas, do nome de um rei de amada memória, ou Gálatas, do nome da mãe desse mesmo rei. Partindo deste último nome, os gregos construíram o de Galos ou Gauleses”.

É cerca de – 2200 que as primeiras tribos indo-europeias, portadoras da cerâmica e do machado de combate, surgem no leste de Franca. É aí introduzem a roda e o cavalo. Cerca de —1500 (bronze médio I) assiste-se à multiplicação dos tumuli funerários; devidos à primeira vaga de proto-celtas.

Enfim, cerca de —1250, as grandes migrações célticas cobrem a Bélgica, a Holanda, a Inglaterra, a Franca, a Suíça e a Espanha. Esta dispersão deverá estar ligada à extensão da civilização dita “dos campos de urnas” na Europa central, até talvez às catástrofes naturais de que a lenda da Atlântida e a da cidade de Ys, engolida pelas ondas, poderão ter perpetuado a lembrança.

Falando sobre o povoamento da Gália, Amiano Marcelino evoca, com efeito, “populações transrenanas expulsas dos seus lares, quer pelas vicissitudes da guerra, estado permanente em que se encontram essas regiões, quer pela invasão do fogoso elemento que ruge nas suas costas”.

“É bem possível”, escreve Rachet, “que aí se manifeste o eco de certas submersões de terras costeiras na época do bronze, como a das margens alemãs do mar do Norte e as que causaram o desaparecimento de locais vizinhos da ilha de Héligoland, e que foram, sem dúvida, a causa das migrações de povos destas regiões que tinham escapado ao cataclismo”.

O berço dos Celtas propriamente dito situa-se entre a Baviera e a Lussácia, mais precisamente, na Boémia-Turíngia.

Aos olhos dos Antigos, a Germânia não era mais, aliás, do que uma subdivisão da Céltica. “Comparados aos Celtas”, escreve Estrabão, “os Germanos oferecem bem pequenas diferenças. Têm, por exemplo, costumes mais selvagens, e são de mais alta estatura. São também mais louros mas, salvaguardando estas pequenas diferenças, assemelham-se muitíssimo, e podem encontrar-se entre eles os mesmos traços e o mesmo tipo de vida. Essa é, aliás, a razão que levou os Romanos a dar-lhes o nome que têm, pois que estes reconheceram neles os irmãos dos Celtas, e assim denominaram-nos de Germanos, palavra que, na sua língua, designa os irmãos nascidos de um mesmo pai ou de uma mesma mãe”.

Distinguem os especialistas, no que respeita à era céltica, dois grandes períodos, aos quais correspondem dois locais particularmente importantes: Halstatt, na Austria, a partir de 900 a. C., e La Têne, na Suíça, a partir de — 600.

[Hoje, especialmente por causa de estudos genéticos, se cogita que a celtização do Ocidente europeu ocorrera um pouco antes, além de haver quem defenda – na hipótese da Continuidade Atlântica – que houvera certa fusão e desenvolvimento “local” da celticidade, de modo que não seria tão claro diferenciar um grupo propriamente “céltico” vindo da Europa oriental, já haveria uma sedimentação Indo-Europeia forte – e que poderíamos chamar já de Proto-Céltica, digamos. Inclusive, neste aspecto há um trabalho relevantíssimo sobre a proximidade entre Germânicos e Celtas, seja nas rotas comerciais e trocas culturais mais amplas, desde antes mesmos de 1500 a.e.c. até o alto Halstatt pelo prof. John T. Koch que talvez seja objeto um artigo aqui depois].

O império celta

Situada perto do lago de Neuchâtel, La Têne é um antigo campo celta, que deve ter servido, sem dúvida, de portagem. Aí se encontraram jóias e armas. É durante este segundo período que se constitui o império celta. Cerca de – 600, os Celtas de la Têne encetam a sua marcha em direcção ao sul e ao oeste. Empurram os Ilírios para o baixo Danúbio, invadem a Trácia, a Mecedónia, a Anatólia, a Itália setentrional. Fundam a cidade de Sigidunum (hoje Belgrado) e pilham Delfos com 150 000 homens. Em 381 apoderam-se de Roma e do Capitólio. Em breve o seu domínio estende-se por territórios imensos. Mas, por não ter sido devidamente organizado, a sua existência será efémera.

