Já falamos sobre a estrutura e o funcionamento do calendário lunissolar que adotamos noutra ocasião e agora venho cá compartilhar, de maneira rápida, uma questão que vez ou outra volta e se rumina, especialmente quando se chega neste final de ano litúrgico. Me refiro aos nomes dos meses. Mas antes, consideremos o seguinte:
A estrutura calêndrica lunissolar de 24 “quinzenas” formando um “ano” (este também, dividido em duas metades) que se repete num ciclo de 5, necessita de 2 meses intercalares a serem inseridos (a cada 2 anos e meio) é uma estrutura Indo-Europeia conforme atestada em diversos calendários arcaicos ou vestígios destes (hindus, gregos, gauleses, germânicos, etc.).
O modelo de interpretação cosmogônica “espaço-temporal” de Lyle (no livro Ten Gods já referido aqui) referenda este arranjo e nos dá uma orientação sobre como, em tese, seria a compreensão das épocas e quais quinzenas estariam sob a influência de qual deidade (num referencial PIE, apesar de que as correspondências estipuladas pela autora merecem ser melhoradas, em vistas de alguns problemas pontuais). Neste modelo, temos 10 divindades velando sobre 8 períodos de 3 quinzenas, restando as duas divindades soberanas e antagônicas disputando o período limiar e virtualmente “parado” do Solstício de Inverno – início e fim do calendário PIE (segundo a autora) e que, desconfio eu, o também “parado” período oposto, do Solstício de Inverno onde estes soberanos disputam. Neste mesmo modelo, 3 quinzenas são dedicadas às funções sacerdotais e régias, 6 quinzenas às funções guerreiras e 9 quinzenas às funções produtivas, ficando as 5 quinzenas restantes dedicadas aos mortos (iniciando, grosso modo, com o equinócio de outono, ficando 3 dedicadas aos mortos relacionados as funções produtivas, 2 aos guerreiros mortos e 1 aos sábios e sacerdotes mortos).
É possível de se atestar a relação entre períodos de tempo (por vezes até menores do que uma quinzena) e meses dedicados ou vistos como sob a influência de uma deidade específica ao longo dos calendários em vários povos IE (gregos, irlandeses, hindus, romanos, etc.).
O nome dos meses de um calendário variavam mesmo numa mesma cultura (por exemplo, gregos e hindus) apontando para uma certa localidade/regionalidade de tais nomes, por sua vez dialogando com características do clima local e o modo como as estações se davam, apesar da estrutura lunissolar (com a necessidade dos meses lunares e a importância das quinzenas) ser uma constante. Os calendários também incluíam uma série de observações e festividades menores, locais e regionais, adaptando-as à estrutura calêndrica base, apesar de em sua grande maioria manterem observadas ou preservadas de forma vestigial as 4 grandes festividades (dos Solstícios e Equinócios).
Existe alguma evidência (especialmente entre os irlandeses, e talvez, de maneira mais problemática, entre as correntes órfica e pitagórica entre os gregos) de que se entendia que os mortos no hemisfério norte, em certas condições, renasciam no hemisfério sul (e vice-versa), apesar da divisão entre os hemisférios ser vista por vezes, como uma divisão entre mundos ou partes do mundo sem continuidade terrestre, só acessível por um mar intransponível em condições normais. É um assunto que trataremos mais detalhadamente cá no blog noutra oportunidade, mas que termina por reforçar a visão de que as coisas nos hemisférios ocorrem em sentidos diferentes, inversos; posição que pode ser corroborada pela observação direta do curso do Sol (tomando o Solstício de Inverno como ponto de origem, que desenha uma trajetória em sentido anti-horário, ao contrário do hemisfério norte) e mesmo o sentido que a água desce em redemoinho natural, por exemplo.
Destas considerações, faz um tempo já, resolvemos pontuar o seguinte:
Manteremos a estrutura calêndrica lunissolar de 24 quinzenas mais 4 intercalares inseridas a cada 2 anos e meio (tomando o modelo do calendário gaulês de Coligny como base), mesmo que, talvez, isto represente um certo “arcaísmo” (talvez nossos ancestrais celtas da Ibéria, antes da adoção do calendário romano, tivessem já mudado algo), perfeitamente desculpável numa abordagem mais tradicionalista.
