
Você está vergonhosamente enganada(o) se acha que Vênus é a deusa do amor carnal. Este é o deus Eros. Um Titã, na verdade. Uma entidade primordial, um dos primeiros a existir. Uma Numina instintiva, dir-se-ía um tanto quanto primitiva. Afrodite é o Amor em várias formas, e a mais forte delas é Ágape, o amor pelo divino, o sentimento de arrebatamento gerado da experiência de comunhão com os deuses. O único amor que ultrapassa o tempo, as raças, as culturas, as formas religiosas. O único amor que é verdadeiramente imortal, como Ela, a sua geradora.
Afrodite Urânia nasceu no mar, surgindo da espuma gerada pela mistura entre as águas salgadas e o sêmen de Urano aí derramado quando este deus foi castrado por Cronos. Foi também da espuma batida no mar de Leite pelo trabalho conjunto de Devas e Asuras que nasceu Lakshmi, a versão hindu de Vênus. E é igualmente no mar, em Peixes, na Casa 12, que se dá a exaltação de Vênus na Astrologia. Por que?
Vejamos esta passagem do Vishnu Purana que narra o nascimento de Lakshmi:
“Então, sentada em um lotus totalmente desabrochado, e segurando um nenúfar em sua mão, a deusa Sri, brilhante com beleza, ergueu-se das ondas. Os grandes sábios, arrebatados, a louvaram com a canção dedicada à sua glorificação. Viswavasu e outros coristas divinos cantaram, e Ghritachi e outras ninfas celestiais dançaram diante dela. Ganga e outros rios sagrados se encarregaram das abluções dela; e os elefantes dos céus, levando as puras águas deles em vasos de ouro, as verteram sobre a deusa, a rainha do mundo universal. O mar de leite a presenteou pessoalmente com uma guirlanda de flores que nunca murcham; e o artista dos deuses (Viswakarman) enfeitou o corpo dela com ornamentos divinos. Assim banhada, vestida, e adornada, a deusa, na visão dos celestiais, lançou-se no peito de Hari (Vishnu); e se apoiando lá, virou seu olhar para as divindades, que estavam inspiradas com êxtase pela visão dela.”
Ao nascer, Lakshmi foi adornada pelos entes celestes como Afrodite pelas Horas. Esta última foi então soprada por Boreas até as margens de Chipre, e tendo seus pés primeiro tocado esta terra e nela feito brotar flores sob seus pés, consagrou-a a si própria. Em seguida subiu ao Olimpo aonde foi de pronto reconhecida e aceita como uma dentre os Olimpianos. Afrodite nasceu e ascendeu! Similarmente, em seu primeiro movimento, Lakshmi convergiu em direção a Vishnu. Ela direcionou o seu amor para o eterno, ou seja, o espiritual, a alma que a tudo permeia, e a tudo origina. Ela optou por um amor transcendental, e habita o Oceano de Leite, flutuando sobre Ananta Shesha, com os pés de Vishnu em seu colo.
Vênus nasce no mar, a imensidão que ultrapassa o horizonte, cujas profundezas a luz não alcança, que são até hoje desconhecidas. Ela nasce no mar que a tudo dissolve, dilui, desfaz, transporta. O caminho para os Outros-mundos em várias tradições Indo-europeias. Para o mundo dos mortos, e as ilhas paradisíacas. O mar que leva à eternidade, que dissolve o corpo e a matéria, e transporta a porção imortal dentro de nós, a alma.
O caminho de Vênus, o caminho do amor, é aquele que leva a Ágape. Como o mar, ele é fluido, inconstante, vai e vem em ondas, é desconhecido e portanto temerário. O mar e o amor podem matar, e no entanto, podem sublimar. Vênus é sublime! Ela é sublime quando é beleza eternizada na arte, quando inunda um coração, e sobretudo, quando transcende a matéria, as ilusões e os apegos. Ou seja, quando transcende os desejos Rajas e as compulsões Tamas e ama de maneira Satva!
Na Tradição Hindu há dois grandes Gurus, Brihaspati (Júpiter) o Guru dos Devas, e Sukra (Vênus), Guru dos Asuras. A exaltação de Vênus é em Peixes, signo de Júpiter, do monastério, do eremitério, da meditação, da conclusão. A exaltação de Vênus não é ser mãe ou rainha. Esta é a posição Moolatrikona da Lua. E Moolatrikona significa estar em casa, estar em seu habitat e posição natural. Vênus está em casa quando está em Touro e em Libra. Mas ela está exaltada quando está no mar, no mosteiro (aonde se “aposentavam” as rainhas da Idade Média), no Outro-mundo. Igualmente a exaltação de uma mulher é ser uma Guru, é alcançar em vida o posto de mestra, educadora, sacerdotisa, monja, santa, asceta. Posição na qual ela inspira e guia sua sociedade para alcançar a ascese. Só uma mente presa ao materialismo confunde Afrodite Pandemos ou uma femme fatale com a exaltação do feminino. “Somente na Kalyuga”.