“Logo que as suas vagas de expansão forem descritas pelos mediterrânicos”, faz notar Harmand, “as pessoas aperceber-se-ão que, para percorrer metade da Europa, ou para passar do Danúbio ao Egipto, não foi necessário aos Celtas mais de uma dezena de anos”.

Por todo o lado se encontram marcas da passagem dos «Gaels» (Celtas): no País de Gales, na Gália, na Galiza espanhola, na Galiza russa, na Galiza turca, entre os Gálatas, mas também (alteração de Gal — em Wal —: Wales, “País de Gales”) na Walónia, na Valáqula, etc.).

A este e a oeste, os Celtas encontram os Iberos e os Lígures, que empurram à sua frente. Pouco sabemos sobre estes povos. O seu parentesco, nomeadamente, não está provado. Nos Iberos, tanto se viram descendentes dos Proto-Indo-Europeus, como dos Berberes que ocuparam as costas ocidentais, desde a Inglaterra até à Africa do Norte. Segundo outros investigadores, tratar-se-ia de indo-europeus vindos das margens do mar Negro, que teriam emigrado para Espanha antes de passarem para a Gália. Quanto à origem dos Lígures, pequenos agricultores de crânio redondo, não é menos incerta.

Na Gália, o período de La Têne situa-se, primeiro, na segunda Idade do Ferro, de mais ou menos 475 até à pax romana. Surge primeiro em Champagne (civilização “marniana”) e depois na Borgonha, na região parisiense e na Bretanha.

A personalidade dos Celtas “continentais” afirma-se rapidamente. A Gália transforma-se sob a sua influência. À população indígena submete-se. Os pântanos são secados. Os Celtas empreendem a exploração da terrível floresta herciniana, que permanecera virgem durante séculos. Desenvolvem, de forma notável, a utilização do ferro para o equipamento agrícola.

O país é rico em minerais. O ouro corre em abundância. Multiplicam-se as minas de ferro. A Gália situa-se na encruzilhada das grandes vias comerciais da Antiguidade: a estrada do âmbar, que reúne o mar do Norte e o Schleswig; e a estrada do estanho, que liga as ilhas Cassitérides (as ilhas Scilly, na ponta sudoeste da Cornualha) à bacia mediterrânica.

A criação de gado compreende carneiros, bovinos e, sobretudo, o porco, animal que jamais é posto sob telha o que, segundo Estrabão, lhe confere um tal vigor que os próprios. lobos evitam atacá-lo!

O deus do martelo, a deusa dos cavalos

J.-A. Mauduit, 70 anos, especialista em arte pré-histórica, autor de um ensaio sobre L’Épopée des Celtes, vê no Celta “mais um instável em vias de se estabelecer, do que um nómada”. E acrescenta: “Contrariamente ao Mediterrânico, homem de cidade, o Celta foi um homem do campo, em comunhão directa com as forças que dele emanam. À sua religião foi uma religião do solo”.

Foi também uma religião do céu. Mas de um céu solidamente ligado à terra. O deus principal do panteão gaulês, Teutates, é o tipo exacto da divindade nacional. O seu nome provém de tuath, “tribo”, e tatis, forma arcaica do galês: tad, “pai”. Quase que se poderia traduzir por “(pequeno) pai do povo”! [Essa etimologia é altamente problemática. É mais aceito, simplesmente *towtāti- “tribal; o que gera a tribo, povoador”].