Há também uma possibilidade que não exploramos de todo de maneira pública, derivada de um conjunto de evidências presentes no calendário de Coligny: de que o mês, ele próprio, reproduza em “escala micro” a disposição do “macro”, sendo a divisão das quinzenas, equivalentes a divisão dual (claro-escuro, verão-inverno). Esta divisão interna (que em tese, explicaria melhor a natureza de certos dias marcados como favoráveis *matus ou não favoráveis *anmatus) requer uma série de considerações que aqui não cabe. Também citarei de maneira breve uma outra dimensão “macro para o micro” oriunda do tapete das práticas e concepções folclóricas: de que as 24 quinzenas sejam identificadas com as horas do dia, lançando luz sobre a identificação/influência e o poder de certas horas. Mas é um assunto cujos detalhes são mais herméticos e doutrinários, cabendo melhor uma exposição oral numa situação adequada.
Partiremos da realidade hemisférica, contando o giro dos meses em sentido sinistrogiro e a manifestação das estações, solstícios e equinócios, conforme a percepção local, coisa que consideramos ortoprática; pela própria compreensão da dimensão “cosmogônica-espaço-temporal” do calendário, e não somente “cultural” (como certos helênicos e cultores romanos entendem seus calendários religiosos). A título de especulação, consideramos que a dissonância entre a realidade hemisférica e herança cultural (que pela sua percepção cristianizada, ignorou e simplesmente transportou datas e festividades do hemisfério norte para o sul, sem adequá-las a realidade hemisférica) pode ser sim uma das causas de uma certa disfuncionalidade que se manifesta como certa confusão social desde a colonização destas paragens pelo europeu.
Os nomes dos meses estariam também relacionados a certa percepção “regional” e, portanto, variável – assim como a inclusão de festividades menores ou mesmo a reinterpretação de períodos temporais específicos dentro da estrutura calêndrica. É por isto que, faz anos já, nos limitamos a fornecer um modelo geral: para os residentes na região Sul do nosso hemisfério, dado clima mais temperado, manifestar-se-á de modo diferente do modo na região nordeste e de clima semi-árido da América do Sul, por exemplo. Em termos ideais, teríamos pelo menos uns 3 calendários iberoceltistas pelo Brasil, reflexo de 3 percepções genuinamente enraizadas, mas 3 variações a partir de uma mesma estrutura, como temos evidência de que fora no passado Indo-Europeu (inclusive em dispersões geográfica bem menos, diga-se de passagem).
As 4 festividades irlandesas, que são vistas como célticas (são marcadas pela Ibéria intencionalmente em monumentos megalíticos e santuários rupestres, e mesmo em construções de cunho religioso, como se defende tenha sido o caso em Numância), seriam na perspectiva de Lyle as marcações “originárias” das estações num clima temperado (como ainda vistas pelos irlandeses na Alta Idade Média). Nesta perspectiva, em termos de modelos, tais datas cairiam como divisores de quinzena (ou seja, como as datas 15 ou 16, que seria um plenilúnio) de certos meses, noção que casa a marcação das “três noites do Samonis” do calendário gaulês de Coligny, por exemplo. Assim temos a possibilidade de ver tais festas celtas como “fixas” (nos meses lunissolares), na mudança da quinzena de certos meses. Esta opção (que temos favorecido no último ano) significa que as festas celtas seriam celebradas em certas luas cheias não ficando “fixas” às datas tradicionais do calendário gregoriano. É uma opção e uma interpretação que julgamos razoável, mas não reivindicamos como única alternativa, a fixação das festas celtas nas datas do calendário gregoriano (1 de fevereiro, 1 de maio, 1 de agosto e 1 de novembro) possui uma orientação mais solar (especialmente após a correção do calendário juliano pelo gregoriano) e igualmente válida.
Para nomear os meses lunissolares, ao longo deste tempo, recorremos, basicamente, a: nomear pela estação ou evento climático característico, pela posição do mês ou pela festividade que ocorre no mesmo (é bom lembrar que esta última alternativa faz mais sentido apenas se a festividade for “fixada” no mês). Abaixo segue a notação que utilizamos (recorrendo ao Proto-Céltico) no último calendário que apresento mais como ilustração do que como nomenclatura final e definitiva.
*Samoniyom lit. “o do Samonis”, sendo o *samonis a “reunião entre vivos e mortos”, festividade fixada nos dias 15-17 do mês.