Contudo, Vênus é um planeta Rajas. Seus dois signos, Touro e Libra, são de natureza rajásica. Em Touro está a matéria, a terra, a colheita, o alimento, a riqueza, e os prazeres e segurança daí advindos. Em Libra está a aliança, a sociedade necessária à sobrevivência da espécie, o contrato, a diplomacia, o casamento que dá continuidade às linhagens e perpetua a vida na Terra. Porque embora a exaltação de Vênus esteja em Peixes, e o mais sublime e imortal dos amores seja sátvico, ela é magnânima a ponto de conceder todos os bens e prazeres materiais os quais precisamos transcender para encontrar sua forma última. Vênus é generosa, ela concede os meios pelos quais podemos existir, gerar descendência, viver e dar continuidade à vida. O problema é se perdemos de vista o horizonte. É se esquecemos que o objetivo é alcançar aquele ponto aonde o oceano se mescla com o céu, e os caminhos para a ascese e o divino se abrem.
Quando perdemos de vista esta verdade que não se enxerga com os olhos concretos, os do rosto, mas com a glândula pineal, nos limitamos, esquecemos, cruzamos um rio de ignorância que nos conduz a existências puramente rajásicas e tamásicas. Nossa carruagem mergulha cada vez mais na matéria e no sofrimento. Nos afastamos cada vez mais dos deuses e de Ágape.
Nós estamos na matéria. É preciso nos preocuparmos com o teto e o sustento nosso e daqueles que amamos, manter os contratos sociais que dão estabilidade à vida, para que a alma siga em seu desafio com o mínimo de intervenções tamásicas em Sita (Mente). Mas você há de convir, já deve ter visto por aí: as pessoas com as vidas mais confortáveis são as com menos talento para ser feliz e valorizar as bênçãos de Vênus. Em outras palavras, tendem a ser infelizes sem motivo. Portanto, busque a segurança e o prazer, mas não foque neles, porque quanto mais você tiver, mais distante vai estar do objetivo real da vida: superar Rajas e Tamas, tornar-se Satva, para congregar com os deuses e retornar à sua esfera.
E Vênus conhece o caminho, ela o trilhou sobre o mar, ela o trouxe à luz! Então ame! Busque o amor no outro e na fé. Mas não permita que uma Sita (Mente) poluída por dor, medo, mágoa, raiva, interesses, oportunismos e ideologias materialistas desvirtuem o seu sentimento, o seu relacionamento e a sua vivência da fé. Não desperdice seu tempo culpando o sexo oposto. Culpando os homens por serem tóxicos e as mulheres por serem falsas. Alucinando com cultura do estupro ou culpando a pandemia, ou o Feminismo e a modernidade pelo fim do relacionamento no qual você não foi capaz de aprender a virtude libriana da diplomacia, do dar e receber, de equilibrar a balança.
E não atrofie seu coração pelas derrotas e erros do passado. Ame de novo, e dessa vez, apaixonadamente e desinteressadamente. Deixe que Vênus, como sua exaltação em Peixes, dissolva o apego aos resultados e inspire seu caminho, como o nascimento dela inspirou aos demais deuses. Ame como Santa Tereza:
“Eu vi em sua mão uma longa lança de ouro e, na ponta, o que parecia ser uma pequena chama. Ele parecia para mim estar lançando-a por vezes no meu coração e perfurando minhas entranhas; quando ele a puxava de volta, parecia levá-las junto também, deixando-me inflamada com um grande amor de Deus. A dor era tão grande que me fazia gemer; e, apesar de ser tão avassaladora a doçura desta dor excessiva, não conseguia desejar que ela acabasse…”
O Tronante sempre atinge seu alvo com setas, sejam flechas, lanças ou raios. E o produto do seu lance é a sabedoria, é romper com a ignorância e desenvolver uma natureza Satva.
Ame como a deusa Lakshmi ama Vishnu. Como o deus Oengus ama Caer. O amor deles é tão pisciano que Oengus conheceu sua futura esposa em sonhos. Ela não tinha corpo, sua alma estava aprisionada na forma de um cisne. Ame como Cupido ama Psiqué. Ame uma alma, ainda que ela esteja em uma gaiola, mortal, falha, ignorante, e que ela cometa erros. E como, Psiqué, admita e transcenda seus erros e defeitos. E não desista do Amor, continue buscando-o mesmo após descer ao Hades.
Ame aos deuses, e a uma alma, não o corpo e a identidade mortais que estão em torno dela. E não aceite nada menos do que isto em troca. Pois é curto o tempo que temos em vida, e se desperdiçado permitindo que as dores, raiva, medo, mágoas, ideologias, interesses e oportunismos do outro influenciem nossas vidas, nos afastaremos de nossa busca por Ágape, acabaremos por cruzar de novo um rio de ignorância.
*A inspiração para este texto veio durante o trânsito dos dois Gurus, Júpiter e Vênus, no signo de Peixes.
** Para entender porque o amor é essencial à prática espiritual sugiro a leitura: https://frente-iberocelta.net/2019/09/20/a-origem-da-deusa-venus-traducao-de-h-wagenvoort/
Mais um texto maravilhoso deste blog. Eu leio todos…
No livro “Transição Planetária”, de Divaldo Franco, esse sentimentos nocivos são chamados de “filhos inconsequentes do ego dominador”. E as ideologias materialistas estão fomentando tais sentimentos nas pessoas, como bem diz a Slakkos Abonos em seu texto.
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