Figuram entre os outros deuses célticos, Esus, Lug, Dagda, Taranis, deus trovejante portador da roda solar, Brigid (Santa Brígida na tradição cristã), Epona, deusa dos cavalos e das colheitas, etc. Sucellus, o deus do maço (parente próximo de Thor, o «deus do martelo» dos antigos Germanos e, sem dúvida, de Perkúnas, o deus do raio dos Balto-Eslavos) parece ter desempenhado um papel especial como o deixam supor numerosos vestígios.

“Na Bretanha, ainda no século passado”, assinala Mauduit, “persistia a tradição do “martelo da boa morte’. Era um pesado maço que não servia senão para abreviar as agonias dolorosas. O mais velho ou a mais velha habitante da aldeia, após ter prevenido o moribundo, erguia o martelo sobre a sua cabeça e simulava ir-lhe despedaçar o crânio. O moribundo dava, então, o último suspiro. Igualmente se sabe que a morte de um papa é constatada tocando-se-lhe a fronte com um maço; e que só depois é pronunciada a fórmula: “O papa morreu…”.

S. Patrick e Ossian

São em número de quatro as principais festas. Imbolc, no dia 1 de Fevereiro, que sobreviveu na Canderlária. Beltaine, no dia 1 de Maio, que corresponde à célebre “noite de Walpurguis”, outrora festejada na Alemanha e em toda a Europa central. No dia 1 de Agosto, é Lugnasad, festa do deus Lug, que na época de Augusto se confundirá com a do imperador e se tornará a grande festa “federal” da Gália romanizada, Por fim Samain; no 1.º de Novembro, dia em que os mortos irrompem no mundo dos vivos, é, evidentemente, o dia de “Todos os Santos”, véspera do dia dos Finados.

Contrariamente ao que muitas vezes se julga, o druidismo não aparece senão nos sécs. VI ou V a.C. por influências vindas do estrangeiro. [Essa afirmação é demasiado comprometedora e eu mesmo não a faria, apesar de reconhecer que o Druidismo enquanto tal, ou seja, o Galo-Britânico, ser algo que não era pancéltico, como já expomos aqui e aqui]

“É um facto”, constata Guy Rachet, “que os druidas são desconhecidos das comunidades célticas da Europa central e do oriente. Em contrapartida, no tempo de César, estão perfeitamente implantados na Gália, transformada em seu domínio, assim como no sul da Inglaterra. Pode ser que sejam os herdeiros de uma muito antiga casta sacerdotal-que os Celtas teriam conhecido quando desembarcaram na Grã-Bretanha”.

E acrescenta: “Mais precisamente, porque não seriam eles os herdeiros de esses Hiperbóreos de que fala Diodoro, que habitavam uma grande ilha frente à Céltica (e que não pode ser senão a Inglaterra) e que se consideravam todos como sacerdotes do Apolo hiperbóreo, todos os dias celebrado com hinos e cânticos num templo circular ornamentado com ricas oferendas? Esse templo parece não ser outro senão o monumento megalítico de Stonehenge”. [Um ótimo livro que explora academicamente, de modo razoável, a hipótese de serem os “Hiperbóreos” os povos celtas do Norte – especialmente da Grã-Bretenha e da Irlanda é o Hyperboreans: Myth and History in Celtic-Hellenic Contacts de Timothy Bridgman].

Como por todo o lado na Europa, paganismo e cristianismo confrontaram-se duramente na antiga Céltia. Os irlandeses gostam de recordar o legendário diálogo que põe, frente a frente, Ossian e S. Patrick. Ossian recorda com saudade as aventuras dos tempos antigos, o som da trompa e os velhos reis. “Se eles aqui estivessem, dizia a Patrick, tu não percorrerias os campos com o teu rebanho salmodiante”. E mais à frente: “Eis a minha narração, Por muito que a minha memória vá enfraquecendo e que as preocupações me corroam o ser, quero continuar cantando as acções do passado e a viver da antiga glória. Agora estou velho. A minha vida gela e as minhas alegrias vão-se. A minha mão não pode já empunhar a espada, nem o meu braço manejar a lança. Entre os padres prolongam-se os meus tão tristes últimos dias, e são os salmos que hoje ocupam o lugar dos cânticos de vitória”.