*Gyemonos lit. “Invernado ou Invernão”.
*Medio-gyemos lit. “Meio inverno”, no período deste mês para o próximo ocorrem os Solstícios de Inverno.
*Ambi-wolkyātis lit. “Lavador do entorno” ou *Enibolgākos lit. “do Enibolgei”, sendo o mês da festividade correspondente (fixada entre os dias 15-17 do mês).
*Uφo-gyemos lit. “sub inverno ou baixo inverno”.
*Ate-gnatyonos ou *Ate-ganyetonos “do grande renascimento”, mês que em tese compreende o período do equinócio de primavera.
*Belo-teφnetyom “o do Beloteφnets” mês oposto ao Samoniyom, no qual ocorreria festividade do Beloteφnets (fixada entre as datas 15-17).
*Samonos lit. “Veranado ou Verãozão” mês oposto ao Gyemonos
*Medio-samos lit. “Meio verão”, período em que até o início do outro mês, assim como no Medio-gyemos, ocorre o Solstício, neste caso, o de Verão.
*Lugu-nadskātyom lit. “o do Lugunadskātis”, mês o oposto ao Ambiwolkyātis no qual ocorre a festividade do Lugunadskātis (fixada entre os dias 15-17 do mês).
*Uφo-samos lit. “sub verão ou baixo verão”.
*Dī-wedyonos lit. “o ultimado ou o que é último” mês no qual geralmente ocorre o Equinócio de Outono.
Como disse, a realidade regional, ao longo de anos de observação, mostrará a adequação ou não de certos nomes – especialmente os de cariz sazonal. Também é importante frisar que em tal modelo lunissolar, certos anos, especialmente o ano 5 (mas também o 3, do ciclo de 5 anos) apresentam certas características que movem certas festas (especialmente os Solstícios e os Equinócios, mas também as festas celtas se não forem fixadas nos meses lunissolares) consideravelmente. Para terem uma ideia, agora no ano litúrgico 5 de 5 (que iniciará no anoitecer de 23 de março de 2020), o Equinócio de Outono, não ocorrerá no mês Dīwedyonos, mas sim no mês intercalar (mês este que antecede o primeiro mês, o Samoniyom) no ano 1 do próximo ciclo de 5 (penúltimo ciclo para o final de uma “geração”, composta de 30 anos lunissolares), o que, hipoteticamente, faria este ano que está para se iniciar um ano “sem equinócio outonal” e o próximo um como “dois” (se bem que o mês intercalar é visto como um “enxerto” não pertencendo propriamente ao “ano”, de fato, estando fora das 24 quinzenas).
Bem, vou encerrando tais considerações por aqui e espero que tenha sido útil em algo. Quanto aos nomes dos meses que usamos cá, confesso que já foram diferentes e que uns ainda não me parecem tão satisfatórios assim. Me refiro especificamente ao mês *Ambi-wolkyātis: a construção é a menos segura. *wolko- é “chuva, banho de chuva”, de onde que no galês médio o derivado passo a designar “lavagem, banho”, mas no irlandês antigo, o termo designa uma “chuva forte”, como se diz por cá, um “toró” (termo indígena). Como nesta época, em média, não ocorrem mais tais chuvas fortíssimas, e como no mundo IE mais amplo o período denota certa purificação ou limpeza (pela água), fico tentado a buscar outro termo que esteja mais associado a limpeza e lavagem (e menos com a chuva). Há as raízes verbais (i) *am-o- (de onde teríamos um nome verbal *amatos/amotos, a partir do goidélico indmat “lavar as mãos, os pés ou o rosto” ← *ando-amatos), (ii) *nig-yo- “lavar”, que nos daria um nome verbal *nigyom “lavagem, limpeza” e (iii.) *kart-ā- “purificar, limpar”, que no irlandês antigo designa “expurgar, expelir”, cujo nome verbal seria algo como *kartātos/kartatus (do irlandês antigo cartad). Se pensarmos num nome como “o (mês) da grande purificação” ou o da “grande limpeza”, ficaria algo como *kartatyonos ou *amatyonos, que soam muito bem. Este ano mesmo, estou vendo se observarei as festas celtas fixas nos meses lunissolares (uma tendência para a qual me inclino mais) ou se retornarei para a observação destas nos dias fixos do calendário gregoriano.