Renan escreve: “Não conheço espectáculo mais curioso do que o da revolta dos viris sentimentos de heroísmo contra o sentimento feminino que corria, a jorros, no novo culto. O que exaspera, com efeito, os velhos representantes da sociedade céltica, é o exclusivo triunfo do espírito pacífico, são os homens vestidos de linho e cantando salmos com uma voz triste, que pregam o jejum e já não conhecem os heróis…” (Essais de morale et de critique).

Loegário foi o último rei pagão da Irlanda. Patrick nunca o conseguiria converter. Quis ser enterrado de pé, e com as suas armas. Mas Artur, tendo abdicado da sua divindade, acabou por recitar o pater noster. Ossian acaba os seus dias num claustro. O próprio Merlin se rende aos argumentos de Columbano.

Os Celtas terão a sua desforra, O cristianismo influenciou os seus mitos. Mas estes influenciarão o cristianismo. De onde a longa luta das igrejas bretãs contra as pretensões romanas, contada por Augustin Thierry. De onde Escoto Erígena, Duns Escoto e o brilho intelectual dos mosteiros irlandeses.

Gaélico e britónico

As línguas célticas constituem o ramo mais ocidental das línguas indo-europeias. Elas compreendem as línguas gaélicas, ou “q-célticas” (que conservam em «q» O indo-europeu *kʷ-, como no latim ‘equus‘ “cavalo”) e as línguas britónicas ou “p-célticas” (que transformam o *kʷ- em «p», como no grego ‘hippos‘ ou o gaulês epos, «cavalo» também).

No primeiro grupo figuram o irlandês, o escocês, e o manquês (falado na ilha de Man). Nesse grupo se inclui também a língua dos Celtiberos, que apenas conhecemos por curtíssimas e obscuras inscrições. O segundo grupo inclui o galês, o córnico e o bretão, às quais se acrescenta a língua dos antigos Pictos e o “celta continental antigo”, comummente apelidado de gaulês, ainda que tenha sido falado muito para além dos limites da Gália histórica.

O celta continental desapareceu rapidamente da Europa central e depois (sob a influência do latim) da Gália e da Galécia. Encontram-se traços seus, menos numerosos, aliás, do que aquilo que seria de esperar, em francês, nomeadamente na toponímia

Outras línguas sobreviveram. Algumas estão hoje a renascer sob a influência das tendências políticas e culturais para o enraizamento. Ainda que o francês tenha sido instituído como língua obrigatória sete anos após a anexação da Bretanha (1532), a língua bretã é ainda usada quotidianamente por 750.000 pessoas, das quais 25.000 são monolingues.

“A língua bretã», escreve Paul Sérant em La Bretagne et la France, “não foi nunca falada na totalidade da península armoricana, Mas até ao séc. X, era a única falada a leste de uma linha que ia de Saint-Brieuc até Painboeuf. Hoje, o seu domínio compreende a totalidade do departamento de Finistêre, a terça parte do departamento de Côtes-du-Nord e metade do Morbihan”.

As lendas dos povos celtas são à imagem da sua arte: em formas entrelaçadas. As narrações têm múltiplas repercussões, os heróis têm personalidades complexas. Recolhida pelos literatos irlandeses, os filid, e pelos monges cristãos (que contudo censuraram diversas passagens) a literatura irlandesa compõe-se de ciclos históricos e mitológicos (ciclo de Ulster, ciclo de Finn, ciclo dos reis, etc.), pondo em cena os antigos deuses da Éire, os Thuatha Dé Danann, e heróis legendários, como Conchobar e Cúchulainn.

“Os monges irlandeses”, explica Markale, “tinham transcrito em língua gaélica, desde o séc. IX, a maioria das lendas célticas pagãs e haviam-nas transmitido por via oral, ou mesmo por manuscritos anteriores”. Contudo, “os monges não hesitaram em modificar o que já não compreendiam, ou, ainda, o que chocava o seu zelo cristão. Temos, pois, textos com profusão, mas por vezes incompletos ou deliberada mente truncados”.

A mais importante personagem da tradição gaélica é uma espécie de Hércules celta, chamado Cúchulainn. Um mistério pesa sobre o seu nascimento. Seu pai não seria outro senão o deus Lug, divindade pancéltica honrada no 1.º de Agosto, e que deu o seu nome à cidade de Lyon (Lugdunum, “colina de Lug”) [na verdade, é “fortaleza de Lugus”].

Os grandes textos literários

Cúchulainn ocupa, nas narrações irlandesas, um lugar que bem se pode comparar ao de Lancelot do Lago no ciclo de romances britónicos da Távola Redonda, popularizados por Chrétien de Troyes no séc. XII.

Desde a sua aparição, aí por 1155, escreve Joseph Bédier, “o romance em prosa de Lancelot do Lago foi considerado como o Espelho de toda a cavalaria, como a Summa de toda a cortezia, como o Romance dos romances”. As aventuras de Merlin, de Artur, de Galaaz, de Gauvain e de Guénivere, a dama bem-amada, de Parsifal e de Galehaut ficaram justamente célebres. Foram reeditadas recentemente, em três volumes, na edição que Jacques Boulanger havia publicado em 1941, e que se apoia sobre o texto inglês do Museu Britânico, estabelecido a partir do primeiro Lancelot francês.

As velhas lendas celtas foram redigidas entre os sécs. IX e XV. Obras em prosa, poesia cortezã, literatura de bardos, grandes gestas épicas, todas essas obras-primas fazem parte integral do património europeu. A Idade Média deixou-nos “os quatro ramos do Mabinogi”, textos galeses conhecidos por manuscritos tardios que dão uma descrição perfeita da antiga sociedade britónica. No séc. IX, a Navegação de S. Brandão (narração latina contando as viagens de um certo Brandão, que partira à procura do paraíso) liga-se à do herói celta Bran, e à sua procura da Terra das Fadas, que não deixa de lembrar os Argonautas e a Odisseia. Renan verá, nela, “uma das mais espantosas criações do espírito humano, e talvez, a mais completa expressão da ideia celta”.

Em 1155, Robert Wace redige a primeira história de Artur em francês. No séc. XIV, as obras do poeta galês Dafydd ap Gwilym (1320-1380) conhecem enorme sucesso. No séc. XVI a poesia bretã não é menos afamada: Marie de France cita o «lai du Laustic» (do bretão eostig, “rouxinol”).

Contudo, apenas bastante tarde fazem a sua entrada nas antologias literárias. “Houve um tempo”, escreve Jean Markale, “em que as literaturas célticas eram consideradas como inexistentes: seria inconcebível tentar pôr em paralelo uma obra céltica ou germânica”. Era preciso que os povos do Norte fossem bárbaros, tardiamente tocados pela civilização. Ex oriente lux. Da antiga literatura irlandesa, J.-P. Mahaffy disse em 1889: “Nas partes em que não é pueril, é indecente!”.

É graças ao romantismo que estas obras esquecidas, mas transmitidas em pequenos cenáculos, de geração em geração, serão redescobertas, Madame de Staël sofrerá a influência de Ossian, assim como Napoleão. No séc. XTX, chegar-se-á mesmo a assistir a uma vaga de “celtomania”. Depois disso, virão os arqueólogos, os historiadores, os filólogos.

Tal como os Romanos, os Celtas “pensaram miticamente a sua História”. Nas suas narrações, tal como nas sagas germânicas, reencontram-se os temas da tragédia grega: ética da honra, sentido do dever, inexorabilidade do destino. Estas analogias despertaram a atenção dos autores.

“Talvez que seja necessário procurar a sua origem no fundo comum indo-europeu”, escreve Markale, que acrescenta: “Os Helenos, sobretudo os Aqueus, abandonaram a massa ariana sensivelmente na mesma época em que o fizeram os Celtas gaélicos. Uns e outros levaram consigo, para além da língua, as tradições, as crenças e, também, uma certa forma de encarar as coisas”.

A fonte está longe de ter secado. Os contadores de histórias irlandeses e os bardos bretões, os Jonatham Swift, George Russel, James Joyce, Beckett, Yeats, Flaherty, Padraig Pierse e Alain Gael devem-lhes algo da sua obra. “Encontramos nesta literatura épica”, conclui Markale, “os mitos que nos interessam. Lá se situam os nossos próprios mitos. E é isso que é fecundo”.

Amantes apaixonados da guerra

Entre os traços mais característicos da civilização celta, Guy Rachet cita o regime aristocrático e o papel da nobreza, a dispersão das cidades, a aliança pelo sangue, o hábito das dádivas, o sistema da “clientela”, etc.

Entre os Celtas do continente, a autoridade do pai é muito estrita. A família patriarcal monogâmica é a regra. Na Grã-Bretanha e na Irlanda, os costumes parecem mais livres. No séc. IV, tal facto provocará a indignação de S. Jerónimo. “Na Irlanda”, exclamará, “ninguém se casa, nenhum irlandês tem apenas uma mulher, cada um se abandona às suas paixões tal como um animal”. Virtuoso exagero.

A mulher gaulesa segue o seu marido para onde quer que ele vá, “Quando um Celta combate”, conta Amiano Marcelino, “na companhia de sua mulher, dotada de mais coragem ainda e de olhos ainda mais azuis do que os seus, só com muito custo uma tropa inteira de estrangeiros lhe será capaz de resistir!”

Plutarco, no seu tratado Das Virtudes das Mulheres, cita o exemplo da gaulesa Chimara, mulher de Ortiagon, que mandou decapitar o centurião romano que à violara, tendo lançado a cabeça decepada aos pés do marido. “Mulher”, diz-lhe Ortiagon, “a fidelidade é uma bela coisa”. “É ainda mais belo”, responde-lhe ela, “que não haja senão um homem vivo a quem eu tenha pertencido”.

Este comportamento guerreiro não é de espantar. Os Gauleses foram apaixonados amantes da guerra. Os autores antigos sublinharam a sua coragem, ao mesmo tempo que deploravam a sua indisciplina, que contribuiu para as suas derrotas.

“O aspecto do exército gaulês e o barulho que faz gelam de pavor”, escreve Políbio. “O número de trompas e de trombetas é incalculável; enquanto isso, o exército dá tais brados que se não ouve apenas o som dos instrumentos e os gritos dos soldados, mas também os locais circundantes que devolvem o eco parecem acrescentar a sua própria voz ao estrondo.”

“Todos os povos que pertencem à raça gálica”, faz notar Estrabão, “são loucos pela guerra, irritáveis e sempre prontos à passar a vias de facto, muito simples e sem maldade: à mais pequena excitação reúnem-se em multidão e correm ao combate, mas isso abertamente e sem qualquer circunspecção, de forma que a manha e a habilidade militar facilmente os poderão vencer”.

Soldados, eles foram mercenários requestados. No séc. III a.C., Justiniano assegura que «os reis do Oriente já não faziam qualquer guerra sem que tivessem, a seu soldo, um exército de Gauleses.
Tendo combatido em massa, pereceram em massa. Aos gritos de guerra sucedeu, pouco a pouco, o soluço dos cânticos fúnebres e das evocações, Como está. dito na lenda:

“Cúchulainn começou a rir, e foi a última vez que Cúchulainn riu. As sombras da morte envolveram-no. Foi até um pequeno lago que-se encontrava perto, e aí se banhou. Saído do lago, o herói amarrou-se a um pilar-de pedra para não cair, e morreu de pé”.

Bastantes séculos mais tarde, o Bretão Chateaubriand evocará, com tristeza e respeito “estes guerreiros errando no meio de cinzas, de nuvens e de fantasmas”

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